Guiné > Zona Leste > SEctor L1 > Pel Caç Nat 52 > Outubro de 1968 > Operação Meia Onça > Em primeiro plano, o Alf Mil Beja Santos a caminho de Amedalai e Taibatá... "As minhas filhas descobriram esta foto que alguém me tirou naquele dia 13 de Outubro. Da
Meia Onça já se falou no blogue: um fiasco que serviu para nos mortificar, sobretudo a CART 2339 [, Mansambo, 1968/69]. Eu usava estes óculos que ficaram destruídos pela mina anticarro de Canturé, em Outubro de 1969" (BS)
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Beja Santos (2007). Direitos reservados.
Texto enviado em 10 de Janeiro de 2007. Continuação das memórias do Mário Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1).
Caro Luís, aqui vai o texto da semana. Farei a referência a duas obras literárias que seguirão pelo correio, e confesso-te que são graficamente muito belas. Como igualmente faço referência aos bilhetes postais que a família e os entes queridos mandavam, tu farás o registo dos que entenderes. Se me permites alguma sugestão para fotografias, tens aí apontamentos sobre Missirá, seja os recentemente chegados por via do Luis Casanova seja daqueles que te tenho vindo enviar (por exemplo, a dar escola aos milícias). As minhas filhas descobriram uma fotografia a cores, quando eu ia a caminho do Xime para a
Operação Meria Onça. Vou digitalizar-te e enviar-te para a semana. Recebe um grande abraço do Mário.
Aquelas abelhas eram sempre assassinas!
por Beja Santos
Os dois tiros rasgaram a noite exactamente quando eu lia o aerograma do Pedro Abranches, dando notícias do estado de saúde do Paulo Ribeiro Semedo. O Pedro Abranches era médico de análises clínicas no HM 241, casado com uma enfermeira colega da minha irmã, e fora visitar o sinistrado do presépio de Chicri. O Paulo acabara de ser evacuado para a metrópole para o Hospital da Estrela e estava fora de perigo. Nessa altura o diagnóstico, segundo o Pedro Abranches, ainda era favorável: "Da vista conseguirá recuperar, depois de um período de expectativa em que parecia que a ia perder. Tem o membro superior esquerdo completamente paralisado devido a estilhaços que lhe cortaram nervos fundamentais. Com fisioterapia poderá recuperar parcialmente".
A honra de macho lava-se aos tiros
Aos dois tiros sucedeu-se uma algazarra, da algazarra passou-se a um formidável coro de tragédia grega, abro a porta da cubata onde se forma um ajuntamento e Trilene Camará, um soldado que os camaradas chamavam "homem curto" (homem baixo) avança para mim com o rosto congestionado:
-Alfero, apanhei a Sali a dormir com o Mamasamba, venha ver a cama!
Perguntei de quem eram os tiros e a resposta do amante enganado foi de que procurara atingir os adúlteros, em vão. Chamo o régulo, a quem entrego a administração desta justiça, e avançamos para a cubata de Trilene, não sem eu ter dito ao Cherno para procurar encontrar Mamasamba e escondê-lo no armazém dos víveres.
O coro grego seguia-nos, vistoriámos um catre com roupa desarrumada, procurei, com o beneplácito de Malã Soncó, tranquilizar o desditoso marido que dentro em pouco nos acompanharia na
Operação Andorra. Pedi ao Trilene que não se esquecesse que era soldado, todo o julgamento desta situação ficaria a cargo do régulo, tudo seria apreciado e decidido dentro de dois dias. O desconsolado a tudo dizia que sim de cabeça baixa mas rematou de cabeça erguida:
-Eu quero é que a família dela me dê uma vaca mais 3200 escudos que foi quanto me custou
Pedi a alguns soldados, e sobretudo ao Domingos Silva, que vigiassem Trilene até de madrugada, para evitar disparates e mais tiroteio avulso.
