segunda-feira, 5 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17433: Notas de leitura (964): Anuário da Província da Guiné, ano de 1925 - Um documento histórico incontornável (1) (Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Fevereiro de 2016:

Queridos amigos,
Este será porventura o primeiro documento em que no século XX se apresenta a Guiné, a sua geografia, administração, atividades económicas, fauna e flora, um pouco da história militar a partir do século XIX, dados sobre a religião e usos e costumes indígenas. João Barreto colaborou no anuário e seguramente que encontrou aqui alguns veios para o trabalho a que se abalançou, a primeira história da Guiné. Tanto quanto eu sei, só aparecerão anuários em 1945 e 1946, graças ao labor de Fausto Duarte, um dotado plumitivo, injustamente esquecido. Mergulha-se nesta leitura e percebe-se rapidamente como é frágil a nossa presença, frágil e precária, a despeito de alguns governadores de mão cheia, como é o caso de Vellez Caroço, o governador ao tempo deste anuário.

Um abraço do
Mário


Um documento histórico incontornável: Anuário da Província da Guiné, ano de 1925 (1)

Beja Santos

Será porventura o primeiro documento oficial de onde é possível retirar um retrato do que era a Guiné no final do primeiro quartel do século XX. Ainda é província ultramarina, em breve será transformada em colónia. É governador da província um militar de rara qualidade, Vellez Caroço. O anuário é coordenado Armando Augusto Gonçalves de Morais e Castro, divide-se em três partes: na primeira, dá-se uma sinopse do que é a província, as suas vias de comunicação, viaja-se pelo território, explica-se o que é a administração, quais os serviços públicos, as cidades e as vilas; na segunda parte, apresenta-se a agricultura e a pecuária, o comércio e as indústrias, a fauna e a flora; na terceira parte, dá-se relevo à climatologia, sintetiza-se a história militar, a instrução e religiões, as circunscrições civis e usos e costumes indígenas.

O autor não está para meias medidas, vai direto ao assunto. “Pode dizer-se que desde a data da descoberta da Guiné, até ao começo de 1834, faltam notícias circunstanciadas ou sequer símbolos informes sobre as operações militares que na província se tivessem realizado”. É esse um dos dados valiosos do seu documento, refere mesmo que aqui se sintetiza a “Memória sobre as campanhas de pacificação” de que foi autor o Tenente-Coronel João José de Melo Miguéis. Um dos colaboradores deste anuário é o Tenente Médico João Barreto que, anos depois, dará à estampa a primeira história da Guiné, louvável iniciativa, hoje é um registo praticamente ultrapassado em todos os aspetos.

Falando da geografia da Guiné, não resiste a mencionar o fenómeno do macaréu, e cita Ernesto de Vasconcelos: “Dá-se no Geba o fenómeno conhecido dos portugueses pela denominação de macaréu, nome que parece provir do termo sânscrito Makára, que designaria um monstro marinho da mitologia oriental, causador da onda de maré que se eleva em determinadas circunstâncias no golfo de Cambaia, Pegú e outras partes dos Oriente. O macaréu corresponde ao mascaret dos franceses, ao boro dos ingleses e ao proroca dos brasileiros, que o observam no Amazonas; a sua explicação não tem sido bem estudada; no Geba parece ser devido à formação repentina de uma onda que se levanta na ocasião da enchente, deslizando sobre as águas do rio, com grande velocidade em direção a montante, vencendo a corrente de vazante e inundando todos os bancos e coroas que se oponham ao seu livre curso. Este fenómeno só se dá aqui nas grandes marés de conjunção lunar e consiste em três grandes ondas, não causando embaraços sérios à navegação”.


Confesso que ardia de curiosidade ao consultar este documento, queria saber concretamente onde se situava a chamada Sociedade Agrícola do Gambiel, implantada no Cuor, as únicas instalações que encontrei de pé no regulado e à volta do Gambiel situavam-se em aldeia do Cuor, mas não tinha nenhuma certeza. Consultando o anuário, a nenhuma certeza cheguei, falam na empresa do Gambiel Limitada, tendo à frente o senhor Armando Cortezão (quando cheguei a Missirá, no início de Agosto de 1968, o régulo Malam Soncó fez questão de me dizer que me oferecia os ferros da cama do senhor Cortezão, bate certo, ele por aqui andou a plantar palmeiras de Samatra, o Gambiel é mais acima e vai desaguar perto da aldeia do Cuor. Diz o articulista: “Uma pequena visita que fizemos ao local em que esta empresa está instalada, fixou em nós e impressão agradável de que ali se trabalha, de que os capitais que lá estão empregados não são de modo algum capitais perdidos, desperdiçados por mãos sonâmbulas. É alguma coisa com caráter e com larguíssimo futuro. Quem nesta empresa meteu ombros pôs de parte o palavrório, como é costume resolvermos tudo, para se preocupar com obras. Ali se encaram e resolvem três problemas: o da agricultura, o da pecuária e o da indústria”. Mais adiante refere-se à Empresa Agrícola de Fá, o que bate certo, existiu em Fá e, tal como a de Gambiel, terá desaparecido antes da guerra de libertação.

O régulo, devotado amigo e colaborador do capitão Teixeira Pinto, foi convidado a vir à I Exposição Colonial, que decorreu no Porto, em 1934. Ei-lo aqui, num soberbo desenho de Eduardo Malta

É óbvio que aqui não se pode escrever tudo o que o autor diz sobre a história militar. Adianto só alguns parágrafos, reportados a 1843, no momento em que se verificou um grave contencioso em Bissau entre as forças aquarteladas na praça e os grumetes vizinhos: “Daqui por diante é uma longa enfiada de ataques traiçoeiros, de recontros e escaramuças sanguinolentas; de chacinas bárbaras; de tratados e ratificações; de autos de submissão e vassalagem, desmentidas, dias depois, por novas surpresas e furiosas investidas em que o ódio milenário do gentio contra o branco tripudiava num frenesim vermelho de ululantes bestas-feras; é um rosário sinistro de extorsões e pilhagens, feitas com um sábio requinte de malvadez e canibalesca perfídia; é um martirológio trágico e arrepiante, em que sobreleva o heroísmo obscuro, cristianíssimo, de simples soldados que, para defenderem os seus chefes de uma morte certa, investem, desarmados, com a força, apenas, da sua indignação contra um grupo uivante de cinco ou seis negros, e, cheios de sangue, retalhados de golpes mortais, só se deixam render, quando outros negros acorrem numa chusma selvática de gorilhas! Interrogam-se os arquivos e nas suas folhas amarelecidas os nossos olhos deparam com uma sucessão infinita de combates, em que a intemerata Alma Portuguesa vibra e palpita, como um clarim de guerra, que, embora esfriado o sopro que o animava e caído pelo chão entre o troar dos obuses, e o horrível “pêle-mêle” da refrega vai dizendo a si mesmo, inextinguivelmente, a sua canção heróica, que anima de energias novas o opressivo desalento dos combatentes".

Segue-se uma curiosíssima exposição sobre o tipo de raças da Guiné, fica para a semana.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17425: Notas de leitura (963): “Guiné, Um rio de memórias”, por Luís Branquinho Crespo, Textiverso, Unipessoal, Lda, 2017 (Mário Beja Santos)

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