quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3667: As Nossas Mulheres (5): De Bissau a Lisboa, com amor (Cristina Allen)

Guiné > Bissau > Abril de 1970 > Sobre a férias de casamento da Maria Cristina Allen, escreveu o Mário Beja Santos seguinte:

"A Cristina chegou a 18 de Abril e praticamente nunca saiu de Bissau a não ser umas curtas visitas a Safim, Nhacra e Quinhamel. Não podíamos, evidentemente, ir passear a quaisquer teatros de operações. Durante os praticamente 20 dias que ela aqui viveu, visitámos as amizades feitas em Bambadinca e Bissau e fomos recebidos regularmente pelo David Payne, Emílio Rosa e mulheres. Não resistíamos à curiosidade de andar pelos mercados, ver artesanato e pequenas festas locais. Muitas vezes, o Cherno acompanhou-nos, insistia que não havia pausas no seu papel de guarda-costas".

Foto: © Beja Santos (2007). Todos os direitos reservados



1. Mensagem de Joana Santos, com data de 20 de Dezembro:

Ao cuidado de Luís Graça

A pedido da minha Mãe, Maria Cristina Allen, remeto o texto "De Bissau com Amor", destinado à Tabanca Grande.

Com os melhores cumprimentos,

Joana Beja Santos



2. As Nossas Mulheres (2) > Bissau em Lisboa, com amor

por Maria Cristina Allen

[Revisão de texto e negritos: L.G.]

Caro Luís Graça,

Há mais de duas semanas, o António Gonçalves, meu conterrâneo e amigo de sempre, ex-alferes miliciano combatente na Guiné, telefonou-me dizendo que tinha visto o meu retrato no Blogue, que vem seguindo atentamente.

Foi com surpresa que lá me encontrei e sinto-me honrada por me ter feito membro da vossa Tabanca Grande (*). 

Do coração lhe agradeço a gentileza das palavras que escreveu a meu respeito. Eu não fiz nada, limitei-me a disponibilizar os aerogramas e cartas que me enviou, durante quase dois anos, o ex-alferes miliciano Mário Beja Santos, meu noivo e marido, com o intuito de o ajudar, agudizando a memória e a perspectiva cronológica de factos que, em Lisboa, muitas vezes me deixavam, então (e, porque não dizê-lo?) estarrecida.


Penso que muitas mulheres da nossa geração guardarão espólios idênticos, testemunhos da guerra que, da Guiné, como de outras terras do mundo africano, vinham perpassadas do quotidiano da luta pela impossível conservação de um Império que se desmoronava.

Meritória obra sua, a da criação de um blogue que faz o exorcismo libertador dos fantasmas da memória de homens, que, agora, põem por escrito as suas experiências.

Os americanos foram muito mais lestos no salutar tratamento das marcas do seu Vietname, mas eles não tinham estudado, nos bancos da escola, a geografia de “províncias ultramarinas”, nem tinham ouvido propalar que a “Pátria era una e indissolúvel” e que “a Pátria não se discute”, nem que não valia a pena chorar os mortos se os vivos não o merecessem.

Quanto à Guiné, direito secular português o do comércio de ouro e escravos e da ocupação territorial, mas também secular o desleixo, que, em pleno século XX, revelava o subdesenvolvimento. Suponho que todos nós vimos os meninos de Bissau estudando à luz dos candeeiros de rua e afugentando mosquitos (não foi por acaso que Amílcar Cabral sonhou o seu sonho, ao qual os seus continuadores ainda não souberam concretizar o rumo).

Porém, para além das diferenças ideológicas e da controvérsia, que ainda hoje subsiste, quanto à justeza daquela guerra, ela foi nossa, atravessando as nossas vidas em plena juventude. Penso que ninguém que lá tivesse estado, voltaria o mesmo que fora.



Apesar das cartas do Mário, das visitas aos seus soldados mutilados em Lisboa, e do bom humor ácido do Major Cunha Ribeiro, gravemente acidentado, eu não estava preparada.

Na cidade, a vida aparentemente almofadada e facilitada por amigos do Mário e também meus, nada podia ocultar os abafados ruídos de combate a quinze quilómetros de distância, nem a visão dos feridos e emocionalmente perturbados no Hospital Militar.

