quarta-feira, 30 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15916: Notas de leitura (822): “A tropa vai fazer de ti um homem! Guiné 1971-1974”, por Juvenal Sacadura Amado, Chiado Editora, 2016 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Março de 2016:

Queridos amigos,
É diametralmente diferente ler relatos esparsos no blogue e depois o livro, com sequência cronológica, com diferentes antes e depois, poemas enxertados, recordações avulsas, comentários dos outros. Impressiona-me sempre nesta literatura memorial as impressões indeléveis dos locais que percorremos até chegarmos aos quartéis e depois à guerra. Toda a poesia que perpassa pelo relato do Juvenal Amado ganha articulação com a homenagem que ele presta aos camaradas imemoriais em que se transformaram aqueles anos vividos no Leste da Guiné. É comedido a falar do seu sofrimento, projeta-o nas imagens das viaturas destruídas, nos buracões das minas, como se estivesse a dizer-nos: isto podia ter acontecido comigo.
Cativa o seu relato simples e os abraços que dá aos seus amigos da guerra, inesquecíveis.

Um abraço do
Mário


A tropa vai fazer de ti um homem! 
Por Juvenal Amado

Beja Santos

É útil fazermos aqui uma recapitulação sumaríssima das cerca de cinco décadas que levamos de literatura da guerra. Temos um primeiro período, 1961 ao fim da década. As principais manifestações dão pelo nome de: diário, evocações elegíacas da bravura do soldado português, crónicas jornalísticas, alguma poesia, raras dissertações sobre a natureza da guerrilha e contraguerrilha, e pouco mais. Na viragem do século, assiste-se a uma abertura literária em que o tema da guerra surge codificado, e até ao 25 de Abril sucedem-se manifestações de pendor jornalístico a exaltar o esforço de guerra, lendo essas crónicas parece que a guerrilha está controlada e os seus líderes desacreditados. O segundo período é de uma abertura com foros anárquicos, temos relatos comprometidos, escreve-se para ajustar contas, digamos que esta euforia até transita para os anos 1980, aí perde totalmente o vigor. O terceiro período anuncia os grandes depoimentos íntimos na forma de romance, é como se o combatente já não temesse qualquer complexo por falar de si manejando a ficção. No quarto período, dos anos 90 em diante, é a enxurrada das memórias, prossegue a ficção, surge o ensaio histórico, há mais diários. No caso da literatura da Guiné, destaco no primeiro período Armor Pires Mota, o Diário de JERO, o Ensaio de Hélio Felgas, no segundo período Álvaro Guerra e José Martins Garcia, no terceiro período Cristóvão de Aguiar, José Brás, Álamo Oliveira e Luís Rosa. O quarto período, o mais fértil, assegura o espantoso Diário do Soldado Inácio Maria Góis, o Livro de Memórias de Moura Calheiros, de António Loja, entre outros.

“A tropa vai fazer de ti um homem! Guiné 1971-1974”, por Juvenal Sacadura Amado, Chiado Editora, 2016, entronca no relato memorial, temos um jovem profundamente ligado a Alcobaça, depois de diversos empregos fixou-se na Crisal Cristais de Alcobaça, dali partirá para a Guiné, fez uma comissão anormalmente longa no setor Leste, assentou sobretudo arraiais em Dulombi. Enquanto lia este relato na Guiné, não deixava de me surpreender, atendendo que passei cerca de 26 meses no setor de Bambadinca, fui pelo menos duas vezes a Dulombi e mais vezes a Galomaro de jipe, atividades de rotina, de pura logística, não me recordo de qualquer referência de risco naquele subsetor, salvo o Saltinho. O que significa que afinal a retirada de Madina do Boé teve diferentes faturas e uma delas foi a progressiva aproximação dos grupos do PAIGC até Dulombi e vizinhança. O que remete para outra consideração que é a de quando falamos da nossa guerra abstraímos que já houve outros contextos e a que se seguirão mais outros.

