Fotos (e legendas): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Continuação da publicação da série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã", da autoria de Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74), membro nº 826 da Tabanca Grande, engenheiro técnico reformado, natural de Vila Nova de Famalicão, residente em Gondomar (*):
Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)
Chaves: Férias, O Estraga a Tábua...e o Forte de S. Francisco
Depois de Tavira, só mesmo Chaves para recuperar (boas águas, bons pasteis de carne e bom presunto...), física e mentalmente.
Mas que boas férias.! A minha única tarefa era dar instrução a um pelotão de mancebos, quase todos da região transmontana. Tudo muita boa gente, a quem nunca conseguimos acertar o passo na marcha e muito menos sincronismo na ordem unida, de resto tudo bem…
Quando recebo a guia de marcha de Tavira para Chaves, pensei: "Bem! Bom mesmo era fazer toda a nacional n.º 2, de Faro a Chaves, na minha (ou seja! do meu irmão) Zundap (estilo Che Guevara na sua poderosa)."
Mas, verdadeiramente radical foi fazer a viagem de comboio do Porto a Chaves (terra da Pedra Bolideira) (1) na admirável linha do Corgo, hoje desativad [., foto à esquerda].
Esta viagem só foi superada pela viagem que fiz na nacional n.º 222. no maravilhoso Douro Vinhateiro, com a minha Diane. (2)
Muitas histórias ouvi sobre a viagem de comboio do Porto para Chaves, em que os passageiros saltavam com este em andamento, iam apanhar umas uvas e, em andamento, voltavam a entrar. Constatei que a realidade superava as histórias que me tinham contado. As curvas e contracurvas quase que se tocavam passados uns quilómetros. Em dez quilómetros de marcha na sinuosa linha avançava um na direção do destino.
Não obstante toda a informação recolhida sobre as peripécias da viagem, a surpresa foi avassaladora.
Estava eu a saborear as belas paisagens e a respirar os puros ares, na plataforma do comboio (uma zona exterior estilo varandim), quando o mesmo para no meio do nada, ouço um assobio, e de repente vejo-me rodeado de cabras por todos os lados. Uns quilómetros à frente, o comboio volta a parar, e, ao apito do pastor, de uma forma ordeira e organizada, o rebanho saiu, com um cumprimento efusivo da parte do revisor e do maquinista, denunciando estarmos na presença de passageiros habituais. Penso hoje que mais facilmente conseguiria sincronizar a marcha deste grupo do que o que tive à minha guarda no quartel de Chaves.
Contudo, sendo certo que nunca iria com estes homens para um desfile militar, se pudesse escolher, era com certeza com esta gente que iria para a guerra. Gente simples, rija, com um coração do tamanho da Serra do Marão e capaz de tudo (mesmo de tudo!...) para defender um amigo.
Guardo com emoção a festa que estes maravilhosos homens fizeram aos três graduados que lhe deram a instrução, pagando o jantar e oferecendo a cada um de nós uma lembrança. Foi um momento muito bonito e muito emotivo, particularmente para mim que já tinha recebido a mobilização para a Guiné bem como guia de marcha para Estremoz.
Foi neste moderno e agradável quartel que tive o grato prazer de conhecer o pai do malogrado e excelente jogador de futebol do FCP, Pavão, que teve morte súbita em pleno estádio das Antas no fatídico dia 16 de dezembro de 1973. (3).
Era sargento, excelente pessoa, mas rezava a história, no quartel e na cidade, sem grande jeito para os trabalhos manuais. Contava-se que um cão rafeiro apareceu no quartel e logo foi adotado por todos, desde o comandante ao soldado raso. Dado que o canino não tinha sitio para dormir e abrigar-se dos dias mais agrestes, foi decidido construir-lhe uma casota. Logo o bom sargento se ofereceu para a tarefa, tendo sido feita uma coleta para comprar a madeira necessária para a obra.
O homem comprou a madeira e muniu-se das ferramentas necessárias, nas oficinas do quartel, e dum projeto de casota elaborado por um habilidoso em desenho. Mede e volta a medir, corta aqui, corta ali, corta acolá, e montadas as peças nenhuma bateu certo com o projeto. Volta a medir a cortar aqui, a cortar ali e acolá, voltou a montar e ainda pior.
