quinta-feira, 28 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14672: O cruzeiro das nossas vidas (21): Os últimos dias, a família, os amigos e finalmente o embarque, em 28/5/1968 (José Martins)

1. Mensagem do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 27 de Maio de 2015, falando-nos do Cruzeiro da sua vida.

Amanhã, 28 de Maio, faz 47 anos que iniciei o meu primeiro cruzeiro da minha vida, que podia ser o cruzeiro da minha morte.

Abraços
Zé Martins


O EMBARQUE

Os amigos e conhecidos ao saberem da minha mobilização, mesmo sem lhes ser pedido, passaram a fazer as suas recomendações, sobre os problemas e carência comuns a qualquer das frentes de combate. No casão militar adquiri uma quantidade enorme de fardamento, para fazer face às necessidades em campanha, e, sobretudo, porque lá não haveria a possibilidade de adquirir algo que tenha faltado ou que fosse necessário substituir.

Mais uma vez, com as malas às costas e de volta a Torres Novas, nova guia de marcha para Lisboa, para me ir apresentar no Depósito Geral de Adidos, na Ajuda.

Os mobilizados em rendição individual mais não eram que pedras de xadrez num tabuleiro desmantelado, em que era extremamente difícil deslocar-se qualquer que fosse a direcção. Com apatia, insensibilidade, desmotivação ou desprezo, temos de admitir, era assim que os militares, independentemente da patente, eram recebidos. Os soldados que desempenhavam as funções de recepção, não só não tinham qualquer preparação para a tarefa, como não tinham qualquer problema em mostrar desagrado.
A falta de organização dentro da unidade, apesar de ser compreensível dada a quantidade de militares que chegavam e partiam, originavam enormes problemas de logística; a marcação dos embarques e o seu adiamento sistemático, provocava uma sensação de vazio e mal-estar, que obrigava a que cada um procurasse, fora do âmbito militar, o apoio que necessita naqueles dias difíceis.

Cargueiro N/M Alenquer, da Sociedade Geral 
© Foto Google – imagens de navio Alenquer

Esta situação originou que efectuasse várias viagens Lisboa/Porto e Porto/Lisboa, obrigado a noites mal dormidas, a gastos inesperados de dinheiro, e, sobretudo, a despedidas contínuas. Foi numa dessas vezes, ao deixar a casa paterna, que ouvi um barulho fora do normal. Parei. Pensei em voltar atrás. Mas fosse o que fosse, nada poderia fazer. Cerrando os dentes a apertando com mais força as pegas do saco de viagem que transportava, segui em frente, segui o curso da minha própria história.

Só dois anos mais tarde, já de regresso e com a missão cumprida, apesar de ter estado duas vezes de licença na metrópole, é que soube que, perante a impossibilidade de fazer parar e/ou alterar os acontecimentos, o meu pai, na sua raiva e desespero igual à de tantos outros pais, tinha partido o tampo da mesa da sala.

Enfim. Ao cabo de quase uma semana de “embarca hoje de avião”, “o voo foi adiado vinte e quatro horas”, “o embarque aéreo foi cancelado”, “vão de barco dentro de dias”, chegou o dia do meu embarque.

Nesse dia, sabendo da odisseia passada nos Adidos, ou melhor, à sua volta, o meu irmão mais velho, o João, invocando que tinha de resolver alguns assuntos em Lisboa, telefonou e marcamos um encontro para a hora do almoço.

O local do encontro foi algures na baixa lisboeta. Com o meu irmão, vinha a minha cunhada, a Lai.

Como o João era vegetariano, de curta data, rumamos para a Rua da Emenda, ao Bairro Alto, para um almoço de vegetais no restaurante Colmeia.

A ementa era extremamente simples: vários vegetais cozidos, acompanhados com um sumo de laranja e como sobremesa um doce de cenoura.

A minha cunhada apenas observou o almoço. O seu seria a seguir num restaurante mais tradicional na Rua Primeiro de Dezembro, e com uma refeição menos sofisticada: bife com batatas fritas, que, por cavalheirismo e porque realmente “aquilo dos vegetais não era propriamente almoço”, a acompanhei “aviando” uma boa costeleta.

Mal sabia eu que este duplo almoço do dia 27 de Maio de 1968 me ficaria na memória para sempre, sendo recordado, com saudade, especialmente quando me sentava à mesa para a refeição, no destacamento longínquo perdido no leste da Guiné, e tinha para comer, quase invariavelmente, feijão ou arroz com chouriço ou salsichas.

A hora da partida aproximava-se e o carro rumou o Cais da Rocha do Conde de Óbidos.
Naquela tarde de Maio de 68, o cais e a zona envolvente estava calma. Só o N/M Alenquer deixava escapar algum fumo pela chaminé, prenúncio de que aquecia as máquinas para a viagem que iria iniciar.

Não havia a aglomeração de militares e de suas famílias, a que nos habituara, desde há muito, a televisão. Constatou-se que havia, como passageiros, apenas, quatro furriéis e oito marinheiros, que constituíam as tripulações de duas lanchas LDM que estavam embarcadas no convés, mas, no porão, a carga era constituída por armamento e munições, mas que só o viemos a saber quando o navio procedia à descarga.

