sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15686: Os nossos seres, saberes e lazeres (138): O chamamento da terra (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 27 de Janeiro de 2016:


O CHAMAMENTO DA TERRA

Hoje estou um pouco excitado com a perspectiva da grande viagem que programei para amanhã, ao meu chão, às minhas origens, o que nesta fase da minha vida representa sempre uma fuga saudável à floresta de cimento em que diariamente vou envelhecendo, para me internar no meio da natureza, onde nasci e fui criado.

É um regresso a esse berço materno, onde fui embalado pelas brisas mais suaves ou mais agitadas que perpassavam pelos ramos, dos freixos, dos olmos e dos sobreiros, sopradas pelo vento cieiro ou pelo vento galego. A minha memória afectiva faz a ponte entre esses primeiros anos e os actuais e eu esqueço os anos que já passaram para sentir somente a essência da vida que está antes, durante e depois das nossas existências.

O paraíso é a eternidade em que o tempo deixa de existir quando as condições naturais ou sobrenaturais o permitem. Como eu, tenho conhecido outros que com a idade a avançar procuram a felicidade nessa viagem aos princípios da vida, na procura dessa eternidade. Há alguns anos conheci uma senhora, natural de uma freguesia, que distaria cerca de 15 quilómetros da minha que me disse que o pai dela, já com 90 anos, ainda ia, frequentes vezes, sozinho de automóvel, visitar a sua terra.

Actualmente tenho um amigo, com 84 anos, que faz quase o mesmo percurso, muitas vezes só e muitas vezes à revelia da família que teme pela saúde dele. É o chamamento da terra. Essa terra que nos continua a acariciar com aquela brisa fria e seca tão diferente do ar atlântico e húmido das grandes cidades do litoral. É a cor cinzenta, a desolação e tristeza dos montes e vales quase despidos de vegetação no Inverno, que imploram a nossa companhia e que desabrocham na Primavera em flores de esteva, de amendoeiras, de giestas, em papoilas, campainhas, flores de raposa, folhas verdes de muitas tonalidades numa sinfonia de cores e tonalidades que os pássaros cantam, para nos receber em tom festivo.

Paisagem Transmontana
 Com a devida vénia ao autor da foto

Nesse regresso periódico procuramos a liberdade e expansão do ser que nos dá a contemplação dessa terra vasta formada por montes, alguns maiores outros menores, nessa imensidão que a nossa vista alcança. Sentimos a respiração forte dessa terra brava e sadia e passamos a respirar na mesma cadência esse ar puro e original que nos enche o peito e nos transporta a alma por esse mar imenso de montes e vales. Nesse ambiente despoluído os nossos sentidos ficam mais despertos, a visão ganha profundidade, o olfato embriaga-se com os aromas e fragrâncias que povoam os campos e as florestas.

O gosto procura os sabores de todos esses produtos naturais que os lavradores criam nos campos, nas hortas e nos lameiros e outros que as mulheres na sua sabedoria fabricam nos lares. Além dos vegetais de boa qualidade, produzidos pelo homem sazonalmente nas hortas, procuramos os míscaros, as azedas, os agriões, as merugens, os espargos e outras delícias que a natureza produz espontaneamente.

Vamos à procura de uma boa posta de vitela que sabemos que encontraremos num talho ou restaurante mais próximo ou distante. Com saudades dos enchidos do fumeiro que as nossas mães fabricavam à lareira nos meses frios do Inverno, iremos procurar as mulheres mais sábias no fabrico da alheira, do salpicão, da linguiça, do bulho e doutros enchidos. Felizmente que as transmontanas e os transmontanos cada vez se preocupam mais com a qualidade dos seus produtos tradicionais e dessas viagens o nosso paladar vem sempre mais reconfortado.

Um abraço a todos.
Até breve.
Francisco Baptista
____________

 Nota do editor

Último poste da série de 27 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15676: Os nossos seres, saberes e lazeres (137): O ventre de Tomar (2) (Mário Beja Santos)

6 comentários:

CampelodeSousa disse...

O bom filho volta sempre á casa PATERNA |Mas que gesto de gratidão tão belo, que amor , que saudade demonstrada pela terra que te viu nascer !!!
Francamente, eu fico sem palavras ! Só queria saber escrever assim com tanta beleza, dizer tanto, tanto, num texto tão pequeno !!!
Eu quando posso, também deixo este horizonte de cimento armado e parto para a minha aldeia em busca de algo que parece ter perdido em tempos de criança, algo que deixei começado e nunca mais terminado.
Cumrimentos,
CampelodeSousa
Bafatá/Nova Lamego 1970/1972

Anónimo disse...

Subscrevo integralmente as palavras do comentador anterior. Eu também gostava de saber escrever e de perfumar as palavras como tão bem sabe fazer o Francisco. Ele não escreve só, ele descreve a beleza das paisagens, fala das pessoas que as povoam e dos seus saberes, como um exímio pintor se passeia com o pincel sobre uma tela - com a mesma emoção e naturalidade.

Há muita gente a falar das suas origens mas poucos a fazê-lo como o Francisco Baptista.

Parabéns, e aparece mais vezes
Um abração
Carvalho de Mampatá.

Bispo1419 disse...

Belo texto, caro Francisco Baptista!
Obrigado pelo prazer que a sua leitura me deu.
Abraço
Manuel Joaquim

J. Gabriel Sacôto M. Fernandes (Ex ALF. MIL. Guiné 64/66) disse...

Também gostei muito.
Abraço,
JS

Antº Rosinha disse...

Aquela fabulosa foto da paisagem transmontana, se fosse feita quando Francisco Baptista andava na 1ª classe não tinha tanto verde, era mais para o castanho..

Esta foto que foi tirada em Fevereiro ou Março, (o verde e aquelas duas ou três jeiras de terras lavradas para a sementeira), no tempo de Francisco criança, haveria umas pequenas ilhas de mata verde, num mar de terras lavradas.

Só que os caixotes KodaK eram a preto e branco.

Mas isto é lindo,ontem, hoje e amanhã.

Cumprimentos

JD disse...

Caro Francisco,
Só faltaram diálogos de animais nas pastagens ou nos quintais, com rimas versejantes, para teres dado a forma de écloga ao teu texto romântico, porque os cenários bucólicos já os montaste, com cor, vida e tudo.
Realmente, como referem os anteriores comentários, tens a qualidade sublime de nos fazer recordar - aos que tiveram experiências rurais, ainda que fugazes como no meu caso - o que foram os tempos simultâneamente dificeis, alegres e romântico-romanceiros dos tempos provincianos da nossa meninice.
Um grande abraço
JD