Da utópica peleja de Troia ao conflito da Guiné
Princípios distintos
Camaradas,
A longevidade do tempo, embora a entendamos substancialmente distante nas eras, é algo que nos remete para o redescobrir momentos passados que jamais se apagarão das nossas louváveis memórias. Nesses tempos, sim, os tempos em que fomos atores forçados na guerrilha na Guiné, proliferava entre nós uma irreverente juventude que ultrapassava “montanhas” (que por sinal pariam ratos), não esquecendo, porém, que fomos então sublimes alvos de miras de espingardas cujas balas atravessavam corpos de “putos” que, na mocidade civil, viviam uma vida feliz.
Numa viagem ao “status quo” da nossa existência humana, sendo que a expressão, “status quo” é latina e cujo significado exprime “estado atual”, vagueio pelo conteúdo das palavras presentes, medito sobre o seu potencial valor e deparo-me a idealizar no antigamente a peleja de Troia, revendo, com ênfase, o conflito da Guiné.
Recorro a dizeres da lenda que diz que essa luta teria sido originada por uma disputa de puderes entre as deusas Hera, Atena e Afrodite. Tudo terá ocorrido depois da deusa Éris, a deusa da discórdia, lhes ter dado um pomo de ouro que, traduzido à letra, ficou conhecido como o “Pomo da Discórdia”.
É evidente que a lenda nos leva ao irreversível dado que identificamos, por razões consideradas substancialmente óbvias, à peleja de Troia. Claro que os princípios da nossa luta por terras guineenses, são literalmente distintos em toda a dimensão no evoluir das eras, assim como à forma no desenrolar de um conflito que muitas contrariedades nos trouxeram numa Guiné onde fomos membros de um exército etiquetado de valores que nos fizeram crescer como homens numa sociedade subordinada a um poder absoluto, restando as dificuldades amiúde observadas por todos aqueles que pisaram o palco da guerra.
Viajo, não pela idade do bronze, ou pelas historietas do tal célebre “Cavalo de Troia”, e revejo os momentos de uma Guiné em que os momentos de ócio se apresentavam como verdadeiros tempos livres, onde o batucar dos tambores nos acalentava as almas, esquecendo, por ora, males maiores.
Camaradas, com a devida vénia, aqui vos deixo um pequeno texto, com imagem, que deixei escrito no meu livro “Um Ranger na Guerra Colonial – Guiné-Bissau 1973/1974”, para todos recordámos, sem mácula, aqueles momentos de descanso.
Tocadores improvisados acertavam as mãos nos instrumentos e os camaradas… gostavam.
O
som do batuque deliciava-me! Encantava-me a alma. Noite de batuque era noite de
ronco na tabanca. A população, numa correria louca, desfazia-se em contactos e
os nativos, sempre faustosos, marcavam presença no local do aconselhado e
atrativo ronco. O tocador, ou tocadores, bem cedo diziam presente. As bajudas,
sempre destemidas, envergavam indumentárias garridas e davam cor ao espetáculo.
Os rapazes, com vestes compridas, impunham a sua condição de machos negros e as
pomposas donzelas esculpiam os seus salientes rabos ao toque do
tambor.
Ao
lado, homens e mulheres já entrosados na idade, agitavam-se com os estrondos
vindos dos instrumentos das mãos dos tocadores. Os corpos do pessoal do batuque
desenhavam figurinos encantadores. Descalças e descalços o pessoal da tabanca
obsequiava com humildade os convivas.
Paulatinamente
os corpos joviais, alguns divinais, iniciavam o processo da transpiração. Um
processo que não colocava senãos a gentes que por teimosia ousavam desafiar o
calor da noite. Os cheiros não importavam! Conhecíamos já esses velhos odores.
Faziam parte do nosso quotidiano. O perfume Hugo Boss, deixado, entretanto, no
baú das recordações, era um esmero anfitrião, mas para outros momentos de
afirmação social. Naqueles instantes a festa era outra. De arromba. Os cheiros
natos da jovialidade apresentavam-se para nós como mais uma página a
acrescentar ao calendário de uma comissão que pausadamente evoluía no tempo,
mas devagarinho.
Recordo
as minhas saídas noturnas com outros camaradas a caminho de tabanca para
ouvirmos e vermos ao vivo as maravilhas de um batuque das gentes guineenses. Em
noite de luar era mais fácil a aproximação à manga de ronco. A pequena
multidão, em círculo, faturava momentos ímpares de incontidos prazeres.
O
toque do batuque ter-se-á generalizado ao interior dos quartéis. Era comum os
militares terem nas suas instalações os respetivos tambores. Numa noite de
plena descontração a rapaziada juntou-se e toca a batucar. Nesta perspetiva, um
grupo de tocadores improvisados brindou a malta da messe de sargentos com os
melodiosos sons oriundos de caixas feitas pelos ilustres mestres
negros.
A recetividade da iniciativa mereceu honras dos camaradas que a seguir, e à nossa volta, se predispuseram para ofertar refrescantes bebidas aos tocadores. Numa noite de batuque, e sem danças feitas por corpos ondulantes, uma cuba livre foi divinal!
Um abraço, camaradas,
José Saúde
Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523
Mini-guião de colecção particular: © Carlos
Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
2 comentários:
Zé Saúde, mais um texto de filigrana literária que até um batuque, ruído de golpes no tambor, é melodioso.
Calhando, o meu vizinho do andar de cima pensa estar a ser melodioso, quando cerca da uma manhã resolve pregar uns pregos que parece uma batucada para ajudar a adormecer.
Abraço e saúde da boa é que preciso
Valdemar Queiroz
queria dizer saúde da boa é que é preciso
Valdemar
Enviar um comentário