Despedi-me da família e subi a bordo, onde um velho guarda-fiscal me saudou militarmente. A promoção a Furriel Miliciano era tão recente, que nem sequer raciocinei de que já tinha direito a continência. Correspondi com um “boa tarde” seguido de um aperto de mão, a que o guarda correspondeu entre o satisfeito e o surpreendido.
O alojamento duplo que me estava destinado para os dias seguintes, podia ser catalogado como de cinco estrelas e era de fazer inveja a muitos hotéis da capital. Além das duas camas, dispunha de dois guarda-fatos individuais, uma secretária com material para escrita, e além de uma zona de descanso, dispunha de instalações sanitárias amplas e modernas.
Mas a família tinha ficado no cais. Há que voltar ao convés para corresponder ao sinal de despedida que, os que ficavam em terra, queriam enviar.

Tirando a boina e despindo o blusão, fui até à amurada.

Ouviu-se um silvo agudo seguido pelo roncar das máquinas do N/M Alenquer e do rebocador que o auxiliava na manobra.

Algo estranho se passou, pois um militar não chora (?). Tirei um cigarro do bolso e escondi as lágrimas, que me escorriam pela cara abaixo, atrás do fumo que o mesmo libertava.

Lisboa ficava para trás, iluminando-se, cada vez mais longe, na noite cálida. A proa indicava o futuro e o futuro, naquele dia, chamava-se África...

Chamava-se Guiné!

12 de Julho de 2000
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10958: O cruzeiro das nossas vidas (20): Viagens de avião de ida para a Guiné, e volta, patrocinadas pelo Estado Português (Henrique Cerqueira)

4 comentários:

Luís Graça disse...

Jé Martins: Excelente relato. Parabéns por teres "desencantado" este escrito, já com 15 anos... Dizemos bem, com ironia, foi o "cruzeiro das nossas vidas"... Todos estes relatos de partida para a guerra, para o TO da Guiné, são tão diferentes e tão iguais. Não me canso de os ler e reler, ainda há dias publiquei um poema alusivo à minha partida no T/T Niassa, em 24/5/1969, um ano depois de ti... Cada camarada, pela sua personalidade, história de vida, origem, etc., conta a "coisa" de maneira diferente, uns valorizando o estado de espírito, outros descrevendo em detalhe as condições a bordo, essas, sim desiguais para oficiais, sargentos e praças...

Mas já agora diz-me porque é que tu partiste do Cais da Rocha de Conde Óbidos e não do Cais de Alcântara, esse, sim o "cais dos cruzeiros"... Tu saberás a resposta, mas, olha, eu só a descobri há tempos... E há malta que faz confusão com as duas gares marítima, a "nossa!", a da Rocha de Conde de Óbidos, e a de Alcãntara... Tenho aqui fotos, tiradas há dias, no Salão Almada Negreiros, da Gare Marítima de Alcântara...Há uns anos atrás tambémn andei a (re)visitar a Gare Marítima da Rocha (de) Conde de Óbidos...

Maldita sorte, que nem direito tivemos a uma "visita guiada" aos paineis do Almada Negreiros, hoje famosos, obras-primas da pintura portuguesa do séc. XX... Só me lembro de ter chegado, de camboio, ainda de noite, ou pela madrugada, e nos terem enfiado no navio... Ou talvez não: ainda tivemos, os graduados, umas horitas para beber um copo e, alguns, mais afoitos, para "mudar o óleo", na estação de serviço mais próxima, que era o cais do Sodré...

Anónimo disse...

José Martins
28 maio 2015 11:00


O Carlos não brinca em serviço. De madrugada já estava no seu posto. Um abraço para ele e uma saudação à tabanqueira Dina...

O texto sobre a Grande Guerra está em curso. Versará os "antecedentes portugueses", os problemas africanos e a "gana" que os nossos políticos puseram na entrada da mesma, enquanto os ingleses assobiavam para o lado, tentando ignorar o "nosso" (dos políticos) de ir para a guerra.

Quando os "promotores da guerra" forem para a frente de combate, as guerras acabam!
Abraço para todos

Zé Martins

José Marcelino Martins disse...

Sinceramente, Luís, nem eu sei donde parti.
Fui "levado" até lá. Não sei se foi da Rocha do Conde de Óbidos ou de Alcântara e, a a esta distancia, não sei identificar.
Aliás, era para ter ido de avião que, devida a tantos adiamentos, me enviaram de barco.
Recordo-me sim que, almocei duas vezes (também tema de um texto) e cheguei ao cais por volta das 18 horas.
A minha surpresa? Um guarda fiscal que se levanta a custo, tinha idade para ser meu avô, perfila-se e faz a continência.
Só no camarote me apercebi, ao tirar o blusão da farda, que tinha as divisas de furriel.
Coisas de "novatos".


Luís Graça disse...

Zé: Vou publicar dois postes sobre os paineis do Almada Negreiros... Eu também fazia confusão com as gares marítimas do Porto de Lisboa... Com as obras de modernização do Porto de Lisboa, no tempo do Estado Novo, o cais de Alcântara (e o molhe oeste do cais de Santos) ficaram reservados para as companhias de navegação estrangeiras. Os navios nacionais, com destino às ilhas adjacentes e a África. partiam do cais da Fundição, Terreiro do Trigo (junto a Santa Apolónia) e molhe leste do cais de Santos (ou seja, cais da Rocha do Conde de Óbidos, referência a um palácio do séc. XVII; do Conde de Óbnios, onde é hoje o edifício da Cruz, e que fica em frente)...

Abralo grande. Luis