segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15398: Notas de leitura (778): Américo Estanqueiro, álbum fotográfico sobre Dulombi (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Janeiro de 2015:

Queridos amigos,
Graças ao nosso confrade Carlos Silva que tão prestimosamente me franqueia a sua biblioteca, acabo de conhecer o talento do nosso camarada Américo Estanqueiro que aterrou em Dulombi em época de transição.
Falando por mim, ir a Dulombi numa daquelas fainas que o Luís e eu tão bem conhecemos, de recoveiros distribuidores de toda a sorte material, significava um bom passeio, uma pausa entre as emboscadas noturnas, as colunas ao Xitole, as operações e correlativos.
O que me impressiona nas imagens de Américo Estanqueiro é a viagem entre dois mundos, a captação da bonomia e de uma vida simulada numa aparente pacificação e a contenção da crueldade da guerra, na chegada dos mortos, espojados aqui e acolá, as viaturas destruídas parecem ganhar vida, e uma viagem de "periquitos" a caminho do Xime parece algo de funambulesco, dado pelo paradoxal daquela montanha de bagagens e a vigilância das metralhadoras.
Para que conste.

Um abraço do
Mário


Américo Estanqueiro, álbum fotográfico sobre Dulombi

Beja Santos

O nosso blogue anunciava em finais de 2007 uma exposição que decorria na Fundação Mário Soares com fotografias de Américo Estanqueiro, da qual se publicou um álbum, na notícia do blogue há mesmo quem o exiba. E depois silêncio. O historiador de fotografia José Pessoa apresenta-o nos seguintes termos:
“Américo da Conceição Estanqueiro nasceu em 15 de Abril 1947, na aldeia de Vendas de Maria, concelho de Alvaiázere, distrito de Leiria. Quando completou o 1.º ciclo, e devido às dificuldades económicas da família, empregou-se numa fábrica de lanifícios onde durante dois anos ganhou o dinheiro necessário para voltar a estudar, tendo completado o 2.º ciclo com 21 anos de idade. Em 1968, fez a recruta nas Caldas da Rainha e a especialidade de atirador em Tavira. Pediu para fazer a especialidade em Foto-cine, o que não lhe foi concedido. Foi mobilizado no Regimento da Infantaria de Abrantes e embarcou para a Guiné em 24 de Abril de 1970.
O seu primeiro contacto com a fotografia foi através do irmão António, na altura empregado da Kodak. Este tinha acabado de fazer a sua comissão em Moçambique, durante a qual ganhou dinheiro fazendo fotografias dos companheiros de armas. Este deu-lhe esse exemplo e ensinou-o a dar os primeiros passos. Parte da formação profissional do Américo Estanqueiro foi feita através da leitura de livros e revistas, pela sua iniciativa.
Começou logo a concretizar o seu objetivo durante a recruta, revelando as imagens na sua casa em Lisboa. Era tudo a preto e branco. Logo que embarcou montou um laboratório a bordo. O negócio aumentou significativamente quando chegaram ao aquartelamento na Guiné, com solicitações constantes de retratos, mais ou menos compostos com elementos locais. Trabalhava com uma câmara Minolta 6x6cm e imprimia papel Agfa lustroso. Os rendimentos desta atividade paralela valeram-lhe umas abastadas férias em Bissau, tirou a carta e enviou 85 contos para casa, graças ao pré que descansava intacto.
Um mês antes de regressar deu todo o material ao soldado Adriano Francisco, que o tinha ajudado nos trabalhos fotográficos e vendia as fotografias (não ficava bem um furriel proceder à venda e à cobrança direta aos soldados). Infelizmente o Adriano acompanhou as malas e veio a falecer em Bissau, vítima de uma crise súbita de tuberculose.
Américo Estanqueiro regressou a Portugal e montou uma casa de fotografia na Estrada da Damaia, que não veio a ter sucesso. Voltou à terra e montou um estúdio fotográfico em Figueiró dos Vinhos. Em 1977, recebeu um convite para ir para a Venezuela, onde se empregou no maior estabelecimento do ramo, em Caracas. Dali saiu para arrancar com dois novos laboratórios, como responsável técnico. Porém, a desvalorização da moeda venezuelana levou-o a regressar à pátria. No regresso, abriu o Centro Fotográfico de Alcobaça. Ao tempo em que se realizou a exposição era empregado da firma Foto Industrial 2.
O que aconteceu entretanto aos cerca de 6 mil negativos realizados durante o serviço militar? Deitou-os os fora logo que perdeu contacto com os camaradas e considerou que se tinham tornado inúteis. Nem um sobreviveu para a amostra. Resolveu então conservar, das provas impressas em África um conjunto de imagens que mostrasse às suas filhas a viagem que começou no Cais da Rocha”.

