quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15676: Os nossos seres, saberes e lazeres (137): O ventre de Tomar (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Dezembro de 2015:

Queridos amigos,
Trata-se de uma cidade que era a sede da Ordem dos Templários, sucedeu-lhe a Ordem de Cristo, por aqui andaram o Infante D. Henrique, D. Manuel I, D. João III e Felipe II, o Infante a fazer os seus negócios, D. Manuel a embelezar a Charola, o filho a fazer exatamente o oposto, a esconder a Charola, o seu puritanismo opunha-se às ideias ousadas do Venturoso, e Felipe II não se esqueceu que foi em Tomar aclamado rei de Portugal, e deu manifestos sinais de gratidão.
Depois a cidade aproveitou o surto industrial, teve fiação e moagens, uma classe argentária, uma classe operária, uma pequena burguesia de funcionários e negociantes, e ali bem perto os proprietários agrícolas, todo aquele chão que vai em direção ao Entroncamento é terra de eleição.
A cidade, com o seu património religioso e civil, está marcada por esses tempos áureos. E todo este comércio que se anda a vistoriar é um reflexo do caráter tomarense, há para aqui objetos e indumentárias para todas as bolsas. E, insiste-se, vive-se aqui numa amenidade e afabilidade singulares, a sociabilidade é patente na cultura e no desporto; e há a tal dimensão templária assumida como um culto, um orgulho das gentes que afanosamente preparam um evento extraordinário de quatro em quatro anos, a Festa dos Tabuleiros, acontecimento irrepetível em qualquer ponto do país.

Um abraço do
Mário


O ventre de Tomar (2)

Beja Santos

Importa esclarecer o que anda o viajante a bisbilhotar. Umas vezes, fascina-se pela polpa dos edifícios, sente-se atraído por um pormenor, fica para ali a olhar e a comparar, relaciona aquele espécimen arquitetónico com outras eras, e diz de si para consigo: como era Tomar naquele tempo? Não passa adiante com leviandade, cuida do estilo, da sua inserção no casco histórico, no poder de compra de quem ali habitou, e como pagou os seus gostos e caprichos para pôr ali pedra, azulejos, varandas e janelas. Mas outras vezes há uma forte atração pelos interiores, pelos misteres, quer mesmo conhecer a personalidade do vendedor, seja qual for o seu ramo de comércio. Então entra, mete conversa, o busílis é que a sua fotografia já veio no jornal, é rapidamente desmascarado. Mas até hoje nunca foi posto na rua nem viu invocados direitos de personalidade, e isso entusiasma-o, faz parte do tal envolvimento de amenidade e afabilidade que ele vê nos tomarenses. Postos estes considerandos, vamos ao trabalho do dia.



O viajante, desde criança, aprecia ter no seu ambiente doméstico sinais de outras culturas, impressões da modernidade, tudo dentro de um diálogo que corresponde à sua pessoa. Entrou num estabelecimento onde primam antiguidades e velharias escolhidas, contemplou óleos, desenhos e aguarelas, seguiram-se as loiças antigas, pratos rústicos com certa raridade, serviços de chá e de café. Muito se conversou com a proprietária e até se ficou cliente e amigo. Não é incomum, quando está em Lisboa, trazer da Feira da Ladra toalhas, lençóis, vidraria de vária espécie, peças de roupa e papéis, muitos papéis, às vezes a cheirar a mofo. Por isso se deliciou com esta ordem aparente entre o antigo e o moderno. Não é um problema de snobismo, não há cultura sem memória, não há cultura sem multiculturalismo, não há cultura sem escutar e pôr em confronto os diferentes antigos e os diferentes modernos. Saiu dali e foi contemplar uma peça de museu.