Operação Andorra e a memória de elefante do Quetá Baldé
Voltei para a cubata e pedi para me chamarem Quebá Soncó, o nosso picador. Sentámo-nos e terei dito algo como isto:
- Quebá, está a chegar um pelotão que ficará em Missirá enquanto nós partimos com toda a milícia para fazer um grande reconhecimento nas lalas de Paté Gidé, descer por Sancorlã em direcção ao rio de Biassa e cerca de 12 Km à frente contornar o rio de Ganturandim , atravessar para Salaquinhé e sair em Chicri, acima de Mato de Cão. Prevejo cerca de 40 horas de marcha, dormiremos uma noite muito perto de Madina. Peço-lhe para ir com os olhos muito abertos. Pretendo saber exactamente quantos caminhos saem de Madina até ao Geba. Num deles emboscaremos até um dia. Seja franco comigo, fale sempre verdade comigo, sempre que houver trilhos novos, vestígios da passagem recente de gente que vai aos Nhabijões ou para Santa Helena ou Mero, diga-me logo.
A
Operação Andorra deixou marcas em nossas vidas de combatentes: foi penosa, pôs-nos os nervos à prova e terá sido provavelmente a gota de água da luta feroz que a partir daí Madina nos vai desencadear. Pessoalmente, aprendi que existia um inimigo oculto na mata, tão ou mais letal que o fogo: as abelhas. Não há relatório da
Andorra e por essa razão recorri à memória prodigiosa de Queta Baldé:
-Lembro que saímos ainda de noite, o capim todo molhado, era capim de época seca, muito alto, molhava até ao pescoço. Havia lua, tínhamos dois cajueiros à direita, frente à porta de armas, e virámos para Cancumba, onde nosso alfero gostava de ver as árvores do pau de sangue. Como sou de Amedelai, negociava muito com a ponta de Sancorlã. Vendiam ali aguardente e amendoim. Fizemos bem o caminho porque eu conhecia os trilhos velhos e indiquei-os ao Quebá. Fomos de Cancumba até Paté Gidé, não havia nada a não ser floresta fechada, à volta da ponta tínhamos laranjeiras, eu conhecia aqueles campos onde antes da guerra se plantava milho, mandioca e arroz. Caminhámos com as fardas molhadas, metemo-nos na lama, depois veio o Sol e depois choveu, e a seguir voltou o sol. Em Sancorlã, também nada. Nosso alfero disse ao Quebá para descer ao rio de Biassa, passando por Tumaná. Se até aí não tínhamos avistado nada, quando saímos para Biassa encontrámos um trilho que tinha usado há algum tempo. Uma hora depois, entrámos no velho trilho onde antes da guerra eu fora fazer comércio a Madina. Mas estava tudo abandonado, só íamos encontrando javalis, cabras de mato e porcos espinhos. Quando eu era menino ia com o meu paizinho por este caminho até Sarauol, que durante a guerra passou a ser um local terrível onde as tropas não iam. Lembro-me também que Cibo Indjai me substituiu nesta altura a orientar Quebá Soncó. À volta de Madina, nas bolanhas, havia sentinelas permanentes e pedimos a nosso alfero para descermos dentro do mato fechado como se fôssemos em direcção a S. Belchior. Caminhávamos para o fim do dia, quando se descobriu um trilho fresco perto de Iaricunda. Atravessámos em direcção a Sinchã Corubal e aí jantámos e montámos emboscada junto do trilho. Foi uma noite sossegada e ao amanhecer subimos para o interior, era um trilho que avançava para Chicri. Foi aí que nosso alfero, quando viu marcas no chão mandou montar nova emboscada.
Abelha, abelha!!!...
Eu olho banzado para este homem a quem só falta perguntar o nome de todos aqueles que ali estavam... na verdade, é acima de um palmeiral em Mato de Cão que usamos a convencional meia lua e no pressuposto que iríamos surpreender um contigente que viesse dos Nhabijões com sal, tabaco e outros produtos necessários à vida em Madina/Belel. As horas passam, as fardas ensopam, a vigilância perigosamente quebra. Eis então que levo uma cotovelada do José Jamanca que cicia ao meu ouvido direito:
-Vem um grupo mas de Madina para Chicri!
-Manda todo o grupo emboscado inverter a posição - respondo-lhe - e passa a palavra de que serei o primeiro a disparar, orientando o fogo de dilagrama e morteiros. Até nova ordem os bazuqueiros não trabalharão dentro daquela mata densa.