Na companhia do Mário ou sem ele (internado ou já em Bambadinca), andava em bolandas, com as malas, de casa de amigos para o hotel; do hotel para a casa de amigos. 

Repito que não foi fácil ter vivido em Bissau. A noiva radiante, que o Mário descreve no segundo volume do seu Diário da Guiné, depressa murcharia. Permitiu a sorte que se formasse, como reduto de consolo, uma tabancazinha de gente amiga, em passagem ou residente, militar e civil. 

Relembro esses amigos:

(i) Rdo. Pe Afonso Lopes (falecido): Franciscano, Prior de Bissau“:

A minha guerra”, disse-me, “é complicada: tenho clientes dos dois lados".

(ii) Capelão Militar Manuel Gonçalves:

Franciscano, meu colega de curso,  passava, por vezes, em Bissau. Tirou a fotografia que está no Blogue e muitas outras. Roubava, para mim, mangos doces ao Prefeito Apostólico!

(iii) Dr. David Payne Pereira (falecido) e sua mulher, Isabel:

Médico em Bambadinca e, posteriormente, em Bissau. Ele e a Isabel foram meus padrinhos e cederam-nos, por uns dias, a sua casa.

(iv) Eng.º Emílio Rosa e sua mulher, Elzira:

Padrinhos do Mário, também nos albergaram.

(v) Dr. Alexandre Carvalho Neto e a então sua mulher, Inês Santa Clara Gomes:

Foi o mestre de cerimónia do nosso casamento. Secretário de Spínola, teria hoje muito para contar. A sua boinazinha xadrez foi uma constante presença auxiliadora nas minhas andanças.

(vi) Dr. Pedro Jordão e a sua então companheira, Milú:

Conhecia-o da Faculdade e, em Bissau, ele trabalhava com Otelo. Conseguiram a façanha de transportar para ali um piano de cauda!

(vii) Dr. Carlos Brancamp Freire d’Orey (falecido):

Meu companheiro de estudos, que partiu para Genève para estudar Ciências Políticas. Regressado, foi para a Guiné. Todos os meses vinha a Bissau para levantar o dinheiro do seu batalhão. Sempre esperando transporte, andava às voltas com o grande e precioso saco, chegando a dormir com ele debaixo da cabeça, no dormitório improvisado numa sala do hotel. Cheguei a guardar esse saco no armário do nosso quarto.

(viii) S.A. Xisto de Bourbon de Bourbon-Parma Deux Siciles:

Fotojornalista. Teve a gentileza de nos ceder o seu próprio quarto. Por estranho acaso, ao tratar com o Alexandre do meu bilhete de regresso, no gabinete que antecedia o gabinete do então Brigadeiro Spínola, ouvi-o ser despedido numa gritaria bilingue, entremeada de palavrões em português. Uma história de napalm.

(ix) Senhor Quito Fogaça e sua mulher, Fernanda:

Ele, natural de Bissau, fora companheiro de escola do Nino,  e ela, minha conterrânea. Tiveram a imensa bondade de me ceder toda a sua casa como se fosse minha. Estranhamente, após a prisão de Pintozinho (e de mais dois homens de negócios de Bissau) também o Quito foi preso e, passados dias, guardado em casa. Jamais esquecerei este generoso casal.

(x) Senhor Benjamim Lopes da Costa (falecido):

Enfermeiro Militar e, já liberto da tropa, empregado numa farmácia, trazia-me mimos e visitava-me em casa dos Fogaça. Trouxe-me, uma vez, uma galinha-do-mato que me fugiu, quando a pensava já morta, de pescoço pendente pela porta aberta do pátio. Perseguia-a, correndo. Com dinheiro na mão, nem sempre encontrava géneros.

(xi) Joana, a minha querida "bajuda”:

Era manjaca, media quase dois metros, e inventámos, juntas, uma linguagem gestual misturada do crioulo dela. Viu-me, um dia, chorar, e embalou-me como se eu fosse uma criancinha. Quando lhe disse que ia partir, atirou-se para o chão, num choro convulso. Queria que a trouxesse. O seu nome soava-me tão bem que chamaria Joana à minha primeira filha.

