1. Em mensagem de hoje, 25 de Janeiro de 2016, o nosso camarada José Brás (ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo,
1966/68) enviou-nos este texto subordinado à sessão de lançamento do livro "A Tropa Vai Fazer de Ti um Homem" da autoria do camarada Juvenal Amado, ocorrido no passado sábado, dia 23 de Janeiro.
NA APRESENTAÇÃO DO LIVRO DE JUVENAL AMADO
Gostei muito de ver em forma de livro as
recuperadas memórias de Juvenal Amado, a partir
da sua experiência vivida na ex-colónia portuguesa
da Guiné, por si próprio tornadas palavra escrita
que nos serve como um rio que flui a nossos olhos
plantados numa das margens, sem que importe
muito considerar em qual dos lados da corrente
desta água clara.
E uso aqui a imagem do rio, não por acaso, mas
porque, lendo duma só vez as mais de trezentas
páginas de caracteres em corpo pequeno e algumas
fotografias a preto e branco, de rio é a sensação que
me colhe pelo movimento das imagens que
desfilam, ora em placidez panorâmica, descansada
num olhar contemplativo e quase intimista, ora em
torrente apertada e tumultuosa na velocidade do desfilar das histórias e das angústias e
revoltas.
É certo que um rio tem sempre duas margens, como já se insinuou atrás sem
ingenuidades inúteis entre nós que tão bem nos conhecemos já. E que poucas vezes
coincidem, tim-tim por tim-tim, as verdades que cada observador abarca, estando
cada qual em margens diferentes, ou mesmo na mesma margem e no mesmo exacto
tempo.
Então, quando se trate de chamar a longínqua memória ao tempo presente, as
diferenças de relato, no modo e mesmo no conteúdo, se diferenciam
significativamente e às vezes mesmo antagonicamente, entre os contadores.
E, depois, um rio não tem apenas as duas margens que se avistam ou não entre si na
hora do correr da água que passa, mas tem também uma montante, quer dizer,
verdades que antecedem o lugar de observação, desde a nascente e pelo percurso
variado e influenciador, e uma jusante, quer dizer, verdades que são consequência da
realidade observada no lugar da margem de quem falou da água que viu correr e a
marcou irremediavelmente com seus sinais.
Juvenal Amado tem pressa de contar. De contar muito. De contar tudo. Por sorte e
por habilidade própria, nem essa pressa nem o desejo de falar tudo, prejudicam o seu
contar, nem na forma, nem no estilo, nem no encadeado das histórias que nos serve.
Em primeiro lugar, talvez, porque nunca esteja sozinho na sua margem, ou porque
nunca feche a sua margem aos que com ele calharam embarcar no Cais da Rocha e
caminhado nos vinte e sete meses de mato, de bolanhas, de combates, de patusc
de dores, de brincadeiras, de raivas e de esperanças, nem mesmo, aos que, na outra
margem, lhe amarguravam os dias.
Em segundo lugar, talvez também porque a sua forma comovida de semear os contos
que nos traz sobre os trambolhões e sobre a amizade, sejam o retrato chapado dele
próprio, da sua tendência solidária, da sua franqueza, da sua descomplicada maneira
de contar, da certeza dos amigos que conserva e lhe atestam a grandeza da alma e a
inteligência humana.
O rio do Juvenal nasce em Alcobaça e faz-se de muitos afluentes que nele entraram
após a escola primária. “Operário em construção” logo a seguir na indústria vidreira,
moralmente amparado entre um pai republicano e o operariado da região,
engrossando o caudal nos anos que separaram dos quartéis militares do puto e o mar
no caminho da Guiné.
A Guiné em si própria, traçada de rios e de rias; de mares verdes de mato; de medos
e de convicções; de águas que lhe emendam os erros, lhe confirmam algumas
certezas, lhe ampliam a humanidade.
A jusante, a confirmação de que um rio nunca corre duas vezes no mesmo lugar. A
perspectiva de voltar ao lugar da partida, aos amigos deixados dois anos e tal antes,
ao convívio que o tinha construído durante quase vinte e dois anos, era uma ilusão
que se esfumou. Os seus amigos tinham ficado no RALIS a entregar os farrapos da
velha farda; tinham ficado no cais de desembarque, abraçados aos seus familiares;
tinham ficado na viagem miserável no Niassa entre Bissau e Lisboa; tinham ficado
nas matas da Guiné, uns de facto para sempre, e outros aparentemente inteiros no
que lhes restava do que tinham quando haviam partido.