O comandante, que também tinha contribuído para a casota, ao fim de uns dias, vendo que o cão continuava a dormir em todo o sítio manda chamar o sargento para saber da casa do cão. O sargento, muito constrangido, e à espera do pior, lá foi contando as peripécias da construção da dita casota acabando por confessar que nem tinha casota nem tinha tábuas. O bom comandante, dando uma grande gargalhada, virou-se para o velho Sargento e diz-lhe: Áh! Homem do “diacho”, fizeste-me à tábua o que o diabo fez à “coisa”: para além de não construires a casota ainda me estragaste a tábua!...E assim nasce a alcunha do Sargento Neves – O estraga a tábua.
O Comandante do quartel era um bom homem, bonacheirão, preocupado com o bem estar de todos os seus homens… e até da mascote do quartel – o cão. Fazia questão de manter o quartel, um lugar limpo e asseado, fosse as casernas o refeitório ou a parada.
Um dia, estava eu de sargento de dia ao quartel, vejo-o em altos berros, no meio da parada, a gesticular e a chamar por todo o pessoal de serviço. O primeiro a chegar fui eu, pelo que se vira para mim e me diz:
– Você não está a ver que eu não consigo passar com este enorme tronco de árvore à minha frente!
Eu olhava para a frente do homem e não via tronco nenhum nem se quer um pequeno pau. O homem cada vez gesticulava e gritava mais, pelo que temi que as minhas férias terminassem ali. Felizmente, um cabo já velhinho, chega perto de mim e diz-me:
– Deixe que eu resolvo.
Vai ao chão e pega num fósforo, de madeira, que alguém inadvertidamente tinha deitado para o chão ao acender um cigarro...
– Uff... – disse eu para com os meus botões – nais uma batalha ganha… siga a tropa...sigam as férias!
Chaves > Forte de São Francisco |
Dado o número reduzido de pessoal que aí fazia guarda e o recato do local, muitas histórias ouvi sobre as atividades noturnas que aí tinham lugar.
Acabado de chegar ao quartel, fui escalado para comandar o pequeno grupo de homens (eu, um cabo miliciano e cinco soldados), para ir render o grupo que passou o dia e pernoutou no referido Forte de S. Francisco.
De manhã cedinho, depois de um bom pequeno almoço com pão sempre quentinho e muita manteiga a derreter-se no mesmo, formado o grupo, lá fomos nós, todos catitas, a marchar até ao forte de S. Francisco.
Chegados à porta de armas, um soldado aparece ao portão, com um leve sorriso nos olhos brilhantes, e, baixinho diz-me ao ouvido:
– O seu colega Ferreira pede para aguardar só uns segundos.
Achei estranho, geralmente nestes casos já todo e pessoal costumava estar à porta “mortinho” por se ir embora depois de 24 horas passadas naquele buraco. Aproximo-me mais um pouco do portão e vejo o Ferreira ainda a vestir as calças e uma loira a esgueirar-se, escondendo-se por trás dos soldados. Logo a seguir aparece o Ferreira, com um sorriso de felicidade, com um malmequer bravio, colhido no forte, colocado na orelha e a cantarolar a celebre canção, hino do movimento hippie e do amor livre: “Se vais a San Francisco, leva flores no teu cabelo…”
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Notas do autor:
(1) Grande pedra, no caminho de Chaves a Bragança, que se move com um pequeno toque de um dedo.
(2) A Estrada Nacional 222 (EN 222) – considerada a estrada mais bonita do mundo - tem 226 km de extensão e liga o centro de Vila Nova de Gaia a Almendra, no concelho de Vila Nova de Foz Côa, (todos deviam fazer, pelo menos uma vez, o caminho de Santiago e a Nacional Nº 222!)
Vista da EN 222 > Douro vinhateiro; De cortar a respiração. Bem disse Miguel Torga em S, Leonardo de Galafura: "um excesso da natureza"....
(3) Pavão, não de nascimento mas pela forma peculiar de jogar com os braços bem abertos.
