quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11132: Vivências em tempo de guerra (Hugo Guerra)

1. Mensagem do nosso camarada Hugo Guerra* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 55 e Pel Caç Nat 60, Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70, hoje Coronel, DFA, na reforma) com data de 8 de Fevereiro de 2013:

Amigos e camaradas

Não devem saber, mas depois de ser ferido em São Domingos em março  de 1970,  fiz-me à vida e fui trabalhar e viver para Angola em Setembro desse mesmo ano.

Como era Regente Agrícola de formação, não tive qualquer dificuldade em arranjar bons empregos e por lá estive até Agosto de 1974 quando optei por reingressar no Exército e vir prá Capital.

Corri Angola de Norte a Sul, exceptuando as Terras do Fim do Mundo, e depois da experiência traumatizante que foi Gandembel/Ponte Balana e São Domingos tive oportunidade de formar opinião comparativa entre as três colónias.

Também passei algum tempo em Moçambique.

Se virem que estas minhas recordações são interessantes para o blogue vamos a isso. Caso contrário, 6ª de papéis.

Um abraço amigo do
Hugo


Vivências em tempo de guerra 

- Como está, Senhor Capitão? E os senhores Alferes,  sentem-se bem? Está uma óptima tarde para o nosso chazinho, só tenho pena que não possamos ficar mais tempo aqui fora porque os mosquitos não nos largam... Vamos entrar.

Assim falava a Dona, mulher do Gerente da Fazenda Tabi,  a maior produtora de banana do Norte de Angola com o à-vontade do seu estatuto,  dirigindo-se depois ao subgerente e à mulher deste que também faziam parte deste ritual.

Com o grunhido de assentimento do marido, homem feito nas roças de cacau um São Tomé sempre de chibata na mão e acompanhado do seu fiel cão, entrámos.

Um dos criados, fardado de branco e com luvas da mesma côr, habituado a estas andanças, providenciou as bebidas para todos em copos de cristal e um dos Alferes dirigiu-se ao piano e dedilhou qualquer melodia, que já se sabia fazia os encantos da Dona.

A conversa naquele dia girou à volta do acidente que poucos dias antes tivera lugar, quando um Unimog carregado de militares havia sido alvo de uma emboscada no percurso para as salinas a poucos quilómetros da sede da Companhia, tendo os soldados sido apanhados à mão ( parece que levavam as armas debaixo dos bancos) e não podendo resistir foram dizimados e a viatura queimada.

 
- Uma desgraça… Um lamentável acidente…

- Um enorme desleixo - disse eu, ainda fresquinho de dois anos de porrada na Guiné.

- Mas eles não foram culpados -  logo se levantou a Dona.

Pois não, a culpa é da bandalheira a que se deixa chegar esta situação nas Fazendas onde os Senhores Oficiais são tratados a uísque, gin e tapas, onde os Furriéis têm um belo bar com piscina,  jogos de cartas ou de mesa e onde as patrulhas são efectuadas por civis armados.

O ambiente ficou de cortar à faca. Veio-me à cabeça que àquela hora, na Guiné estariam a começar os ataques aos desgraçados que iriam passa a noite em claro a levar e dar porrada e sem lhe passar pela cabeça que noutras paragens como aquela onde agora eu me encontrava se jantava com todos os requintes, se bebiam os melhores vinhos de mesa com café, conhaque e charutos.

Se não estou pirado, esta cena passou-se em Outubro de 1970.
____________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de 8 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9714: Memória dos lugares (179): Eu e o João Barge na Ponte Balana, em dezembro de 1968 (Hugo Guerra)

3 comentários:

Antº Rosinha disse...

Hugo,fabuloso, ando aqui a dizer que passei 13 anos sem ouvir um tiro (de guerra), a dormir numa barraca de campanha em toda a Angola.

Ando aqui a dizer que o MPLA "passou procuração" ao PAIGC para se entreter a fazer a guerra na Guiné.

Agora descreves essa cena das armas dos soldados debaixo dos bancos do Unimog, discutida com um wiskie na mão a tilintar de gelo, que nem uma cascavél como dizia o humorista brasuca já falecido.

Como fui furriel em 1961 e 1962, e era de facto mais ou menos de arma debaixo do banco que fiz a "minha" guerra, pode-se dizer que é força de expressão, mas não há muito exagero, ainda bem que aparece alguem a dar um ar da guerra que eu vi.

Guerra que não quero trazer para aqui, porque foram os 13 anos completos mais 4 anos antes e um ano depois.

Mas de vez em quando alguém como tu
vai dando um ar do que aquilo foi.

