quarta-feira, 30 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15917: Os nossos seres, saberes e lazeres (146): O ventre de Tomar (10) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Março de 2016:

Queridos amigos,
Não há bem que sempre dure, temo que este meu enfeitiçamento não gere forçosamente o vosso. Mas viajar assim é fácil, por aqui há pedras antiquíssimas, aqueles senhores da Dinastia de Avis descobriram um erário opulento com aquela Ordem do Templo transformada em Ordem de Cristo. Não escondo a satisfação que me dá bater a estas portas todas, regra-geral bem acolhido.
Aqui há uns tempos entrei num pequeno comércio filatélico e o empresário, pressuroso, explicou-me que não havia hipótese de tirar fotografias, havia que esperar por uma exposição que ele estava a preparar de postais raros. Agradeci e prometi voltar. Entretanto, mostrou-me o novo estabelecimento, com uma bela moldura manuelina. Eu depois dou notícias, assim dá gosto viajar, o que não se recebe hoje fica em carteira para amanhã.

Um abraço do
Mário


O ventre de Tomar (10)

Beja Santos

Qualquer deambulação pode atingir as proporções de uma viagem. Entramos numa rua ou paramos numa praceta e o acaso permite encontros, descobertas, um olhar refrescado. Pode dar-se a circunstância de termos o tempo a favor, interlocutores disponíveis, lugares prazenteiros… E então viajamos espiritualmente, arrumamos imagens na nossa razão, damos-lhes as justificações que entendemos. Quando arremeto nestas peregrinações vou preparado para tudo, levo o passo ligeiro, a disciplina de deixar o olhar esvoaçar do telhado ao solo, bato a portas onde já bati muitas vezes só para dar os bons dias ou as boas tardes. E não é incomum nessa rotina ter acasos felizes, poderá estar mesmo a acontecer que ganhei familiaridade para ver as diferenças entre a manhã e tarde, de acordo com as estações do ano, com a cabeça leve ou carregada, pronto para o imprevisto, é esta a melhor contabilidade para o estado de espírito de querer aceitar o que é belo e que acidentalmente nos passa à margem.




Começo o dia ali para o lado dos Estaus, há motoristas em amena conversa, tendo profundo um fontanário que não jorra água. Atravesso a rua e entre num ambiente orientalizante, pedras semipreciosas, panos, bijuteria, muito provavelmente estou na Índia ou no Sri Lanka, imagino odores de incenso, imagino que há mulheres acocoradas nas ruas de Mumbai a fazer desenhos, imagino o cheiro das chamuças acabadas de fritar, deleita-me a paleta de cores, esta capacidade de reintegrar esse Oriente onde tivemos vices reis, de onde trouxemos a pimenta e outras especiarias, e até o chá com que Catarina de Bragança mudou os hábitos de beber na Grã-Bretanha. Há quem diga mal da globalização como se nós, os portugueses, não tivéssemos andado a globalizar por todo aquele Extremo Oriente, fazendo crescer o Brasil, mercadejando em África, agora esse Oriente aqui se instala, os chineses são os pesos pesados. E ainda bem, não há melhor sinal para a tolerância do que esta convivência sem emigrações de tragédia ou de assistência humanitária.


É com enorme satisfação que venho sempre cumprimentar este ilustre quinquilheiro. Viu-me a mirar o móvel, e logo atalhou que o tinha posto lá em cima, os objetos ganham realce. Sempre que eu lhe digo que gosto ele agradece e insiste para eu estar à vontade. Neste dia fizemos negócio, não pensem que foi este armário Arte Deco, foram pequeninos trastes, um deles é uma fotografia pintada que foi exposta num salão qualquer em França, data de 1898, tem pescadores bem ajaezados, é um primor.




Ora aqui está, do velho se fez novo, o que parecia não ter préstimo torna este espaço íntimo, falei com gente jovem que comercia roupa e há também arranjos de mãos. Gosto desta sobriedade povoada se símbolos antigos, de contrastes. E hoje não resisti, até me pus na fotografia, como sou imodesto equiparo-me àquele senhor que se chamou Diego da Silva Velasquez, um dos maiores pintores do mundo que trouxe uma mudança de paradigma na pintura quando se fez aparecer num quadro famoso “Las meninas”, uma cena em que uma infanta está rodeada do seu séquito, e lá ao fundo aparece Velasquez, como dissesse: sem mim, este encanto não vos chegava às mãos. Vejam a que nível me subiu a soberba…



Esta casa da filarmonia é um ícone, vale a pena aqui entrar e procurar entender como estes senhores, a quem se deu o direito de merecer um quinhão de imortalidade, puseram os nabantinos a alegrar o mundo dos sons. Ouvir música é viajar na galáxia, crescer para a vida e até amar o próximo pois o que se toca é para que os ouvintes subam ao sétimo céu, cresçam nos sonhos, a música enche o coração, veja-se o órgão na igreja, os cânticos de rua, os lampejos da fanfarra, o coreto em festa. Não há paga para o bem que estes instrumentistas nos trazem.


O artista plástico José Guimarães é o autor desta árvore azul que qualquer um de nós pode visitar nesse bonito lugar que se chama o núcleo de arte contemporânea, doação de José-Augusto França. Venho aqui amiúde lavar os olhos e sacudir as meninges, estão aqui expostos nomes de primeira plana, como Almada, Vespeira, Júlio Resende ou Cutileiro. Não há melhor maneira de acabar a viagem de hoje nesta peregrinação constante a este local de culto que, lamentavelmente, muitos tomarenses ignoram, parece que dando razão aquele pessimismo que diz que os santos da casa não fazem milagres. E o milagre aqui está, para fruição de todos. Venham, ninguém sairá daqui completamente desapontado.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15863: Os nossos seres, saberes e lazeres (145): O ventre de Tomar (9) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Mário Vitorino Gaspar disse...



Camarada Beja Santos,
Triste por verificar que os nossos Camaradas - que muito respeito - não façam um pequeno esforço para entenderem que quem escreve, e textos com muito trabalho, deveria merecer maior respeito e comentarem. Não o fazem por incapacidade? Julgo que não se esforçam. Tenho o antigo 5.º Ano do Liceu, que nada é. Passei anos sem escrever uma única linha, nem a minha assinatura praticamente fazia. Desde o meu desembarque no Uíge a 6 de Novembro de 1968 até Janeiro de 1996. Pois embora esteja a escrever neste espaço, é por verificar ser o Camarada - ou um dos camaradas - que mais contribui para o NOSSO BLOGUE - o BLOGUE ÉDO LUÍS - fico triste. Desculpem-me.

Abraços a todos

Mário Vitorino Gaspar