Região de Tombali > Mampatá > Uma foto aérea de povoação e aquartelamento.
Foto: © José Manuel Lopes (2008)
1. Mensagem do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), com data de 20 de Abril de 2020, trazendo-nos uma história a que deu o título de O barbeiro dos bifes.
O BARBEIRO DOS BIFES
Nem sempre as diferentes especialidades se ajustavam ao perfil de cada militar, fosse por imperfeições do próprio sistema de avaliação, que nós conhecíamos por testes psicotécnicos, fosse pela viciação dos resultados sob a mão de uma oportuna cunha, viesse ela do padre da aldeia, do regedor ou até de um coronel reformado.
Certo é que, para preencher a especialidade de atirador, nunca havia pedidos, e poucos eram os que sorriam quando, no fim dos três meses de recruta, lhes era comunicado que lhes tinha cabido em sorte a G3. Na ingenuidade de muitos mancebos não lhes calharia mal a especialidade de condutor, sendo que alguns até almejavam essa profissão, logo que regressados à vida civil. Não sabiam eles ainda quão perigoso era conduzir um camião nas matas de África, sujeitos ao primeiro tiro ou ao rebentamento de uma mina anticarro.
Ao Simão, de Oliveira de Azeméis, foi-lhe atribuída precisamente a especialidade de condutor-auto, a contragosto, mas se assim tinha sido o resultado dos testes, assim tinha que ser. A grossa maioria dos recrutados, entre 1961 e 1974, bem sabia da sua condenação à guerra do Ultramar, ao fim de meia dúzia de meses, mas o Simão sempre admitia que pudesse ter sorte, até porque era já casado. Podia ser que escapasse e ficasse por cá, julgava até que, com mais sorte ainda, poderia ficar ao serviço de um oficial superior, conduzindo-o num “Carocha” verde azeitona ou num Mercedes da mesma cor, entre quartéis e a sua residência. Bem tentou, pediu até a uma senhora de Oliveira de Azeméis que tinha trabalhado em casa de um general, mas, azar dele, a senhora tinha saído de lá zangada, quando ainda jovem, por lhe não ter aceitado uma proposta indecente.
Foi azarado o Simão, porque se tinha pouco jeito para aquela profissão, muito menos se imaginava a conduzir uma Berliet carregada de cerveja e sacos de arroz, em picadas cheias de buracos camuflados por água. Ao fim de seis meses de tropa estava já escalado para o pior sítio da guerra de África, ainda por cima obrigado a integrar colunas de reabastecimento, com um qualquer camião, a que havia de faltar sempre alguma peça, a transportar água e lenha das imediações do aquartelamento e outros serviços que lhe fossem atribuídos. Estava o Simão metido numa camisa de sete mangas, mas havia de se safar, o espertalhão.
De vez em quando, de propósito, quando ia à lenha, ali por perto, arranjava maneira de fazer de conta que não via e passava por cima da ponta aguda do pé de uma árvore e lá ia mais um pneu à vida. Também daria resultado arranhar a caixa de velocidades, de vez em quando, sempre que o Furriel Mecânico ou o Capitão estivessem por perto. Só por si estes argumentos não seriam suficientes para o Capitão o tirar da condução, mas iriam ajudar muito, poucos dias depois. O Simão tinha um plano bem urdido. Quando, antes do embarque, ainda em casa, a mulher lhe punha na mala, entre outras roupas, um casaco, ele disse-lhe, num riso forçado, antes da triste despedida:
"Tira daí, mulher, o casaco que lá só há calor de rachar e mete mas é, no lugar dele, a minha ferramenta de barbeiro, que para alguma coisa me há de servir."
Nas horas vagas ia cortando o cabelo a um ou dois por dia, daqueles seus amigos, que mais lhe não pagavam que uma simples cerveja. Longe de cogitar que o Simão montava a “oficina” propositadamente em sítio que o visse, o Capitão, apreciando-lhe a destreza com a máquina e a tesoura, logo quis tirar proveito da situação. Foi, pois, o que fez, no dia seguinte quando o mandou chamar ao seu gabinete:
- Então Simão, já que tem andado a cortar o cabelo a alguns militares, trabalho que vejo bem que já fazia na vida civil, vai, a partir de agora, ser o barbeiro da companhia.