Mas tenho a dizer-te que essa cena dos soldados apanhados de "arma debaixo dos bancos", era já contado tão assíduamente que às vezes ficava-se na dúvida se fazia parte de alguma contra-informação, se simplesmente como boato, ou por qualquer estratégia que tanto podia vir dos Movimentos como do nosso próprio "futuro" MFA.

Hugo, a fazenda do Tabi era zona da UPA depois FNLA, aquilo no princípio não foi nada bom.

Mas se estiveste em Moçambique lá no Norte, embora não como na Guiné, a coisa não tinha nada a ver com Angola, pelo menos no 25 de Abril, em que em Angola os três movimentos mais as suas próprias facções internas não se entendiam.

Só não trabalhei em Cabinda.

Cumprimentos

Anónimo disse...

Olá Camaradas
Esta cena passa-se num momento que eu acho crucial da "guerra". Tudo tinha começado em Angola cerca de 10 anos antes. Pelos vistos o problema estava nos donos das fazendas que tratavam bem os militares... que, no fundo, eram portugueses como eles e ali estavam para os proteger. Eu gostava de saber o que é que aquele casal pensava acerca do modo como tudo iria terminar. Será que pensavam que a situação de guerrilha e contra-guerrilha seria eterna, mesmo com os exemplos que a África proporcionava? Estariam esquecidos da confusão do Congo Belga, 10 anos antes? Claro que o pior cego é o que não quer ver ou o que acha que não deve questionar-se, não vá o seu mundo desmoronar-se.
Mas também entrar assim, com os pés e com comentários que revelam ignorância e boçalidade acho demasiado. Depois... depois foi o que sabemos e já me tenho interrogado se não seria justo tudo o que se passou quatro anos depois...
Um Ab.
António J. P. Costa

Antº Rosinha disse...

Hugo, em 1961 como furriel de incorporação angolana fui com uma secção adido (?) a uma companhia de caçadores especiais com camuflados novinhos, acabados de chegar da Metrópole a Luanda, o comandante dessa companhia, zangado e chateado olhou para mim e disse-me que estava ali por causa dos brancos que tratavamos mal os pretos.

Não sei se o capitão queria que lhe agradecesse por me estar ali a guardar as costas.

Hugo, não calculas o que me soube bem ouvir falar de terras onde não havia fome e havia vontade de viver.

Tive ali, com alguns sacrifícios e algumas privações uma vida de que guardo as maiores saudades.(18 anos)

Hugo, quando falas de um fazendeiro ou administrador da fazenda do Tabi,ou de outra fazenda qualquer, em geral era pessoal de Trás-os-Montes ou Minhoto, talvez beirão, que foi de porão, ele ou os pais, e que fizeram essas fazendas sem capitães-guarda-costas, só tiveram sucesso, como em tudo na vida, se quem os rodeia, pretos ou brancos ou amarelos colaborassem de vontade com eles. Porque com "contratados" contrariados, o branco podia lutar, trabalhar esforçar-se que acabava por desistir.

E como hoje, 2013, há muito branquinho que em Luanda está a "partir" a cara e deixar lá «coiro e cabelo» porque se enganou com os atrazadinhos «pretinhos». (vem constantemente no jornal)

Admiro-me como ao fim de 40 anos ainda há portugueses que andaram por lá, e não falo só de militares, e ainda pensam que foi pelas "nossas G3" que aguentamos uma guerra daquelas, 13 anos.

A guerra ia de Nova York a Moscovo e passava pela Argélia e Cuba.

Também passava pelo Tabi, não esqueço e pelo «transmontano» que lá estava.

Hugo, em 1970, dizes que foste para Angola, mas aí já Portugal colonial já andava por inércia apenas.

Quem ia, ou civil ou alguns capitães milicianos,iam para lá voluntários.

Mas em 1961 não, se era civil não ia para lá, e se era militar de carreira como os capitães daquele tempo, que a última guerra que tiveram foi em 1918, e depois foi uma maré-mansa, só foram porque o Salazar "pegou-lhe pelas orelhas", como quem diz, e já Para Angola em força.

Daí o tal capitão estar zangado comigo.

Hugo, tive como colegas profissionais e superiores hierárquicos gente da geração de Lúcio Lara, Amílcar Cabral e Agostinho Neto.

Um primo direito de Lúcio Lara, chamado Ernesto Lara, poeta (Wikipédia) era Regente agrícola como tu e fui companheiro dele de «Cucas e vinho verde».

Eram eles que nos ensinavam a mim e aos fazendeiros a colonizar.

Hugo, a divergência Oficiais/brancos tem porras!

Dei-me sempre bem com pretos e muitos brancos e só tive dois castigos na caderneta aplicados por dois capitães.

Mas como foi numa guerra, que para mim foi uma victória retumbante, os capitães estão perdoados.

Não dava para mais

Cumprimentos