Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 31 de julho de 2017
Guiné 61/74 - P17638: Notas de leitura (982): “L’Afrique Étranglée”, por René Dumont e Marie-France Mottin, Éditions du Seuil, 1980 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Fevereiro de 2016:
Queridos amigos,
René Dumont visita a Guiné-Bissau num período de grande expetativas e ainda quando o país goza de prestígio pelos seus créditos revolucionários. Não esqueçamos que uma das figuras mais eminentes da pedagogia à escala mundial aqui arribou e procurou estimular processos comprovadamente bem-sucedidos de elevação na literacia.
René Dumont já vinha desencantado com o que vira e ouvira noutros países, quando publicou o seu relato, em 1980, todos os seus vaticínios estavam a bater certo, aquelas aspirações de industrialização maciça da Guiné iriam falhar e levar a nova república a um endividamento externo que a mergulhou no desespero. Vale a pena juntar todas estas peças para se perceber que os dirigentes guineenses afinal estavam muito bem avisados de que um país subdesenvolvido não pode gastar à toa sem hipotecar o futuro.
Um abraço do
Mário
L’Afrique Étranglée, por René Dumont e Marie-France Mottin
Beja Santos
“L’Afrique Étranglée”, por René Dumont e Marie-France Mottin, Éditions du Seuil, 1980, foi um dos mais polémicos e debatidos livros do famoso engenheiro agrónomo francês, brilhante ambientalista que um dia até se candidatou às presidenciais francesas.
O que para o caso interessa é que nesse longo périplo chegou à Guiné-Bissau, num período de grandes sonhos e promessas, não gostou do que viu, e o que escreveu, compreende-se, cai mesmo na aceção da África estrangulada, muitíssimos dos problemas da jovem república decorreram de escolhas totalmente imponderadas para um país subdesenvolvido, ainda por cima num tempo em que gozava de uma grande aura de respeitabilidade pelo seu trabalho revolucionário.
Vejamos o que ele escreve sobre a Guiné-Bissau, é direito e brutal, não há frases arrebicadas. Em Bissau, na Primavera de 1979, encontrámos uma pequena burguesia que de modo algum se tinha suicidado (alusão a uma controversa frase de Amílcar Cabral sobre o suicídio da pequena-burguesia, que devia optar por se pôr ao lado dos oprimidos e fugir à tentação das benesses de classe, meio caminho andado para liquidar o movimento revolucionário, detém os postos da administração e o essencial do poder, porque é a única classe capaz de fazer funcionar os mecanismos do Estado e que se pretende “moderna”. Herdou dos portugueses o que se pode chamar uma “não-colónia”, sem indústrias para além de 23 destilarias semi-artesanais.
Ofereceram a esta Guiné-Bissau, de todos os quadrantes, os equipamentos mais modernos e os menos apropriados para a situação real do país, carente de capitais e de técnicos mas cheia de mão-de-obra pouco qualificada. Os sete projetos industriais aprovados entre 1976-1979 previam investir 12 milhões de dólares para criar somente 373 empregos, algo como 32 mil dólares por cada emprego criado. Cometeram-se depois erros monumentais ao ponto de parecerem suscetíveis de comprometer grandemente o futuro económico e a política de independência deste modestíssimo país. Venderam-lhe um projeto verdadeiramente demencial. No Cumeré, não muito longe de Bissau, instalaram um enorme equipamento para o descasque de arroz. Este projeto aumenta todos os encargos e está condenado à falência, veja-se o que se passou na Costa do Marfim. Neste complexo do Cumeré propõe-se descascar a quase totalidade do amendoim produzido no país para o transformar em óleo refinado e outros produtos para exportação. Ora esta concentração irá obrigar a transportes muito dispendiosos do amendoim num país que não possui viaturas nem estradas, fatalmente que irão aumentar todos os preços de revenda. Este projeto do Cumeré é um desastre em perspetiva para a economia agrícola e para o desenvolvimento do país.
No Gambiel, um projeto gigantesco de cana-de-açúcar fala na produção de 60 mil toneladas de açúcar por ano, foi felizmente abandonado. O projeto em curso da realização de 10 mil toneladas de açúcar ainda nos parece excessivo, pois deverá custar em 1979 (depois dos preços aumentarem) 35 milhões de dólares, ou seja, 3500 dólares por tonelada prevista de açúcar! Só a barragem de irrigação teria um custo de 5 milhões de dólares. Os 27 hectares de cana plantada em 1979 já estão a suscitar problemas de gestão e pergunta-se o que irá acontecer com os 1500 hectares previstos. Os solos serão verdadeiramente aptos para a irrigação? Também criticámos a rede de arroz de sequeiro em Contuboel, em terrenos que nos parecem muito arenosos e desadequados à orizicultura.
A manter-se este tipo de projetos, os camponeses correm o risco de serem atraídos para Bissau que beneficia, face ao conjunto do país, de vantagens substanciais: Bissau consome já seis vezes mais eletricidade que o resto do país.
Depois René Dumont exalta as capacidades de trabalho dos Balantas e volta aos riscos gravíssimos de uma industrialização pesada que levará ao desastre, cita uma nota sobre a estratégia de desenvolvimento industrial na Guiné-Bissau da autoria de Ladislau Dowbor em que este chamou oportunamente à atenção para o facto da indústria ser um processo custoso que exige ritmos muito elevados de rotação que podem muito mais facilmente desequilibrar do que dinamizar uma economia. A Guiné-Bissau teve a oportunidade de não ter herdado um setor industrial virado para a exportação ou para as necessidades menos prementes do seu mercado interno. Se acaso se vierem a estabelecer grandes unidades dispendiosas, como aquelas que foram atrás referidas, vai-se construir uma economia de cima para baixo e as atividades agrícolas terão de se adaptar, o que vai conduzir a um desastre. Todas essas fábricas exigem infraestruturas económicas, financeiras, técnicas, estradas, portos, uma pujante rede comercial: isso existe em Dakar, não em Bissau. Dowbor recomenda que haja uma estratégia judiciosa para se multiplicarem pequenas instalações pelo país, será o modo melhor estruturado para elevar o nível tecnológico geral capaz de operar um processo de industrialização mais dinâmico. Se for assim, as povoações ficarão equipadas de pequenas máquinas para descascar o amendoim e poder-se-á usar tanto a tração animal como a motor. Virá a seguir a indústria têxtil para utilizar o algodão. Os relatórios apontam para as grandes possibilidades associadas à pesca, seria interessante que o governo ponderasse empresas mistas suscetíveis de trazerem divisas e um abastecimento barato de proteína para o mercado interno. O mesmo se poderá dizer de um estratégia florestal muito acompanhada de perto e que não deverá obedecer à lógica pura do lucro, só interessada em desbastes sem reflorestamento.
O tempo veio dar razão às piores previsões de René Dumont.
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Nota do editor
Último poste da série de 28 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17626: Notas de leitura (981): Relatório sobre a situação dos direitos humanos na Guiné-Bissau, 2008/2009, Lema: a força sem discernimento colapsa sob o seu próprio peso (2) (Mário Beja Santos)
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