O Simão não teria disfarçado o agrado daquela ordem emitida pelo seu Capitão, caso se tratasse de uma proposta susceptível de negociação. Agora uma ordem! Ele bem sabia que na tropa não havia a especialidade de barbeiro, logo, sendo ele condutor, só aceitaria esse encargo de tosquiar aquelas quase duas centenas de militares, se a ordem viesse condimentada com algo mais apelativo. Mas ele, a parte mais fraca, não havia, naquele dia, de recusar, definitivamente, obedecer à ordem do Capitão, ainda que ilegal. Por isso, só lhe disse, condoído, que lhe seria quase impossível acumular a função de condutor com a de barbeiro.
- Se o meu Capitão me arranjasse uma outra função, dentro do arame farpado, libertando-me da condução, seria mais fácil, assim vai ser quase impossível eu dar conta do recado, que são muitas cabeças!
Havia mais condutores do que viaturas na companhia, por isso, dois ou três deles tinham sido colocados noutros sectores onde o Capitão notava necessidade. Ainda nem um mês tinha decorrido desde a nossa chegada a Mampatá, o nosso homem, em conversa com o Ferraz, seu colega de especialidade, que trabalhava contrariado na cozinha, propôs-lhe a troca, para ambos benfazeja . Faltava agora essa permuta merecer o aval do Capitão, porque, quanto ao Furriel Mecânico esse estava morto por o ver pelas costas, acabando-se assim a sua permanente aflição sempre que o via pegar numa viatura.
Assim, havia condições para todas as partes saírem satisfeitas. Por isso, os dois condutores, depois de apresentada a pretensão ao Furriel Mecânico, Nina de seu nome, correram ao gabinete do Capitão para a celebração daquela permuta de geral consolação. Agora já podia tratar do cabelo e da barba de toda agente, liberto das viaturas, embora com a acumulação de ajudante de cozinha e cantineiro.
Estava como queria, o nosso barbeiro Simão. Apareceu por lá outro, um alentejano, que também cortava o cabelo a alguns, mas embora mais barateiro, era mais fraquinho. Bom mesmo, esse, era no mato, com a “bazooca”, arma da 2.ª Guerra Mundial que manejava com mestria.
Um barbeiro na tropa |
Terá beneficiado da influência das lavadeiras fulas que estabeleciam os preços pelos seus serviços de lavagem das nossas fardas em função dos nossos vencimentos? Julgo que sim, porque, na nossa cultura europeia, o preço de um bem é aferido pelo seu valor objectivo, independentemente do ordenado da pessoa que o adquire.
Era perito a pregar partidas e, num sítio onde era difícil encontrar um espelho, muito menos dois, como podíamos mirar a parte da nuca? Era aí que ele, às vezes, engenhava as suas maldades, deixando uma ou outra escada. A um, que veio de férias ao fim de dezasseis meses, desactualizado em relação à evolução da moda, fez-lhe um corte tão apalhaçado que até a namorada dele galhofou.
O Simão, no seu trabalho de cantineiro, passava a vida a servir cervejas, latas de coca-cola e whisky no bar comum aos oficiais e sargentos, onde comprávamos também tabaco, pilhas para o rádio e pouco mais. Tinha ainda um outro serviço que ele desempenhava com tanta habilidade como se estivesse a cortar cabelo. Por volta do meio dia, era sua atribuição, limpar a mesa, usada para algum jogo de sueca ou crapô, para agora nela ser servido o almoço ao Capitão e a mais três ou quatro Alferes. Não parava de sorrir o Simão enquanto, metodicamente, esticava as pontas da toalha e de seguida a enfeitava com pratos, copos e talheres que, um por um, abrilhantava com um paninho branco que trazia sempre consigo.
Depois vinha o melhor da peça, provavelmente o que lhe alimentava aquele permanente sorriso que se lhe não descolava do rosto magro e esbranquiçado, enquanto se ocupava daquele trabalho rotineiro de preparar a mesa e servir o almoço aos oficiais. Um deles, o Alferes Estuques, tinha embirrado com dois ou três militares, porque ao passar na árvore dos passarinhos, a nossa mítica árvore, a maior da tabanca, tinha-os repreendido por achar que os mesmos não o teriam cumprimentado de acordo com as normas rígidas da corporação militar. Ora, desse grupo de incumpridores fazia parte o Simão deste conto verdadeiro, que sorria enquanto pensava como havia de trambicar o exigente Estuques.