Se alguém se lembrar de pessoas que citei nesta minha lista, que as recorde como, então, foram. Por elitista que, em parte, pareça, grandes e pequenos estiveram no mesmo barco que os senhores da guerra balançavam.

Caro Luís Graça, as histórias de amor a que alude morrem, por vezes, mas de nada me arrependo. Ainda hoje voltaria a subir as escadas da pequena Catedral de Bissau, mesmo que fosse, apenas, para viver o primeiro dia da “estação das chuvas”. Um trovão enorme e seco, torrentes de água lavando tudo e, à noite, a visão transcendental e única de um céu riscado de relâmpagos, na luz azul-turquesa, feérica e metálica, como se um deus antigo revelasse a sua ira e escrevesse “basta!” na caligrafia da natureza, solta em fúria.


Bem-haja, Luís Graça, por ter-me ajudado a libertar de uma memória que trazia dispersa e reprimida.

A todos os Camaradas do Blogue e a todos os que o seguem, um Feliz Natal e um 2009 menos carregado do que aquilo que esperamos. Afinal, a nossa geração viu muitas coisas.

Maria Cristina Allen

2. Mensagem enviado por editor L.G. à Joana Santos, filha de Mário Beja Santos e de Maria Cristina Allen, logo na volta do correio,

Joana:

Transmita, por favor, à sua querida mãe o meu profundo agradecimento pelo magnífico texto que ela me acaba de enviar, e que me emocionou. É um privilégio que muito nos honra e sensibiliza...

Há tempos tomei a liberdade de lhe reservar um lugar especial na nossa Tabanca Grande (figura na nossa lista, na letra C, como Cristina Allen, como pode comprovar ao ler os elementos estáticos do blogue que constam na coluna do lado esquerdo): afinal de contas, temos 'convivido' com ela, através das cartas e dos textos do seu pai (agora em livro) ao longo destes últimos dois anos... Não podia imaginar como ela receberia esta proposta, um pouco abusiva... Fico feliz por ela se sentir bem, entre 'velhos amigos'...e não como simples figurante ou adereço de um grande drama humano que foi aquela guerra...

O seu depoimento, sobre a sua passagem por Bissau, é valiosíssimo: poucas mulheres têm dado a cara, a inteligência e o coração, para vir dizer, em público, que também estiveram, nesses anos de brasa, no Vietname português... Seguramente que lhe fez bem rearrumar as peças desse puzzle... Para mim, e para os meus camaradas que fazem todos os dias, desde Abril de 2004, esta estranha blogoterapia - estranha para as suas mulheres e companheiros, os seus filhos, os seus netos, os seus concidadãos... - é um formidável estímulo, um tremendo desafio, uma belíssima recompensa...

Vou a caminho do Norte (onde passo o Natal) mas faço questão de, o mais rapidamente possível, ser eu, Luís Graça, a editar, a comentar e a publicar o texto da sua querida mãe, texto esse que é revelador de uma grande elegância, sensibilidade, maturidade e talento...

Bem haja, Joana, por ter trazido até nós a sua mãe. Ela dá voz a muitas mulheres, de um lado e do outro do conflito, cuja papel tem sido escamoteado ou ignorado na história desta guerra, que foi um negócio sobretudo dos homens (como continua a ser a própria literatura e historiografia da guerra)... 

Um bj para si e para a sua mãe. Espero que um dia destes nos possamos conhecer pessoalmente. Um terno e doce Natal para a Joana e para a Cristina.

PS - Dou conhecimento, directo, da nossa troca de mensagens aos meus co-editores, CV e VB. Esta é, de resto, a caixa de correio electrónico da nossa Tabanca Grande, administrada pelos três, tal como o blogue.


3. Comentário de L.G.:

A escassas horas da consoada de 2008, aqui na Madalena, Vila Nova de Gaia, ao pé das minhas mulheres (e dos meus homens), não posso deixar, a pretexto do texto da Cristina que me tocou - nos tocou, a todos nós, camaradas da Guiné - de fazer um simples referência a outro momento alto que aconteceu aqui, no nosso blogue, no dia 22 de Dezembro: refiro-me ao poste do Virgínio Brite, justamente sobre as "nossas mulheres" (***).