Américo Estanqueiro, ex-Fur Mil da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72) autografando o catálogo da sua exposição para o antigo camarada de armas Joaquim Alves, ex-Fur Mil Enf.




Agora é a minha vez de falar. Ao tempo da minha comissão (68/70) a região de Dulombi era sossegada, guerra a sério era a uns bons quilómetros daqui, no Xitole. Havia a pressão do PAIGC, é certo, raptos, intimidações, Quirafo foi várias vezes atacada. Daqui a Bambadinca, nesses tempos, era um simples passeio, levava-se a arma por precaução. Na intervenção em Bambadinca, uma das tarefas rotineiras era levar mantimentos, munições e material de Engenharia, tarefa menos espinhosa não havia. Folheio o álbum e tudo me parece convencional até ao porto do Pidjiquiti. A foto a bordo da LDG “Montante” não deixa de impressionar, por um amontoado de gente encostada às malas, o sossego vem das duas armas, há pessoal placidamente encostado à amurada, o fardamento a cheirar a novo. Quem ali vai é CCAÇ 2700. E embrenhamo-nos em Dulombi, Américo Estanqueiro mostra gente sorridente em tempos de pausa, simulações de guerra, bom material para mandar à família e deixá-la descansada. E depois surgem os sinais da guerra, imagens de minas, interpoladas com o folclore das lavadeiras de peito à mostra e nosso militar em tanga, perfilado com elementos da população local. Há imagens nos estragos causados por um tornado, em 25 de Abril de 1971, e legenda não houvesse bem podíamos pensar que houvera para ali um bom foguetório. Do simulacro, da atmosfera de bonomia salta-se, e com que dureza, para a tragédia: um Unimog com soldados mortos; um outro Unimog que acionou uma mina anticarro, morreram dois soldados, o que há de incomum é a máquina ferida que parece dar um murro e saltar da esquadria da fotografia; o fotógrafo escolhe o ângulo, temos agora um ferido em combate atravessado na maca, levanta a cabeça como que para assegurar a quem o vai ver que está vivo a despeito da farda esfarrapada, dos pensos e da sua face marcada por sequelas várias; e há um soldado africano morto, o fotógrafo cuidadosamente escolhe um ângulo que não escandalize mas que faz vibrar o coração, um outro soldado africano toca-lhe delicadamente no antebraço, pela expressão pesarosa parece querer ressuscitar quem ali jaz em chão térreo, sob o mosquiteiro. Não menos doloroso é uma outra fotografia de um outro soldado morto em combate, jamais saberemos se é branco ou africano, está tudo concentrado no seu corpo sofrido, a cabeça entrapada em gaze, não faltam ligaduras até aos pés, há corpos inclinados, não têm direito a mostrar consternação; até uma imagem de urnas ganha humanidade, são caixões alinhados com corpos embrulhados em mantas, alguém se despede ou procede a reconhecimento levantando a manta junto ao rosto.

A CCAÇ 2700 substituiu a CCAÇ 2405, a que pertenceu o nosso confrade Paulo Raposo, que vivenciou o desastre do Cheche, em 6 de Fevereiro de 1969. A companhia teve sete mortos e quatro feridos e meia centena de baixas por doença. E os tempos tinham mudado, a região já não dispunha de serenidade, como no meu tempo: Dulombi sofreu flagelações, emboscadas, minas antipessoais, mina anticarro. Em 1971, a região sofria o impacto de ter o Boé e a outra margem do Corubal com uma nova agressividade. Agora a guerra era outra coisa.

As fotografias de Américo Estanqueiro são eloquentes pela vibração da paz que se quer manifestar às famílias e pela contenção de uma guerra que parecia, naquele ponto do mapa, inimaginável.
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15387: Notas de leitura (777): “O Mundo Português”, revista de cultura e propaganda, editada pela Agência Geral das Colónias em conjunto com o Secretariado da Propaganda Nacional em Abril de 1936, um número dedicado à Guiné (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Juvenal Amado disse...

O 3872 rendeu o 2912 e a 3491 substituiu a 2700

Ainda em período de transição as duas companhias tiveram um violento encontro no mato com IN de que só milagrosamente não resultaram baixas.
Houveram kikos, dolmens, e cantil furados mas felizmente não houve danos pessoais.

Depois da 3491 ter ficado sozinha a sua zona de acção foi de certa maneira ultrapassada o que ocasionou que a companhia do Dulombi viesse reforçar Cancolim, Galomaro e Nova Lamego. Foi uma companhia com muito trabalho mas foi a única do 3872 que regressou sem baixas.

Um abraço