terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15670: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2ª versão, 2010, 99 pp.) - III Parte: II - Putos, gandulos e o Padre (pp. 17-19)




Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [ Fitas Ralhete], o nosso querido camarada Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67, e cofundador e "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô.

Esta edição é uma segunda versão, reformulada, aumentada e melhorada, do livro "Putos, gandulos e guerra" (edição de autor, 2000). A sua pré-publicação, no nosso blogue, em formato digital, está devidamente autorizada pelo autor.

Texto e fotos: © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados.


Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra >  II Putos, Gandulos e o Padre (pp. 17-19)

por Mário Vicente


Como cacho enxame, os putos, alguns já graduados em gandulos, brincavam empoleirados no cruzeiro frente à igreja, quando Torreca, habituado a pantominas, malandrices e patifarias, resolveu fazer mais uma das suas. Se bem o pensou, melhor o fez, e gritou:
–Vem aí o "sacana" do padre!
Como foguete de lágrimas,  daqueles do São Mateus, a canalha dispersou toda num segundo. Porquê esta aversão ao representante da Santa Madre Igreja, meu Deus? Há coisas difíceis de entender.

Os alentejanos,  em abono da verdade, não eram muito de igrejas. Mas o povo era calmo e tranquilo. Verdade!... Verdade também é que os homens só se viam na igreja, em raras excepções, na Noite de Natal, na Missa do Galo, e no Dia de N.ª Senhora da Conceição. Esse sim, era dia grande para a freguesia, dado para além de ser o dia da Padroeira, era nesta data que as moçoilas, e não só, se apresentavam com as suas novas toilettes, guardadas e feitas em segredo por Dona Julinha e prima Xandra, modistas de estilo e gabarito que, na noite de véspera,, tão pouco dormiam, para fazer as últimas provas e retoques nas novidades.

Nestas festas, onde entravam festeiros, teria meu avô metido grande argolada, ao discursar na passagem de posse do pen­dão,  ter-se-ia escorregado com esta:
– Faz hoje um ano que Rosária Antónia pegou no pau!

Entre sorrisos e risotas dos peregrinos, lá ficou minha tia toda corada.

Ponto final,  e voltemos atrás! Porque a questão entre o padre, putos e gandulos existia. O povo não era católico praticante na generalidade. Mas… Todos eram baptizados e casados segundo as leis da Madre Igreja!

Aqui havia gato! Dizia-se que as festas do 5 de Outubro da Colónia tinham acabado por causa do padre. Seria verdade?... As festas que todos diziam serem tão bonitas! Sermões pregava ele quando havia bailes no salão da Sociedade, desancando no pessoal que era um regalo. Teria medo que algum lobo mau comesse alguma das suas ovelhinhas? Não entenderia que por vezes estaria a ofender gente séria e honesta?!...

Na igreja matriz não podiam entrar senhoras ou homens, de manga curta. Um dia, num casamento, as coisas azedaram-se porque alguém, que já tinha sido ou era presidente da Junta de Freguesia e homem de muita cultura protestou, por sua esposa ter sido impedida de entrar na Igreja por trajar com uma blusa cuja manga não lhe cobria o cotovelo.

Não foi ele que ao adro arrancou o bonito gradeamento e levantou um muro que mais parecia entrada de prisão do que Casa de Deus? Desta maneira, com certeza, não conseguiria levar muita gente à Igreja do Senhor, que deveria ser do Povo e não só dos espi­ritualmente dotados!...

Lá que era sacrista.  era. Uma vez, tendo de ir fazer um baptizado a freguesia próxima, por impedimento do padre desta, pediu a Torreca, Carrulho, Calças de Palanco e Carcaça para com ele viajarem.

A malta já estava escaldada com estes convites mas, como vergonha não havia, lá foram. Viagem maravilhosa para lá, só que no regresso as coisas complicaram­-se. Por volta do Monte das Casas Velhas a carripana enguiçou e começou a engasgar, até parar por completo. O padre coçava a cabeça sem saber o que fazer e pedia ajuda a Deus Nosso Senhor. Este, à volta com problemas mais graves, de certeza, nem tempo teria para reparar o carro. Eis que, como de costume, aparece uma ideia genial do Torreca.
–  E se empurrássemos o carro?

Todos de acordo. Mãos à obra! Toca de empurrar. O padre engatou o carro, ligou a ignição e o motor começou a resfolgar, o padre acelerou e pôs-se a “milhas” com medo de nova paragem do motor. Fim de festa, a malta teve de calcorrear cinco quilómetros a “penantes”.

