CARTAS DE AMOR E GUERRA
18. Férias
Bissorã, 13/9/1966 - Fur. Milicianos Adrião Mateus e António Magalhães, da CArt 1525, e Manuel Joaquim (CCaç 1419) posam na pista de aviação enquadrados por camaradas da CArt 1525 e ansiosos por partir para férias. No fundo da foto percebe-se a imagem do DAKOTA CR-GAT que levará os três para Bissau.
Foto: © Adrião Mateus.
Vale de Figueira, 13/3/66
(... ... ...)
Faltam poucos meses para gozares as tuas férias. Regozijo-me com o saber que terás possibilidades disso. Mas, meu querido, tal como vivo contente, ansiando a hora de te abraçar, tremo de temor e de insegurança; receio este encontro contigo. (...).
Meu querido, sê razoável e compreensivo ao analisares o que vou dizer-te. (...). Sugiro-te que seria melhor não regressares daí sem teres terminado definitivamente a comissão estipulada.
Mais vê:
Depois de passares cá as férias, já com perfeito conhecimento e experiência do que por aí se passa, será bastante mais difícil e doloroso teres de voltar para o mesmo inferno. É que já vais com os olhos bem abertos. Não vais decerto como quando foste inicialmente, com a esperança de que isso aí é melhor do que o que por cá se conta.
Para mim também terá um sabor bastante amargo. Compreendes-me, querido? Não quero dizer, terminantemente, que não venhas. Faz o que entenderes. É apenas uma opinião minha.
(... ... ...)
Bissorã, 17/3/66
(... ... ...)
Esperemos que isto vá correndo razoavelmente e cá fico a pensar, para já, em Setembro, altura em que irei ter contigo. Mas ainda falta tanto tempo! (...). Escolhi Setembro por verificar que seria essa altura aquela em que eu mais precisaria de descansar. Além disto arranjaria alento para a arrancada final, sempre a mais difícil de suportar.
Setembro será o mês do ano! Será o mês do nosso encontro. Ah, quanto eu desejo abraçar-te, quanto desejo ouvir-te, minha querida, sentir-te feliz junto de mim!
(... ... ...)
Vale de Figueira, 23/3/66
Tenho comigo a tua última carta. Gosto muito dela, meu querido. E, perante a tua alegria e todo o teu entusiasmo pela possibilidade de uma visita próxima, peço-te desculpa se as minhas palavras, que já deves ter em teu poder, ensombram de algum modo toda essa alegria, toda essa esperança. Decerto, meu querido, que compartilho também essa alegria. Mas eu desperdiço muitas vezes possíveis momentos de felicidade, só porque o terrível pessimismo anda comigo.
Vem sim, meu amor. Eu quero-te aqui comigo. Receio esse contacto? São preocupações antecipadas que nada adiantam. É muito mais sublime e nobre encarar os problemas de frente e resolvê-los calmamente no momento oportuno. (...).
Meu M. querido, (...) parte da última carta é já sem valor. Porque eu quero que venhas. Queria mesmo que viesses hoje se tal fosse possível ... Peço muita desculpa se te indispus e quero agora significar todo o meu apoio ao teu projecto de férias. (...). Ah, Setembro! Quando apareces? (...).
(... ... ...)
Quinta de S. Lourenço, 9/4/66
(... ... ...)
Meu querido M., tenho a comunicar-te que passei um domingo de Páscoa na mais completa satisfação e alegria que me foi possível. Estive com os teus pais no Casal Novo.
E então, gostas? Sabes que tu, meu amor, estiveste sempre presente? Não sentiste? Eu sei que te alegras com a nossa alegria, que sentes a nossa tristeza, que comungas da nossa possível felicidade.
Domingo de Páscoa fizeste connosco o voto de em Setembro nos encontrarmos de novo. Saudosamente te esperamos.
(... ... ...)
Maqué, 10JUL66
Não, não mudei de terra. Estou, simplesmente a "estagiar" num "lindo sítio" (...) onde o meu grupo faz segurança a uma ponte. (...). O abrigo onde estamos instalados é uma autêntica fortificação. Ainda bem. (...). Salve-se a pele que o resto suporta-se. (...).
Em Setembro aí estarei. Não poderei faltar. (...). Anseio pelas férias. Não interessa que passem depressa ou que, ao regressar, sinta ainda maior dor do que a que senti quando vim da 1ª vez.
Preciso, em primeiro lugar, de descanso. Depois ... preciso de vos ver, a ti e a todos os elementos que mais unidos estão a este teu querido.
(... ... ...)
Vale de Figueira, 12/7/66
(... ... ...)
