quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11129: (Ex)citações (213): Cameconde, hoje seria um lugar de absurdo, de pesadelo e de loucura... (Alexandre Margarido, ex-cap mil, CCAÇ 3520, Cacine e Cameconde, 1972/74)

1. Comentário, de 20 do corrente,  do nosso leitor (e camarada) Alexandre Margarido, ex-cap mil da CCAÇ 3520 (Cacine e Cameconde, 1972/74), ao poste P11127, e a quem a Tabanca Grande cumprimenta e convida para se sentar aqui, debaixo do nosso mágico e fraterno poilão:

Cameconde  era um daqueles locais onde apenas os combatentes portugueses conseguiam manter-se durante anos, sem enlouquecerem, face à falta de condições mínimas de subsistência. Inclusive a água e os mantimentos tinham que ser transportados, numa coluna diária por um trilho rasgado na selva.

As altas temperaturas dentro dos abrigos, os insectos, as cobras que deslizavam da selva durante a noite, procurando o calor dessas fortificações, autênticos fornos, a exposição a atiradores e às flagelações por RPG,  tudo isso,  recuando 40 anos nas minhas memórias,  era impensável ser suportado nos dias de hoje.

Obrigado por manterem vivas essas memórias.(*)

Alexandre Margarido, ex-Capitão Miliciano da CCaç  3520. (**)




Guiné-Bissau > Região de Tombali > Setor de Cacine > Cameconde > 1968 > Disparo noturno do obus 8.8 >  Foto do álbum do António J. Pereira da Costa, que era na altura alferes QP da CART 1692/BART 1914 (Cacine, Cameconde, Sangonhá e Cacoca, 1967/69).

Foto: © António J. Pereira da Costa  (2013). Todos os direitos reservados

________________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 12 de fevereiro de 2013 > Guiiné 634/74 - P11091: (Ex)citações (212): Afinal, todos fomos expulsos do Paraíso e condenados à solidariedade (J. L. Pio de Abreu, psiquiatra, ex-alf mil med, CCS/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1971/73)

(**) CCAÇ 3520 - ficha da unidade, segundo a Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 7º vol - Fichas das Unidades, Tomo II (Guiné), Lisboa, EME/CECA, 2002:

CCAÇ 3520:

(i) Mobilizada pelo BII 19 (Funchal);

(ii) Parte para o TO da Guiné em 20/12/1971 e regerssa a 37/3/1974;

(iii) Passou por Cacine (mas também Cameconde) e Quinhamel;

(iv) comandantes:  cap inf Herberto Amaro Vieira Nascimento; cap mil Jaime Cipriano da Costa Rocha Quaresma;  cap mil inf Armando Pimenta Cristóvão; e cap mil grad inf Alexandre Augusto Martins Margarido.

Julgo que a CCAÇ 3520 já não estaria em Cacine  quando Cameconde foi atacada na véspera do Carnaval de 1974... Eis aqui um apontamento do Diário da Guiné, do nosso camarada António Graça de Abreu (Lisboa,  Editora Guerra e Paz, 2007):

(...) Cufar [CAOP1], 25 de Fevereiro de 1974

Véspera de Carnaval e houve grande folia pelas terras do sul da Guiné. Foram rebentamentos uns atrás dos outros, de manhã à noite. São agora nove horas, às oito ainda os Fiats largavam bombas e mais bombas sobre os refúgios do PAIGC. Os guerrilheiros resolveram atacar Bedanda, três vezes ao longo do dia, mais Caboxanque, duas vezes, Cadique, Jemberém e Cameconde. Em Caboxanque houve três feridos entre a população, nos outros, apenas os estragos materiais do costume. (...).

Segundo o relatório da 2ª rep/QG/CTIG, sobre a situação militar no TO da Guiné em 1974, o PAIGC montou 4 minas A/P na região de Cameconde, a 10 de maio de 1974, e  1 mina A/P no itinerário Cacine-Cameconde, a 20 de maio. 


9 comentários:

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

Em minha opinião, numa frase curta, Alexandre Margarido consegue sintetizar, a propósito de Cameconde, o sentimento de heroísmo e de estoicismo que muitas vezes está subjacente ao desempenho dos nossos jovens em terras africanas, particularmente na Guiné.
Realmente também não consigo imaginar capacidade de adaptação ao terreno nas condições então vividas, por parte das 'impreparações' de hoje em dia.
E, por isso, ainda mais, nunca é de menos louvar o esforço que a nossa geração suportou.

Abraço
Hélder S.

Juvenal Amado disse...

Fizemos dois cruzeiros juntos.

No Angra do Heroismo até Bissau em 1971 e Bissau - Funchal em 1974 no Niassa.

Bem vindo

Um abraço

Luís Graça disse...

Todos as nossas "estâncias de turismo", nesse "paraíso tropical" chamado Guiné, foram lugares a que, com maior ou menor a propriedade, poderíamos aplicar o epíteto de "lugares de absurdo, de pesadelo e de loucura"...