Na sessão de apresentação do livro do Juvenal, com uma sala muito composta por
amigos e, em especial por antigos companheiros das matas e actuais da Tabanca
Grande, no fim das intervenções, foi dada oportunidade para algumas perguntas. De
imediato a questão que foi levantada e que constituiu a o tema único do período, foi
sobre as dúvidas levantadas pelo título do livro “A TROPA VAI FAZER DE TI UM
HOMEM”.
Já quase a fechar, porque tomei o título do livro como uma subtil provocação ao
leitor, recurso bem esgalhado para suscitar o interesse da leitura, pareceu-me
apropriado arredondar a conversa e fazer numa curta intervenção, uma abordagem
ao tema, abordagem que reproduzo aqui de memória.
“O homem que alegadamente a tropa faria, não passa ao olhar de hoje, de uma falsa questão.
O homem, e quem diz homem diz mulher, não é um exemplar padrão de que se fazem, por fora
e por dentro, milhões de cópias espalhadas pelas sete partidas do mundo, Igual, o homem é
apenas nas suas ânsias de ser feliz enquanto cá anda. Porém, nos modos de chegar a essa
felicidade, cada um de nós tem um caminho e um agir diferentes.
Como diz o poeta espanhol António Machado, não existe caminho. É andando que fazemos o
nosso caminho. Também não existe um homem padrão e cada homem se faz crescendo nas
realidades que cercam cada qual, nos condicionamentos, nas dúvidas e nas escolhas face às
realidades diferentes.
José Ortega y Gasset, para continuarmos em Espanha, diz “O homem é o homem e
suas circunstancias”. Quer dizer, o homem não é em absoluto o produto exclusivo das
circunstâncias em que se faz, mas é-o em grande percentagem do dele é público ou íntimo. O
homem pode pela sua vontade, combater as circunstâncias que o envolvem e, por vezes traçar
partes de si próprio. Contudo, na sua maior parte, vive como o rio apertado pelas margens das
circunstancias.
Portanto, a tropa condicionou o crescimento de cada soldado mas a cada um à sua maneira
porque não viveram todos e ao mesmo tempo, nem os lugares, nem todos os acontecimentos.
Portanto, da tropa e da guerra vieram milhares de homens, diferentes uns dos outros à vinda,
como diferentes eram à ida, nenhum voltando, pode dizer-se, o mesmo homem que era quando
partiu, influenciado pelas circunstâncias que o condicionaram sob o olhar particular de que
era portador”.
José Brás
____________
Nota do editor
Último poste da série de 25 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15666: Agenda cultural (460): Lançamento do livro "A Tropa Vai Fazer de Ti Um Homem", da autoria de Juvenal Amado, levado a efeito no passado dia 23 de Janeiro no Chiado Clube Literário e Bar - Galeria Comercial Tivoli Fórum, em Lisboa (Miguel Pessoa)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
“O homem que alegadamente a tropa faria, não passa ao olhar de hoje, de uma falsa questão.
Pego-te na palavra José Brás:
De facto seria inconcebível, hoje uma mãe ou um pai, que em geral só têm um filho ou nenhum, criarem um dia um filho a pensar que quando fosse "grande" ia servir a pátria de arma na mão.
Ou imaginar o seu menino que nos tempos livres anda no piano ou no ballet, aos vinte anos, numa farda de cotim a rastejar nas manobras militares e a beber cerveja por uma bota de meio cano.
Mas é nossa obrigação esmiuçar até ao tutano a Guerra do Ultramar, a guerra que nos calhou.
E este assunto é muito interessante para compreender aqueles tempos, embora pouca gente actual queira saber destas nossas coisas.
Já está tão longe esta guerra que imensa gente da nossa geração nem lhe ficou na memória que o último ministro do Ultramar chamava-se Baltazar Rebelo de Souza.
Esmiucemos, porque a luta está para continuar noutros moldes.
Cumprimentos
Pois é, caro amigo António Rosinha!
A luta (ou o que lhe quisermos chamar mesmo que não passe da alma para fora) está par continuar e o mundo não melhorou para os que pensavam em dias melhores.
Está perigosa a vida e preocupa-nos a todos que estamos de abalada, deixamos filhos e netos que têm que cavar todos os dias, o dia seguinte.
Poderá ser do nosso ocaso esta falta de esperança e este medo do futuro dos que cá ficam. Mas que está de recear, isso está.
Abraço, companheiro.
José Brás
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