Não podemos ignorar a afetuosidade com que ele nos fala da sua juventude, da família, do trabalho, dos companheiros. Aquelas sete horas friolentas de Janeiro de 1963 em que ele parte pela noite ainda escura para a paragem da camioneta, parando em Fervença, que tinha fábrica de cerâmica, de fiação e tecidos e termas medicinais, até Valado dos Frades, o Juvenal é aprendiz na fábrica de cerâmica Os Pereiras, o tempo corre até que se irá apresentar no CICA 4, ainda não tem 21 anos, seguir-se-á o RI 6, o RI 16, é aqui que chega a notícia da mobilização para a Guiné. São descrições sincopadas, relevam as amizades construídas, algumas delas até hoje. Nas vésperas de Natal de 1971 já estão em Bissau, uns seguem para Gadamael, outros para Barro, aqueles outros para Cacine e o seu Batalhão, o BCAÇ 3872 segue para Galomaro, Saltinho, Cancolim e Dulombi.

Juvenal é condutor de Berliet, mas leva por tabela quando há flagelações nos diferentes destacamentos por onde passa. Escreve poesia, partilha connosco memórias francamente dolorosas como a emboscada de 17 de Abril de 1972 entre o Saltinho e Quirafo. Há um longo repositório de peripécias, de facécias, põe os amigos no pódio. Entre as memórias que não se apagam estão as minas anticarro, há sempre bons pretextos para acompanharmos a angústia do condutor naquelas colunas que se enfiam em direção aos destacamentos mais remotos.

A guerra evolui, estamos em 1973, deram-se mudanças, como ele escreve: “O tempo de guerrilha que emboscava, flagelava e retirava, embora não fosse menos perigosa, fazia já parte de um passado recente. Muito bem armada e enquadrada militarmente, a tropa do PAIGC estava a levar-nos para um beco sem saída e a nossa derrota já não era uma miragem. Na cantina tinham sido afixados cartazes com imagens de aviões MIG 17”. Mas continua teimosamente a entronizar os atos de camaradagem, dá-nos um caudal de poemas. Em jeito de despedida, volta à sua infância, fechara-se um arco depois do hiato da guerra, seguir-se-á a idade adulta de alguém que se transformou. E revela-se nostálgico: “Naquele tempo, em que eu caminhava entre a casa e a fábrica ou o café sabia de cor cada pedaço de calçada, cada pedaço de lancil marcado por uma jante, cada mancha de musgo ou mesmo os estranhos desenhos que ficavam quando caía algum pedaço de reboco de uma parede ou de um muro. A vida era lenta, previsível, própria de quem sabe que mais não podia fazer para além disso enquanto esperávamos pela tropa”. E descreve lugares, como a taverna do Dinis, a mercearia do senhor Emidinho, o Café Paris, a Pensão Corações Unidos. E vem uma recordação mais impressiva: “Os internados do asilo que pediam sempre um cigarrito ou, à falta disso, apanhavam as beatas que eram sempre abundantes pelo chão. Desfaziam-nas para dentro de uma caixa de lata e com mortalhas confecionavam novos cigarros”. E recorda o senhor Orlando, figura bizarra, que morreu quando ele estava na Guiné. Esta Alcobaça que lhe fazia companhia no posto sentinela. Chegou e tudo mudara, ou quase: “Quando regressei, voltei a fazer vezes sem conta os mesmos caminhos. A maioria das coisas ainda estavam lá, pouco se tinha alterado, eu é que via tudo com outro olhar. 27 meses tinham-me transformado e era com avidez que bebia as imagens, que funcionavam como assinaturas do tempo". Sempre poetando, deixa para o termo da obra o rol daqueles que caíram em combate. E porquê o título deste livro. Ele dá a sua interpretação: “Era uma premonição de que só seriam verdadeiros homens quem passasse pelas vicissitudes que a vida militar e a guerra impunha, como se fosse impossível alcançar esse estádio sem esses sacrifícios”.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15889: Notas de leitura (818): Micropoemas do livro "Haikus do Japão e do Mundo" (Lisboa, Gradiva, 2016): seleção e oferta do autor, António Graça de Abreu, para os nossos grã-tabanqueiros

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