Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 1 de outubro de 2018
Guiné 61/74 - P19059: Notas de leitura (1105): “Gargalhada da Mamã Guiné”, de Carlos-Edmilson M. Vieira, edição de autor, 2014 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Julho de 2016:
Queridos amigos,
Não é a primeira vez que aqui se fala de Noni, um jurista de formação, diplomata de carreira, poeta, declamador e músico, um escritor que faz denúncia social e política e não esconde a sua veia lírica intimista. Consta no seu currículo que compôs melodias para poemas seus, cantados por Tabanka Djaz, N'Kassa Cobra, Zé Manel e Eneida Marta.
Em 1999, durante o conflito político militar que devastou a Guiné-Bissau, escreveu, compôs e produziu um CD (Bumba ka tem udju/bombas não têm olhos), em que participaram todos os músicos guineenses em França.
Uma grande promessa a caminhar para a maturidade, como observa o historiador Julião Soares Sousa.
Um abraço do
Mário
Gargalhada da Mamã Guiné, por Carlos-Edmilson M. Vieira
Beja Santos
No prefácio de “Gargalhada da Mamã Guiné”, de Carlos-Edmilson M. Vieira, edição de autor, 2014, o historiador Julião Soares Sousa analisa as temáticas em que se centra a obra literária deste jurista de formação, diplomata de carreira e artista prolífico enquanto poeta, escritor, declamador, compositor e plumitivo: Noni é um escritor atento à vida guineense e daí a sua poesia solidária e comprometida; é um poeta do amor, um intérprete da ausência, atraído pelos processos líricos intimistas. Curioso é constatar como ele se atrela às grandes linhas de intervenção de outros escritores da sua geração, um pouco mais velhos e até mais novos, caso de Ernesto Dabó, Tony Tcheka, Félix Sigá ou Odete Semedo: a denúncia dos desmandos e desvios que deitaram por terra os sonhos do movimento de libertação; a acusação sobre a decadência, a perversão de valores e o desalento cívico; e o comprazimento na exaltação do amor e na marcação da saudade.
Em “Gargalhada da Mamã Guiné” temos um conjunto de poemas em crioulo sobre a pátria dolorida por matanças, por irmãos contra irmãos que se envolveram numa tenebrosa guerra civil que despedaçou materialmente o país, é um permanente tantã sobre o sofrimento e a dor, dos meninos e dos velhos e dos indefesos, o poeta fala mesmo na palmatória do inferno, no esquecimento dos caminhos da luta que levaram à independência, é uma poesia onde se evoca o artesanato e a tipicidade do país, caso dos panos Manjacos, do macaréu, das mandjuandades. Segue-se um conjunto de poemas em francês com o jogo de contraditórios (o negro e o branco, envolvendo sentimentos, dias negros e noites brancas), saudades porque há separação física, um diplomata de carreira pode levar uma vida errante, mas a ânsia de amar permite a exaltação do futuro, afrontar os elementos da natureza, os desertos inóspitos, declarar o amor como luminosidade, como flor dos campos, o amor intemporal a partir do quotidiano e para sempre.
E vem uma dor e um quadro de sofrimento que se exprime na língua portuguesa:
a dor que em mim mora / não é o mal no meu corpo / é a que vejo no corpo dos outros / mesmo quando fecho os olhos.
E há o desvendar da voz do coração, que os outros saibam que alberga solidão, que possui sonhos floridos.
Em dado passo, essa dor regista o que o poeta vê na terra-mãe, assim:
as ruas de Pilum n’kolo… onde cresci / sim / vejo com comiseração / caras precocemente enrugadas / carapinhas prematuramente esbranquiçadas.
Muita gente partiu à procura de novos horizontes, outros resistem e o poeta desenha-os:
determinadamente de pé / enfrentam cortes inoportunos de luz / cortes traiçoeiros de água / assistência médica cronicamente deficiente / salários que se esgotam antes de chegar a casa.
E há uma incontida fome de amor, que assim se manifesta:
sentimento desmedido e sem fronteiras / sentimento sem rosto nem cor / que faz de mim / um apaixonado pachorrento.
E se há fome do amor há, em jeito de despedida a fome pela justiça, se alguns destroem os íntegros e os justos, se há atropelos, traições ou ódios, se o novo país cambaleia sem memória, o poeta torna-se panfletário e grita:
não baixem os braços / ergam a cabeça e avancem firmes / nesta penosa marcha da verdade / a justiça triunfará / a verdade vos libertará / a verdade nos libertará!
Esta a paleta da escrita: a contestação, o desassossego, o comprometimento com os valores solidários e democráticos, a caricatura dos arrivistas e oportunistas, a poesia intimista em torno de ternura e da cordialidade. Julião Soares Sousa ajuíza-o assim: esta nova produção literária de Noni é reveladora da constância de um autor que, à medida que o tempo passa, vai patenteando maior maturidade literária que o coloca no grupo restrito dos escritores guineenses de nomeada.
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Nota do editor
Último poste da série de 28 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19052: Notas de leitura (1104): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (53) (Mário Beja Santos)
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