(4) - Utilizado como quartel general pelo general Soult no tempos das invasões francesas. Foi recentemente restaurada e recebe hoje um Hotel de 4 estrelas.
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Nota do editor:Último poste da série > 3 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21844: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 3851, 1972/74) - Parte I: Caldas da Rainha (A chegada às portas da tropa: um fardo pesado); Tavira (Amor, ódio e... trampa)
4 comentários:
Joaquim, belas recordações...
Infelizmente nunca andei na Linha do Corgo. (Este país nunca amou os comboios, e deixou destruir muito do nosso belo património ferroviário: linhas, estações, locomotivas...).
E Chaves só conheci em 1975, em pleno verão. Recordo-me de ter dormido uma noite debaixo da ponte, num Fiat 127... Não havia lugares nas pensões e hotéis...Hoje não dava para levar o carro até debaixo da ponte...
E voltei lá, no passado fevereiro de 2020, na época pré-covid. Passei lá um belo fim de semana, no novíssimo Castelo Hotel, 4 estrelas...E adorei andar a pé na magnífica ponte de Trajano...É "recuar na História",,,
Tenho fotos desse fim de semana, que agora não consegui localizar, e para usar e melhor ilustrar a tua feliz descrição de Chaves do teu tempo...
Naturalmente que Chaves está na listas daquelas cidades ou vilas que nós mais amámos ou odiámos na tropa (Tavira, Mafra, Caldas da Rainha, Abrantes, Elvas, Estremoz e por aí fora).
A cena pícara e brejeira que descreves no forte de São Francisco, é de antologia!... Afinal, "serviço" e "conhaque" misturavam-se na tropa... A gente sabe que sim, e no fundo são dessas pequenas "transgressões" na tropa (à disciplina, ao RDM, aos usos e costumes...) que a gente se lembra... E claro da boa camaradagem, quando ela existia (, mais na guerra do que ba tropa...).
Levar uma loura para a caserna, era de cabo miliciano!... Claro que podia dar uma "porrada" das grossas mas na época imperava o princípio dos "vícios privados, públicas virtudes"...
Chaves como outras vilas e cidades com quartéis da tropa sempre tiveram os seus "prostíbulos", clandestios depois da "ilegalização" das "casas de passe"...
Quanto à EN 222, não sei se é a mais bonita do mundo, mas é de não perder, concordo contigo... Há três ou quatro maneiras de ver o Douro vinhateiro: por estrada, por comboio (Linha do Douro, do Porto ao Pocinho), por barco... e "by air". A mais barata é o comboio...
Boa continuação das tuas boas memórias...
E.Esteves de Oliveira (by email)
15 fev 2021 19:38
Caro Luís,
Que fantástico ler no post do Joaquim Costa a história do Estraga a Tábua, que eu conheci no BC 10 (mais tarde RI 19) em 1962, era ele então 1º. cabo RD mas já senhor da alcunha - o homem era o faz-tudo mais desajeitado do Exército português, mas ia-se safando das porradas e das mobilizações (estas graças aos chamados autos de amparo).
Do Forte de São Francisco também tenho boas recordações: quando por lá passei albergava duas companhias de recruta e os respectivos graduados - apesar de curta, a distância entre o Forte e o quartel dava-nos uma relativa independência, além de as inúmeras divisões desocupadas proporcionarem "actividades não curriculares" com algum conforto, comparadas com a do Ferreira, camarada do Costa..
Um alfa-bravo do.
Esteves de Oliveira
P.S. - Os meus textos são redigidos em profundo desacordo e intencional desrespeito pelo Aborto Ortopédico - perdão! Acordo Ortográfico.
Visitem o meu blog http://asopadospobres.aboutlisboa.com/ s.f.f.
É de borla, não tem anúncios nem muitos links, ainda funciona a vapor...
Joaquim, vais gostar de ler... Como vês, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca ... é Grande!... Já recebi a parte III.
Saúde. Luís
oaquim Costa (by email)
15 fev 2021 20:06
Obrigado Luís
Muito reconfortante
Como bem dizes: o mundo é pequeno e a nossa tabanca é grande
Um abraço e um bem haja para este grande amigo que passou por Chaves
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