Estamos a poucos meses do nosso reencontro mas parece-me que agora os meses têm mais dias e os dias mais horas. É a ansiedade, a vontade de precipitar esse acontecimento (...). Aguardemos então esse dia com alegria e certeza (...).
(... ... ...)
14/9/1966 - Chegada a Lisboa
Após o entusiasmo da chegada, surgiu o problema da repartição do tempo de férias de modo a poder visitar os meus familiares e amigo(a)s mais chegado(a)s. Era previsível que, no fim, alguém se queixaria.
Lockheed L-1049G Super-Constellation: Terá sido este o avião utilizado para as minha férias. Fez a carreira Lisboa-Bissau no período de 1961-1967.
Imagem retirada, com a devida vénia, de «restosde coleccao.blogspot.com»
Cacém, 15/9/66
Reencontrei-te! ... Nos beijos e abraços, gestos de amor e paixão, toda a diversidade de sentimentos, de estremecimentos, de sensações neles experimentei! (...) Não te reconheci, de início, no meio da multidão, meu querido. Era o nervosismo, a ansiedade de cair nos teus braços e de depor nos teus lábios ardentes e sensuais o calor dos meus beijos, (...). Lembras-te do que te disse ontem?
Custaram-me mais a aguentar os momentos de expectativa que antecederam a tua chegada, (...), do que todo o tempo que já passei afastada de ti. (...).
Beijos da tua N., extensivos à tua mãezinha.
Até sábado, meu Amor
Foi chegar e partir de novo no dia seguinte, agora a caminho de Pombal, para os braços da Mãe querida. E os dias de férias lá foram sendo geridos com base em três polos: Pombal, Leiria (ligações escolares e profissionais) e Lisboa (área de trabalho e de residência da namorada).
Logo verifiquei que o tempo era pouco para o que queria fazer. Ainda por cima tinha programado encontrar-me com algumas das minhas correspondentes. Não tendo transporte próprio, estava sujeito aos horários de comboios e de autocarros, transportes lentos e por vezes escassos.
Foi um mês de lufa-lufa, de um lado para o outro. Se houve razões de queixa da Mãe, a verdade é que nunca mas mostrou. Não aconteceu o mesmo com a namorada.
Eu queria acudir a todo o lado, actualizar-me recolhendo informações sobre o que se passava na chamada Metrópole, discutir os problemas político-sociais, esquecer-me do dia-a-dia da guerra, coisa difícil de esquecer quando estava entre os meus entes mais queridos. O tema "guerra" e o fantasma do meu regresso estavam sempre presentes, o tempo tinha outra dimensão, parecia-nos muito mais perto o dia do doloroso regresso.
Perante isto surgiram alguns desentendimentos, não com a Mãe mas com a namorada. Esta, ao invés de ter tido umas semanas felizes junto de mim, deu por si a lamentar-se pelas minhas "longas" ausências. Sabia e compreendia bem que minha mãe tivesse prioridade mas via os outros como seus "inimigos" na luta pela minha presença. Disfarçou mais ou menos bem até ao fim das férias. Mas durante o tempo de espera de embarque, no aeroporto, apareceu-me fria e distante, de pouca conversa e dispersiva nos diálogos, comportamento que atribuí às amarguras da despedida. E assim, disto convencido, regressei à Guiné a 19 de Outubro.
Logo na sua carta de 23 de Outubro me deu o toque quanto à razão da sua frieza na despedida. Poderia o caso ter ficado por aqui mas resolvi replicar a tal toque, defendendo o meu comportamento, de que resultou uma polémica que durou bastante tempo. E só então percebi que não houve só prazer e alegria no nosso encontro e quão difícil lhe foi suportar as minhas ausências, ausências que ela não imaginara virem a ser tão frequentes, principalmente as motivadas pelos encontros que tive com as minhas correspondentes.
Lockheed L-1049G Super-Constellation em Bissalanca, aeroporto "Craveiro Lopes".
Imagem em postal ilustrado, edição «Foto Serra-Bissau».
Mansoa, Outubro-24/66
Cá estou, minha querida, respirando o calor e o "calor" deste famigerado ambiente. Um poucochinho roído de saudades, com uma vontade doida de correr para ti. Cá, a situação continua na mesma. Ainda estou em Mansoa mas talvez vá hoje para Bissorã. Se não for, melhor. Tenho de aproveitar todas as oportunidades que se me deparam para me safar da guerra. Eu quero é ir para ti (...).
(... ... ...)