Alexandre Margarido, o último capitão das "estrelas do sul", está convidado para se sentar aqui ao nosso lado... Espero que ele nos leia e aceite o nosso convite... Há um laço (invisível mas forte) que nos une a todos, os ex-combatentes da Guiné, independentemente do "pedaço de céu" que lhes calhou na lotaria da guerra...

Anónimo disse...

O absurdo..o horror
O calor..a sede..a sub-nutrição..a fome.
comer papa de arroz com peles de salsichas..dias e dias e dias..
Beber água barrenta,mesmo depois de filtrada..o "cuecas",os "búfalos bils" de chapéu à cawboy..o "vou-me embora pá metrópole..e quase morre de insolação sentado na mala no cais,os ataques de histerismo,e de paludismo..diarreias muitas..eu mato-te cabrão..o tédio..a saudade de tudo e tudo..o correio..ah o correio que bom..a granada que explode dentro do abrigo enviada por mão cobarde e assassina..o silvo dos fiats e das granadas IN..o contar de "saídas"..a confusão entre ruídos de viaturas na mata e a maré vazante..os uivos de dor dos queimados..isto dispara-se assim..bummm..os estilhaços nos glúteos apanhados em pleno voo para dentro do abrigo..as granadas incendiárias..o cheiro a fósforo..as perfurantes..toca a sair dos abrigos..transformados em torresmos dentro das valas..ffrruuu..plaff...trakk...
ficar todo ensaboado porque a puta da chuva parou repentinamente..a humidade peganhenta que não nos larga o corpo ..o suar permanente..os cabrões dos mosquitos que não nos largam..mato-vos a todos cabrões..a delicia de ouvir os outros a "embrulhar" que é para verem o que custa..papa india romio alfa e nova linha..cala-te com essa merda que eu quero dormir..isso é uma ordem..é..plafff..trakkk...plaff.trakk..plaff..trakk...uuuiimmm..meu alferes este vem de sangonhá.. sai daí que ainda levas com um estilhaço nos cornos..comer as formigas de asa quando estas caem no tampo da mesa..tá.tá.tá..ó meu cabrão confundes uma saída com um rebentamento..as cobras (manga delas) à saída do abrigo pela manhã..tá.tá..quem é que está aos tiros.. cortá-las aos bocadinhos a tiro de g3.. era desporto..beber gin simples e whisky..coisa que nunca faltou..era proibido cagar em frente ao canhão..
AAtaqueee...AAtaquuueee...BAAANNGGG..VVRRRRREEEE..agora é que vão ver como elas vos mordem cabrões de merda..um gajo a dormir descansado..dias e dias e dias..semanas e semanas..meses e meses..sempre a mesma merda.

BBC..generral Spinoula..coiso e tal
AQUI POSTO DE COMANDO DAS FORÇAS ARMADAS..AS FORÇAS ARMADAS PORTUGUESAS...

"Apanhados do clima"..quem foi que inventou essa porra..eu nem sequer estive na Guiné..foi apenas um sonho ..um pesadelo..uma alucinação..ainda bem.. porque a ser verdade julgo que não aguentaria.

C.Martins

Tony Borie disse...

Companheiros.
O texto do comentário do C. MARTINS, no meu modesto entender, é um dos relatos mais fiéis, escrito numa linguajem real da época, e existente, pelo menos na mente de quem conheceu o cenário do dia a dia que se passava no interior e não só, da maior parte dos aquartelamentos, existentes na zona de guerra, do conflito que vivemos na Guiné.
Parabéns C. Martins, permita-me que o coloque no meu arquivo.
Um abraço, Tony Borie.

Henrique Cerqueira disse...

Ena ,ena...CMartins desta vês "pirou" mesmo.
CMartins eu estou mesmo habituado a "rir" com os teus comentários quase sempre sarcasticos mas com seriedade.E desta vês o CMartins expolodiu e tocou cá nas feridinhas do pessoal.
Bravo CMartins este comentát«rio está mesmo do melhor.
Henrique Cerqueira

Henrique Cerqueira disse...

Correção:
"abituado e comentário"
É no que dá a pressa em manifestar a satisfação pelo comentário doCMartins.
Henrique Cerqueira

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

Sem dúvida que estas referências a Cameconde fizeram despoletar recordações que tardavam em 'saltar'.

A frase de Alexandre Margarido é realmente feliz na medida em que, como já escrevi, sintetiza bem o que se pode dizer 'daqueles ambientes por aqueles dias', mas o inimitável comentário/desabafo 'ilustrado e sonorizado' produzido pelo C. Martins (ao nível dos escritos do 'alfero Cabral') é algo que enriquece este tema e a prova disso são as observações do Tony e do Henrique.

Abraços
Hélder S.

Unknown disse...

Excelente texto C. Martins! Para que a alucinação, a loucura, sejam completas, assim à moda de Cameconde, faltou-te apenas utilizar uma palavra: a palavra diabólica, das mais temidas... MINA!
Quanto ao meu amigo, primeiro camarada, depois comandante Alexandre Margarido... quem melhor do que ele para descrever Cameconde?