As palavras que ele põe na boca do seu alter ego, o Alf Mil Comando Gil Duarte, todos nós gostaríamos de as ter escrito... O VB sabe dar um toque muito especial, intimista, delicado, sedutor, à sua escrita quando fala das mulheres... É um homem, contido, mas de grande sensibilidade e inteligência emocional, que de vez em quando nos surpreende com belíssimos textos... Este não pode deixar de ser evocado no dia da apresentação, à nossa Tabanca Grande, da Cristina Allen, uma das "nossas mulheres" que também esteve casada com a Guiné (com a particularidade, seguramente rara, de se ter casado, em tempo de guerra, em Bissau, com um camarada nosso, com quem partilhou a breve lua de mel que as circunstâncias então permitiram).

Tomo a liberdade de transcrever aqui dois ou três páragrafos, em homenagem a ele, o nosso querido amigo e co-editor VB, e a elas, as nossas mulheres...

"As nossas Mulheres. As que nos acompanharam desde os bancos das escolas. Que viveram, com a Cruz na parede das salas, com o olhar severo e crítico dos Pais, sempre presentes ao jantar, e o olhar benevolente e compreensivo das Mães, presentes o dia todo.As nossas Mulheres. Amantes, de beijos roubados às portas das casas, de um sôfrego respiro de ânsias e desejos difíceis de esconder.As nossas Mulheres. Que nos acompanharam com linhas escritas com lágrimas, em aerogramas de saudade e esperança numa vida que diziam estar, mesmo aqui, ao lado da esquina, amanhã, o mais tardar. De tão jovens, algumas não aguentaram tanta separação. Quem lhes leva a mal, que a vida é curta e a Guiné estava tão longe.

"As nossas Mulheres. Que nos recolheram, exaustos de uma vida tão mal vivida, e nos ensinaram de novo a vivê-la.

"As nossas Mulheres. Que foram dando à luz e criando, quantas vezes sós, os filhos de uma geração desperdiçada, tantas vezes com os companheiros ausentes e desinteressados.Às nossas Mulheres, às que estiveram nos Terreiros do Paço a receberem medalhas e a todas as Mulheres da nossa geração, que de uma ou outra forma, compartilharam a nossa vida" (...).


_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 8 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3422: O Tigre Vadio, o novo livro do Beja Santos (2): O exemplar nº 1, autografado, dedicado à malta do blogue

(...) "Penso que é chegada a altura de homenagear aqui a Cristina Allen, a ex-esposa do nosso camarada Beja Santos, e mãe das suas duas filhas. Foi graças à preservação e à posterior cedência das cerca de 500 cartas e areogramas que ele lhe mandou, que o nosso amigo e camarada Mário Beja Santos pôde escrever este e o anterior livro sobre a sua experiência humana e militar na Guiné (1968/70). Ao longo de dois anos, a Cristina esteve de tal maneira presente no nosso blogue, que vamos agora ter saudades dela, e sentir o vazio que será a sua ausência no futuro. Para compensar ou prevenir essa perda, tomo a liberdade de anunciar que é uma honra, para nós, tê-la como membro da nossa Tabanca Grande. Seja bem vinda, Cristina!" (...)

(**) Boa parte do livro do Beja Santos, Diário da Guiné: 1969-11970: O Tigre Vadio (Lisboa: Cícrculo de Leitores; Temas & Debates, 2008), gira à volta da Cristina Allen e as peripécias do seu casamento, em Bissau, com o Beja Santos...

Vd. postes de:

21 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2123: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (2): Não te esqueças de me avisar que já sou teu marido

29 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2595: Operação Macaréu à Vista - II PARTE (Beja Santos) (22): Meu amor, vai acabar entre nós este Oceano!

28 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2693: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos (25): A festa do meu casamento, 7 de Fevereiro de 1970

4 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2720: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (26): Cartas de amor e de amizade

27 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2797: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (29): Lá estarei em Bissalanca à tua espera!