Cacém, 23/Outubro/1966
Não infiras, pelo meu comportamento um pouco frio na despedida, que nele haveria sinais de desprendimento. (...). Se o sentiste, e agora doi-me sobremaneira, se o meu comportamento devido ao meu estado psíquico nesse dia te induziu a tais conclusões, quero dizer-te agora para o não levares a sério. Contrariamente a tudo isso, e abstendo-me já de pieguices e lamúrias, amo-te cada vez mais e também cada vez mais de maneira diferente, com mais conhecimentos, mais responsabilidades na arte de amar e de me fazer amar.
Com esta nova separação, corajosa e duramente enfrentada, (...), começou para mim mais uma etapa para uma nova vitória para, novamente minada pela saudade, voltar a experimentar a alegria incontrolável do reencontro. (...).
Sem dúvida, meu M. querido, a despedida terá sido bem mais dolorosa para ti. Esperam-te mais uns meses de árdua labuta. Quando actuamos porque é forçoso actuar, em prol do que nunca ousaríamos levantar um dedo, amarfanhando princípios e ideais, nada nos poderá sorrir (...).
Mais um esticão e estarás de volta, meu Amor. Reage ao desalento como sempre o tens feito e, se possível, abstém-te, torna-te estranho a todo esse ambiente de guerra e devassidão política em que estás metido. É a minha opinião, na ânsia de ajuda que te quero prestar.
(...)
Há ainda uma coisa que hoje quero referir, meu M. querido. As nossas relações neste curto período de contacto não se processaram dentro daquele quadro de harmonia que eu esperava. Não tenho de me queixar pois para tal dei contributo. Actuei, reconheço-o, umas vezes por orgulho mas verdadeiramente mais por teimosia e despeito. Nem por isso expresso o meu total arrependimento porque não seria verdadeira ao afirmá-lo.
Meu Amor, é assim a tua N. A que encontraste, modificada, mais bela mercê do teu entusiasmo e da ansiedade em a sentires real a teu lado, reflexo da felicidade e do entusiasmo que a dominavam; a que deixaste, mais melancólica mas mais gaiata, reflectindo as certezas da nossa magnífica união, a total certeza na sobrevivência do nosso Amor; e ainda a que encontrarás no teu regresso, mais bela ainda, mais mulher na reflexão da suprema ventura de nos sabermos definitivamente a respirar no mesmo ambiente, (...).
Nestas três pessoas descortinarás a tua mulher, estou certa. Essa hora soará e as páginas que escreveremos de aí em diante ofuscarão brilhantemente a fúnebre e horrenda palavra guerra, a qual agora nos aparece como prato diário. Paz queremos nós! É esta a ambição que se nos instila para seguramente virmos a alcançar essa paz, (...).
Amorosamente te beijo e abraço, meu querido.
Tua N.
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Nota do editor
Último poste da série de 26 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11767: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (17): Jovens politicamente atentos
4 comentários:
"Vem sim, meu amor. Eu quero-te aqui comigo."
Tão simples, tão sincero, tão de dentro da mulher que nos ama, separada de nós, em tempo de guerra.
Abraço,
António Graça de Abreu
Mais maravilhas da mulher que sabe tudo sobre a grandiloquência do AMOR e de AMAR:
"Reencontrei-te! ... Nos beijos e abraços, gestos de amor e paixão, toda a diversidade de sentimentos, de estremecimentos, de sensações neles experimentei! (...) Não te reconheci, de início, no meio da multidão, meu querido. Era o nervosismo, a ansiedade de cair nos teus braços e de depor nos teus lábios ardentes e sensuais o calor dos meus beijos, (...).
Até sábado, meu Amor."
Maravilha!
Será que merecemos mulheres assim?
Abraço, meu caro Manuel Joaquim, uma saudação, do tamanho do que corre por dentro do coração das melhores mulheres do mundo, à tua grande Senhora.
António Graça de Abreu
Ah ganda malandro !!! E confessas essa coisa das correspondentes, como se a tua hoje Esposa, merecesse. Se fosses meu marido, levavas era um enxerto de porrada.
Um abraço do
Veríssimo.
1. Há dois dias atrás mandei a seguinte mensagem dao Manuel Joaquim:
Parabéns, Manel!... Afinal, tens que continuar a levar a tua cruz até ao calvário...
Por outro aldo, as tuas cartas são inspiradoras e, sobretudo, um documento raro...
Um abraço fraterno. Luis
2. Reforço aqui o lhe disse... Tenho "inveja" de não ter escrito (e recebido) cartas de amor em tempo de guerra... E se as tivesse escrito (e recebido), não sei se teria a coragem (e a pachorra) do Manel, ao publicá-las aqui... Por tudo isso, ele (e ela...) é credor da minha mais alta admiração. Um xicoração fraterno para este amoroso casal... Por certo que o amor em tempo de guerra os uniu ainda mais... LG
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