Para além de instalar a mesa para a refeição, ele tinha que trazer, da cozinha, uma travessa onde coubessem as quatro ou cinco refeições e competia-lhe servir o prato de cada um dos oficiais. Nos dias de massa ou arroz com rodelas de chouriço ou salsichas não tinha o Simão modo de prejudicar o Estuques, mas quando a nossa companhia comprava uma vaca, o sorriso do Simão era bem mais explícito, algumas vezes gargalhava até com os cozinheiros dentro da cozinha. Era lá que ele preparava, com a colaboração de um cozinheiro, a nicada. Trazia os bifes, de diferentes tamanhos, sobrepostos, mas na hora de servir os oficiais havia de arranjar maneira de o mais pequeno calhar sempre ao Estuques.
Aquilo já era de mais, ao ponto de o Alferes se queixar ao Capitão. Chamado à atenção sempre se defendeu o Simão que não o fazia por mal, que assim acontecia por mero acaso, mas que se iria esmerar, de futuro, de modo a que o Estuques não tivesse mais razão de queixa. O Simão havia de sair bem daquela situação, o Estuques é que continuou prejudicado, porque, em vez de lhe calhar o bife mais pequeno, ninguém sabe porquê, passou a ser para ele sempre o mais rijo.
Quando, na chegada a Lisboa, se despediram, por entre risos e abraços, o Estuques disse-lhe isto ou algo pior :
- Tu lixaste-me!
O Simão, senhor Aníbal da Costa Santos Simão, é hoje proprietário da Barbearia Barber Shop Elvis Museu, em Oliveira de Azeméis, onde continua a trabalhar, mas já não prega partidas aos clientes.
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Nota do editor
Último poste da série de 25 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20902: 16 anos a blogar (4): Os dias de Abril, mês “de águas mil”, de Constituições, de Revoltas e de Revoluções, que mudaram Portugal (1) (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)
10 comentários:
Carvalho, excelente texto e já lá vão quase 50 anos. Deveriam ter havido muitas situações como essa nas mais variadas profissões e até tinha uma certa lógica.
Na minha CART2479/CART11, um 1º. Cabo Atirador teve 'a sorte' de ter sido abatida uma grande árvore na parada do Quartel, que depois de boa parte ser vendida (?) ao madeireiro local ter sobrado muita madeira para a Companhia. Ele era carpinteiro e a partir desse dia ficou ocupado, de manhã à noite, a fazer mesas, cadeiras e balcão para messe de oficiais e sargentos, móveis para a secretaria e muitas arcas de porão, que mal tinha descanso e deixou de 'alinhar' pelo seu Pelotão nas muitas operações realizadas pela CART11.
Vendo a extraordinária fotografia aérea de Mampatá fica-se com uma ideia, pelo grande aglomerado da tabanca, que deveria ter sido muito complicado quando sofressem algum ataque de morteiradas.
Ab. e saúde da boa
Valdemar Queiroz
Caro Camarada Valdemar:
Havia sítios melhores do que Mampatá, mas havia sítios muito piores. Estou a falar do período de 1972/74. Nunca tivemos nenhum ataque nem de longe nem ao arame. As situações complicadas foram quase todas no exterior, sobretudo no âmbito dos trabalhos de construção de duas estradas 1- Aldeia/Mampatá/Colibuia/Combidjã/Nhacobá; 2-Mampatá/Nhala/BUBA. Não sei porquê, mas a primeira deu mais mortes e feridos do que a segunda. Nós vivíamos misturados (literalmente) com a população e todos os homens tinham uma arma, nós , o pelotão de Nativos e a milícia tínhamos uma G3 e os civis tinham uma Mauser para ir para o mato lavrar e colher. Mampatá chegou a ser violentamente atacado, mas só até 1970.
Um abraço
Carvalho de Mampatá.
Caro amigo António Carvalho,
Parabéns pelo trabalho aqui apresentado. Estamos à espera do tal livro que antes de o ser, já é famoso.
Já lá vai um tempito em que estamos à espera de ir a Oliveira de Azeméis, ao Salão do Elvis, fazer a tal surpresa ao Simão. Esperemos que a condicionante covid se vá depressa e sem retorno.