É um trilho enorme, bem sulcado e eu avisto à distância de centenas de metros. E quando vários vultos entram na minha mira mando despejar os morteiros sobre a coluna de Madina e disparo uma rajada para o interior da picada, onde avançam vultos em marcha apressada. Mas a coluna vinha preparada para reagir e reagiu desta vez. A floresta é um clamor de descargas, a folhagem desfaz-se, os ramos partem-se, os gritos de fúria e pesadelo misturam-se. Peço a dois apontadores de dilagrama para responderem aos RPG2 que não param de trabalhar.
Respondem e segue-se o alívio de um silêncio sepulcral. Grito para avançarmos e avançamos centenas de metros, até onde estava a cabeça da coluna. Como um mês atrás, encontrámos esteiras, sacos de comida, carregadores e uma arma semiautomática. Chamam-me a atenção para vestígios de sangue, há quem se prepare para uma caça ao homem. Mas a coluna inimiga fincara-se talvez um quilómetro atrás e despejou fogo na nossa direcção. Escondidos atrás das árvores, procuramos ver onde disparam as kalash e as bazucas. É nesse preciso instante se ouvem vozes estridentes que semeiam o pânico:
- Abelha, abelha, toca a fugir!.
É um espectáculo assombroso o que se segue e vejo de pé, impotente, incapaz de qualquer reacção: à distância, os guerrilheiros de Madina gritam e fogem, correndo por mim em pânico, os soldados de Missirá fogem. Fogem sacudindo-se batendo com as mãos no peito e nas pernas. Fogem com uivos de dor. Aquela indecifrável cena apocalíptica levanta-me o ânimo e por pura imitação desato a correr. É mais à frente que consigo que o Quebá me explique o que se está a passar: os tiros destruíram os favos, as abelhas atacam. As abelhas podem matar, irei aprender.
Mais tarde, em Março, quando entrar no HM 241 para ser operado assistirei à chegada de uma companhia de fuzileiros que caíra debaixo de um enxame de abelhas, entraram com o corpo todo inchado, alguns em estado de profundo choque, urrando com aquele sofrimento inusitado de abelhas que atacam quando se sentem perseguidas ou sentem o cheiro do suor ou do sangue.
É nesta atmosfera de dilúvio e derrocada que o soldado Sadibi Camará larga duas granadas e ouve-se uma explosão e a seguir um clamor de sofrimento: Sadjo Seidi tem as duas pernas estilhaçadas por uma granada ofensiva que se desencavilhou. Exactamente como um mês atrás retiramos com um ferido (felizmente menos grave), seguimos de Chicri para Gambaná, atravessamos em passo estugado para Malandim e ficamos em Finete a aguardar um helicóptero que o Teixeira chamara entretanto. Sadjo irá recuperar de uma das pernas, a outra deixou-a coxear para todo o sempre, devido a ferimentos no joelho e calcâneo.
Os livros do mês
Aprendi muito com as abelhas. Elas irão reaparecer no próximo mês, na
Operação Anda Cá, onde seremos obrigados a regressar ao local do acidente para recuperar bazucas e morteiros, e também a Mansambo e na região do Xime, como aqui se irá contar. O lastimável disto tudo é que íamos tendo, todos nós, um saber de experiência feito, sem nenhuma indicação, sem sabermos quais as reacções mais adequadas perante esta fúria biológica. Quem diz abelhas diz macaréu, diz travessias de riachos, tornados e até doenças cuja existência nos era completamente desconhecida.
Capa do romance policial de SS. Van Dine,
A Série Sangrenta. Lsiboa: Livros do Brasil. s/d. (Colecção Vampiro, 30). Capa de Cândido Costa Pinto.
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Volto para Missirá, onde nos esperam as obras, as aulas, um quotidiano fervente. No regresso ouvimos as explosões das morteiradas com que em Madina se espera um inimigo que já está longe. Em Missirá espera-nos o aconchego do banho e uma carne assada preparada por Jobo Baldé. Com o corpo moído e a convicção que amanhã regressaremos a Mato de Cão, vou para a minha cubata ler o correio que me foi entregue em Finete.
Capa da novela de Ernest Hemingway,
O Velho e o Mar. Lisboa: Livros do Brasil. s/d. (Colecção Miniatura, 41). Capa (falubosa) de Bernardo Marques.