Até podia não ser má vontade do homem porque em termos de condução, a experiência não era famosa. Buzina não havia, quando algum peão se atravessava gritava:
–  Saiam! Saiam, da frente!

Se o obstáculo fosse outro, fazia como fez ao poste no portão, junto à casa do tio Caldeirinha. Aí agarrou-se à cabeça gritando:
– Ai que eu vou bater! Ai que eu vou bater!

Truz, trancada em cheio no poste, esquecendo-se que o travão não era só para destravar, mas também para o inverso. O poste ficou dobrado e o carro com a frontaria metida dentro. Graças a Deus não houve desastres pessoais.

O porquê não se sabe, mas que as coisas não funcionavam bem era notório. Muito Espírito e pouca Terra, e Deus Nosso Senhor gostaria com certeza das coisas mais doseadas. Em vez de se meter na sacristia, deveria sair para os campos, onde Deus andaria com o seu povo. O próprio Cristo, no meu parco saber, julgo não ser simpatizante de Imperadores Espirituais.

Constava que o problema do padre com os putos, nascera de uma brincadeira de mau gosto, a qual deu bronca da grossa. Existia do lado sul da igreja, virado para a fonte, um bonito painel de azulejos, não muito grande, mas de uma certa beleza, reproduzindo a Senhora da Conceição de Murillo, com uma quadra do poeta António Correia de Oliveira. Havendo obras na igreja para as quais era utilizado barro, de que se haveriam de lembrar os gandulos? Fazer bolinhas de barro e incentivar os putos à pontaria ao painel com as ditas bolinhas. Estava-se mesmo a ver que iria estalar bronca. Fundamentalista como o padre era, logo consideraria tratar-se de sacrilégio, obra de demónios.

Cassiano, Cartacho, Olhicos, Batsarico, Banecha, Catrino e companhia, e arrolados também, Alacrau, Binito, Malhado e outros, todos receberam ordem para se apresentarem na Guarda Republicana de Barbacena, onde tiveram de passar umas boas horas.

Isto poderia ter sido tratado de outra maneira, mas enfim complicando em vez de simplificar, resultaria na desconfiança e no mau ambiente, em que ambas as partes viviam. Ressalvando, é claro, a parte do Cassiano que foi mais longe e afirmativo re­plicando:
–  Caguime e caguime, padre dum cabrão!

Dos gandulos havia mil e uma partidas, em que os putos eram na generalidade as vítimas. Desde o esmagar ovos chocos nos bolsos das camisas, ao aprender a capar grilos, era uma maravilha. Mas de uma recordo-me muito bem. Em altura de Carnaval, brincava-se muito na aldeia, desde o boi do Entrudo, à Cabarrada, do Enterro das Comadres, às Contradanças. En­fim, o Povo divertia-se da forma que conseguia, não da maneira como queria, é claro.

Numa dessas brincadeiras, exibia-se uma noite, uma contradança
Mário Fitas
 em casa da prima Ana Crespa. Bem ensaiada, os participantes muito bem vestidos e certinhos, de forma que toda a gente queria ver. Prima Ana teve de fechar a porta, porque a gaiatagem era por demais a querer ver o dito espectáculo. Tudo apinhado à porta, esticando-se e empurrando-se para espreitarem pelo postigo.

Foi quando dois gandulos, mestres nas patifarias aos putos, resolveram actuar também. O amigo Zé Manel (Olhico) mais o amigo Cartacho, um às "cambalaritas" do outro, vestindo um capote alentejano, apareceram com um cacete do lado da Cabine, junto à taberna do Vinagre. Alguém da gaiatagem gritou:
–  Ai um Medo!

Foi do bom e do bonito. Toda a gente entrou em pânico quando viu aquele gigante aparecer. Rebentaram com o trinco da porta e fugiram todos para a chaminé, urinando-se. No dia seguinte podia ouvir-se a prima Ana comentando com a vizinhança:
–  Coitadinhos! O medo foi tão grande que se mijaram todos, tive que andar com um balde a lavar a chaminé.

Havia outros Medos na terra que, por vezes, traziam o pessoal em pânico. Mas, logo o Medo desaparecia, quando havia casamento à pressa, sem tules brancos nem flores de laranjeira pois a razão desses símbolos já tinha voado numa madrugada de paixão.

1 comentário:

JD disse...

«Imperadores espirituais», gostei desta expressão, que ainda vegeta por montes e vales, aldeias e cidades. Mexe lá nisso!
Um abraço
JD