Queridos amigos,
Aqui temos o Macbeth guineense.
Macbeth tem sido uma tentação para escritores e cineastas.
Em 2001, foi levado ao palco Umabatha, uma adaptação de Macbeth à tragédia sobre a identidade zulu no começo do século XIX. No cinema, temos O Último Rei da Escócia, que recria a sociedade do Uganda sob a ditadura de Idi Amin. Os Fidalgos de Bissau foram encenados por um polaco que trouxe um Macbeth ao Teatro da Trindade, a música era de Braima Galissá.
“As orações de Mansata” foram representadas em 2013 em vários teatros do país e em Santiago de Compostela. Foram proibidas em Luanda, pois claro.
Abdulai Sila ganhou a aposta com este seu realismo mágico, a linguagem rude e brutal das mulheres e dos conselheiros que incitam a tomada do poder. De forma subtil, Abdulai Sila deixa o retrato da tirania interminável nesta história repleta de desordem e derramamento de sangue.
Um abraço do
Mário
As orações de Mansata, por Abdulai Sila
Beja Santos
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Em “As orações de Mansata”, tal como em Shakespeare, há bruxaria, fantasmas, sobrenatural, predições, a sistemática execução de colaboradores, o déspota vive a paranóia das traições, o déspota quer ter acesso a formula que lhe garanta perpetuar-se no poder, seja a que preço for. Não há Lady Macbeth mas há as três mulheres de Amambarka que funcionam como as impulsionadoras da suprema ambição do ajudante do déspota que lhe quer tomar o lugar, como irá acontecer. Em toda a peça fala-se sempre de poder.
No primeiro ato, alguns discípulos de escola corânica pedem a um alegado vidente que os ajude, em sentido alegórico são cegos que querem ver a beleza da nação, querem ter fé no alto dignitário da nação, a sua maior esperança está no alvorecer da nação que irá renascer das cinzas para se tornar no mais belo jardim do mundo. Mais adiante, três raparigas, simples katanderas (jovens auxiliares num santuário animista) correm atrás do vidente, simbolicamente este primeiro ato é a esperança da gente jovem na regeneração do seu atribulado país.
O segundo ato passa-se no gabinete do Supremo Chefe, Mwankeh está reunido com os seus conselheiros, um deles fala ao telefone com uma das mulheres do déspota e depois tratam de negócios, o Supremo Chefe lamuria-se: “O meu dinheiro roubado na Europa, os meus rendimentos cada vez mais reduzidos, a oposição cada mais ativa e agressiva…”. Todo o seu reinado foi construído com muito sangue, o déspota anda inquieto, agora tem medo, sente que há muita gente a querer apunhalá-lo pelas costas. Fala-se num redentor, poderá ser um perigo potencial, é preciso encontrá-lo, neutralizá-lo.
O terceiro ato chama-se Poder malgós (amargo), o conselheiro Amambarka é vexado pelas suas mulheres, acusam-no de estar irreconhecível, o Supremo Chefe não quer nada com ele, perdeu amigos, perdeu influência, é espancado, há mesmo um fantasma que o increpa, o outrora poderoso conselheiro é agora um nojento farrapo, ele que fora o torturador dileto do ditador, o fantasma insinua que ele pode recuperar todo o prestígio que tivera no passado, tem que provar que não é cobarde, tem que mostrar que é macho.
No quarto ato, Amambarka reúne-se com alguns dos conselheiros e traçam as linhas da conspiração, ele exige-lhes um juramento de fidelidade, ouve-se a voz do fantasma a lembrar que toda aquela gentalha tem sido desleal e infiel a vida inteira, estes conspiradores irão ser devorados um a seguir ao outro. Uma outra voz de fantasma incita-o a tomar o poder: “Move-te, grande homem, para que a nação não fique eternamente subordinada à mediocridade, à pobreza de espírito e à falsidade”. Compete a este conspirador resgatar o esplendor da nação oprimida. O conspirador entra em delírio, já sonha em carros e vivendas, em castelos e mulheres, será o prémio de chegar a Supremo Chefe. Está montada a arquitetura da tragédia e o derramamento de sangue que a acompanha.
No quinto ato, tudo parece correr mal aos conspiradores, mas Amambarka recorre a um expediente infalível, ele que durante anos fora o responsável pela segurança da Suprematura, conhece todos os caminhos para chegar ao coração do poder. E quando os conselheiros na presença de Mwankeh interrogam um apoiante de Amambaka, na altura em que a conspiração está completamente desmascarada, Amambarka entra na sala e liquida o déspota e os conselheiros.
No sexto ato, o novo supremo chefe vai entrevistar videntes, pede-lhes que lhe dêem os segredos de Mansata: “Preciso desses poderes, não para benefício pessoal, mas para fazer progredir a nação. Com esses poderes, não vamos pedir esmola a nenhuma outra nação, vamos ser autossuficientes. Vamos construir hospitais, vamos ter escolas para as crianças. Reparem numa coisa: Hoje é o branco que tem todos os poderes do mundo. Se precisarmos de viajar, temos que pedir ao branco, tem que ser com o carro ou com o avião que o branco construiu…”. O novo déspota procura seduzir os videntes que lhe dizem com a maior naturalidade que Mansata não existe. Só existem orações que para funcionarem é preciso purificar o corpo. E na sala de visitas da Suprematura Amambaka é apunhalado pois está em curso uma conspiração de conselheiros, eles querem ter acesso a essas orações. E dá-se uma chacina, na agonia Amambarka liquida os conspiradores e morre.
Michel Laban, acerca desta terrível peça de teatro teceu os seguintes comentários: “Será que um escritor pode ignorar os graves disfuncionamentos de que sofre a sociedade em que vive? O seu deve não será conferir um caráter útil à sua produção literária? As orações de Mansata confronta-nos com graves problemas sociais – o facto de tratar-se de uma peça de teatro faz com que as preocupações do autor se traduzam de ma maneira mais viva. Podemos ficar agradecidos a Abdulai Sila!”.
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Nota do editor
Último poste da série de 28 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14674: Notas de leitura (718): "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial" (autor: João Gaspar Carrasqueira, pseudónimo literário de A. Marques Lopes): Excertos (Parte I): "Tinha-se interrogado várias vezes sobre as razões que o levaram a entrar no seminário"...
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