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Os postais ilustrados dos nossos amigos e familiares
Já vos falei dos bihetes postais que enviei sobretudo a partir de Bissau e Bafatá. Uma palavra para os bilhetes postais que vinham de Portugal até este ponto obscuro da floresta silenciosa:
A Cristina manda-me um marco do correio e insinuações que apontam para um casal de namorados. Se era verdade que suspirávamos pelo correio, convém agora relembrar que as nossas notícias, quando faltavam, ou se atrasavam, quebravam o ânimo dos nossos entes queridos. A minha irmã dá-nos notícias da família e manda-me um avião da TAP a sobrevoar impossivelmente o velho Aeroporto da Portela, como a recordar-me que eu era bem vindo a qualquer momento. O meu irmão agradece lembranças do Natal através do Palácio da Pena, com as pinturas da época. E a minha mãe escreve-me de S. Pedro do Sul com uma panorâmica de Vouzela e um velho comboio a atravessar a ponte. Espero que os historiadores do séc. XXI cuidem da função determinante que estes bilhetes postais tiveram nos nosso ânimos, substituindo palavras, acentuando sentimentos, gritando ausências.
Portugal > Bilhete postal > Edição Lifer - Porto, s/d. Colecção
Postales Escudo de Oro >
Impresso en España / Print in Spain, Barcelona / Nº 516 > Vouzela (Portugal) >
Vista panorâmcia / Panoramic view / Vue panoramique...
Enviado ao Alf Mil Mário Beja Santos, SPM 3778, por sua mãe: "S. Pedro do Sul, 27/8/1969: Meu estimado e querido filho: Estou sem notícias tuas há uma semana. Mas possivelmente [há] atrasos na correspondência... De Lisboa, escrever-te-ei uma longa carta. Peço que rezes pelas minhas melhoras e que as águas produzam o seu efeito na minha saúde. Sigo com o Rudolfo para casa. Estive aqui 15 dias. Vês como é lindo, este sítio ? Muito tenho pensado em ti, meu querido filho. Como estarás de saúde ? (...).
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Há entradas e saída no nosso contigente militar. Chegou o Benjamim Lopes da Costa que veio substituir o Paulo. O Benjamim será um camarada inesquecível, mesmo quando, cheio de sofrimento, lhe darei voz de prisão após uma emboscada em que ele perdeu a cabeça e me chamou assassino. Cimentámos uma grande amizade que durou até 1990, ano da sua morte num estúpido acidente. E leio, leio desalmadamente. Primeiro, o épico que é
O Velho e o Mar, por Ernest Hemingway. Nunca me cansarei desta narrativa em que um velho marinheiro, de nome Santiago, lá para Cuba, persegue um espadarte com 5 metros de comprimento, ganhando a luta mas perdendo a carne da presa, devorada por tubarões. Luta metafórica da nossa vida, vitória sobre o silêncio e sobre a solidão no alto mar: "Mesmo no alto mar, um homem nunca está só", escreve Hemingway. O herói policial do escritor S. S. Van Dine é o fleumático, super chique e super intelectual Philo Vance. O romance que devorei em duas horas livres é
A Série Sangrenta, a tragédia dos Greene, um clã de multimilionários de Nova Iorque que vão sendo abatidos em casa, contrariando toda a lógica, graças a um génio diabólico que se vai revelar impotente perante os dotes de análise desse investigador gastrófilo, amante de porcelanas chinesas, mestre de esgrima e profundo conhecedor da música renascentista. Estes livros suavizam as asperezas do barro do quotidiano, uma roda que não pára de dançar.
Vem aí Fevereiro, mês em que vou ser punido, irei a Quebá Jilã donde traremos um prisioneiro, segue-se a tragédia da
Anda Cá e temos por fim a
Operação Fado Hilário, uma ida à base de Galoiel, salvo erro na companhia do Torcato Mendonça, e numa operação capitaneada por Laranjeira Henriques, de quem tenho saudades. Vamos então contar.
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Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 25 de Janeiro de 2007 >
Guiné 63/74 - P1461: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (30): Spínola, o Homem Grande de Bissau, em Missirá