Abraço
José Ferreira
(Silva da Cart 1689)
Carvalho.
A nossa CART11, com excepção de Nova Lamego com o nosso próprio Quartel, fixos apenas o Comando e um Pelotão, o resto por estarmos em constante intervenção pela zona Leste e como os nossos soldados eram africanos ficava-mos instalados junto da população, já que toda a gente mal escurecia e até cerca das 11 horas da noite ficava de dentro das valas perto do arame farpado.
Ab.
Valdemar Queiroz
António, andas a rivalizar com o Zé Bandalho Ferreira!... Uma história bem esgalhada...E o Simão era finório.. Lá conseguiu safar-se das minas e armadilhas das malditas picadas... Perdeu-se se um "um mau condutor", ganhou-se "um grande barbeiro"...
Confesso que nunca percebi porque é que não havia a especialidade de barbeiro na tropa... Havia correeiros, cangalheiros, sacristões, cozinheiros, bate-chapas, escriturários da G3... mas, bolas, mesmo na guerra um homem tem que andar bem ataviado!... Os nossos generais pouco se importavam com a nossa autoestima, bem-estar, conforto e saúde mental!... Se fosse hoje, deviam ser nossos "co(n)vidados" para fazer uma "quarentena" nos nossos "bunkers" de troncos de cibe e bidões de areia...
... Vejo, pelo que pesquisei na Net, que a Barbearia do nosso Simão, é um local de referência em Oliveira de Azeméis!... Faz parte do roteiro turístico da cidade.
Parabéns aos dois, ao criador e à criatura!... E co(n)vida o Simão a "ajuntar-se" à nossa Tabanca Grande...
Caro Luís:
Já convidei o rapaz a aderir, mas ele, muito mais hábil com a tosquiadora do que com o computador, vai demorar alguns dias a aderir, mesmo com a ajuda das filhas. Nisso estou, ainda, bem parecido com ele.
Eu queria, já agora, fazer um esclarecimento sobre a minha historieta.
Ela não é um relatório, também não é uma crónica, mas é o retrato de uma situação real emoldurada por um ou outro pormenor criado por mim. Tive o cuidado (sempre tenho quando falo dos meus camaradas combatentes) de não melindrar nenhuma das figuras nomeadas. O Simão, o único que podia sentir-se algo incomodado, achou muita graça e desfez-se em risadas, quando lhe li a estória, perguntando-lhe se a podia publicar naqueles termos. Os outros, nomeadamente, o Capitão e o Furriel Mecânico fizeram uma boa acção e ficam bem na fotografia. Quanto ao Alferes Estuques não é difícil o pessoal da minha companhia "adivinhar" quem é, mas, por minha sorte, até este camarada que muito estimo, encerrou a traquinice do barbeiro com generosidade e benevolência quando se abraçaram na despedida, em Lisboa.
Carvalho de Mampatá
António, quem te conhece, sabe que és uma pessoa incapaz de ferir suscetibilidades, intelectualmente honesto, generoso, bom camarada... Quase 50 anos depois não haveria, de resto, razões para melindres... Lá se fizeram e lá se pagaram... Eu paguei lá todas as minhas dívidas... Trouxe muitos sentimentos e poucos ressentimentos... E os que trouxe, já os apaguei. As tuas mulheres ?... Espero que bem ou benzinho. Luís
Ora o Simão nunca lhe faltou forma e engenho para o desenrasque e pelos vistos, também se desenrascou na sua vida civil agora com algumas condicionantes.
Barbeiro também havia em Galomaro e a barbearia servia disso ou prisão. Penso que que era sapador e não se livrou do mato.
Quem sabe sabe.
Carvalho gostei de ler e daqui deste confinamento vá um abraço.
Gostei de ler este relato/memória.
Dizes que o Simão já não prega partidas aos seus clientes....
Acredito!
Mas, repara, lá em Galomaro não tinha concorrência, ou era fraquinha... aqui, nos tempos que correm (ac - antes Covid) as "Barber Shop" são aos montes e há que ser comedido.
Seja como for, estes episódios ajudam a compor a história dos tempos passados, servindo para ilustrar a vivência de quando a mesma não era composta só de patrulhas, assaltos, golpes-de-mão, ataques, etc.
Hélder Sousa
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