A prova comprovada de que o viajante já está afeiçoado ao lugar é a de que quando entra no Núcleo de Arte Contemporânea vai conversar só com uma peça. O professor José-Augusto França doou a Tomar um espólio riquíssimo, está aqui uma coleção pública de inegável singularidade. A conversa hoje foi como a escultura de António Pedro, datada de 1952. António Pedro foi um dos mais eminentes teatrólogos que tivemos no século XX, mas foi artista consumado, um surrealista inovador e inspirador. Embeiço-me cada vez que contemplo esta peça raríssima na obra de António Pedro, tem todo o torce e retorce imaginativo que foi seu timbre, este corpo multiplicado parece extraído dos fabulários e dos contos mágicos. E se à primeira leitura ficamos embaraçados com as ligações corporais, o olhar depois serena, o que parece animalesco é um acento lírico, pois é a vibração humana que irá prevalecer. E tão contente estava que saltei para outra casa de cultura.


Na galeria de exposições temporárias, no belo edifício onde está alojado o turismo, vim visitar uma exposição de gravura de Maria Gabriel. Mal tive uns tostões, fiz-me sócio da Gravura, pagava uma pequena cotização e recebia regularmente obras de artistas que se impuseram nas artes plásticas como Alice Jorge, Júlio Pomar ou Bartolomeu Cid dos Santos. Aqui se fizeram grandes gravadores. O que me atrai nesta artista são os quase objetos, atravancados de cor, é um jogo cromático por vezes chocante, um livre curso entre as linhas geométricas onde se enovelam manchas coloridas com ecos surrealistas. E daqui parti para comércios a retalho, para vários gostos.


Quando vivi na Guiné, fascinavam-me os estabelecimentos que vendiam quase tudo, desde a fita de nastro e os colchetes até cristais e porcelanas. Neste estabelecimento encontrei móveis antigos, livros, roupa nova e usada, coisas para todas as idades. É uma mistura bem doseada entre este revivalismo de certos produtos tradicionais de perfumaria e cosmética, bijutaria artesanal, livros de infantis. Vim atraído pela superfície, descobri que o estabelecimento tivera outros usos no passado, deixaram belas superfícies em madeira, vale a pena subir ao primeiro andar e depois descer à cata de uma curiosidade, nem que seja para oferecer a familiares e amigos.


Aqui vende-se ouro, prata e relógios de parede. Mas o que verdadeiramente acicatou o viajante foram os tetos estucados, obra do passado, têm muito requinte. Quem o recebeu prontamente lhe deu carta-branca para escolher os ângulos que mais o interessavam. Fotografou deitado, de cócoras, experimentou os ângulos mais insólitos. Pois foi esta fotografia que mais interesse lhe despertou, há aqui qualquer coisa de palácio imperial, uma sala iluminada para receber ilustres convidados. Valeu a pena toda a ginástica para se atingir este esplendor de luz.


Quem diria que num espaço aparentemente tão exíguo existisse uma caverna de Ali Babá, aqui há de tudo como na botica, mas são as mãos da proprietária que merecem foguetes. Trata-se de uma senhora que deve ter as mãos em fogo, borda que se farta, são toalhas, são lenços, são panos, na altura até andava a ajeitar Menino Jesus com panejamentos artesanais. Aqui o que domina é o bricabraque, desde envidraçados a móveis de sala e de quarto, a proprietária é uma vendedora exímia. O viajante que o diga, não saiu dali com as mãos a abanar. Trata-se de uma rua muito bela, cá fora, deu para enamorar certos edifícios e certos pormenores. Mas isso é outra conversa, são questões que podem merecer crédito quando se falar da pele de Tomar.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 20 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15644: Os nossos seres, saberes e lazeres (136): O ventre de Tomar (1) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

BS é incansável, desde Tomar até Bruxelas e feira da ladra, sigo sempre.

Mas estou à espera da "moderação" que fez no dia 23 "... sob o tema "Quem mandou matar Amílcar Cabral?"

Ou não moderas-te nada grande BS?

Como sou obcecado, não me esqueço de certos pormenores.

Cumprimentos