30 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2902: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (33): A correspondência epistolar na véspera do meu casamento

27 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2990: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (36): Um memorável batuque, em Bissau, na Mãe de Água, em honra da Cristina

6 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3027: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (37): Com baixa psiquiátrica, no Hospital Militar de Bissau

11 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3048: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (38): No HM241, em Bissau, voando sobre um ninho de jagudis

21 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3078: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (39): Adeus, até ao meu regresso

(***) Vd. poste de 22 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3662: As Nossas Mulheres (1): As que casaram com...a Guiné (Virgínio Briote)

Guiné 63/74 - P3666: O meu Natal no mato (19): Spínola, as meninas do MNF, o bispo de Madarsuma e um jornalista, em Gandembel, 1968 (Idálio Reis)

Guiné > Região de Tombali > Gandembel > Natal de 1968 > Missa de Natal capelão-mor dad Forças Armada. A este respeito escreveu o jornalista , Césa da Silva, em reportagem publicada no Diário Popular, de 17 de Março de 1969 (*):

"Gandembel foi a última posição avançada da Guiné que visitei durante a minha estadia nesta Província. Cheguei ali de helicóptero com o bispo de Madarsuma, Vigário Castrense das Forças Armadas, no dia de Natal. Recebeu-nos o comandante da sub-unidade, e, pouco depois comparecia também o governador e comandante chefe das Forças Armadas da Guiné. Assistimos à missa campal em ambiente de fervorosa fé. O prelado e o Governador partiram. Eu quis ficar. Era o meu adeus à guerra e queria portar-me com dignidade perante aqueles jovens soldados que me olhavam risonhamente, talvez comentando o facto de à nossa chegada (a do bispo de Madarsuma e a minha) ter sido festejada pelos 'turras' com algumas descargas de morteiro e de metralhadoras pesadas. Julgo até, que eles comentavam entre si o facto de os normais habitantes de certo abrigo me terem ali, quando estes entraram (…) ao explodirem as primeiras granadas. Eu pensava que 'gato escaldado de água fria tem medo ...' e tentava adivinhar a sensação do bispo de Madarsuma, que subitamente se sentiu agarrado por um braço no meio da parada e levado para o mesmo abrigo, onde eu já me encontrava"


Foto: ©
Idálio Reis (2007). Direitos reservados

1. Mensagem do Idálio Reis (*), ex-Alf Mil da CCAÇ 2317 / BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69), engenheiro agrónoma reformado, residente em Cantanhede:


ASSUNTO: Em Gandembel/Ponte Balana, apenas se celebrou um único Natal, precisamente há 40 anos (**).


Naquele plaino, qual clareira decorrente do derrube de uma pequena parte de uma verdejante e luxuriante floresta, para aí se sitiar um acampamento militar, pairava por aqueles dias uma certa acalmia. E esta morna tranquilidade, de todo não era usual.

E os silêncios circundantes, de tão esquisitos na sua serenidade, contribuíam paradoxalmente para uma ambiência de desconfiança, mais tensa e pesada, onde transparecia um agastamento que se tornava difícil intentar esbater.

O PAIGC vinha diminuindo gradativamente o seu fulgor belicista, no que provocava uma situação bonançosa inesperada. E esta alteração de comportamento não nos agradava sobremaneira.

Quem ousaria predizer as suas razões? Talvez nos quisesse brindar com um período de tréguas mais ou menos dilatado, ou então estivesse a urdir alguma estratégia ardilosa de forma a aproveitar uma melhor ocasião para desencadear um dos seus terríveis ataques.

Tínhamos porém, uma forçada e prolongada tarimba, para encarar cuidadamente tais situações, para o que bastava que o estado de alerta se mantivesse prudente e vigilante.

No início da semana de Natal, foi-nos dado a conhecer que o capelão-mor das Forças Armadas viria celebrar uma missa campal.

Os preparativos para esse dia não poderiam ser de grande monta, mercê das circunstâncias que nos eram impostas, mas houve a alegria bastante para se proceder a uma limpeza mais esmerada da pequena parada, que serviria de lugar de culto. Assim, numa quarta-feira, dia 25 de Dezembro, como habitualmente fomo-nos levantando aos primeiros raios do alvor. Era dia de Natal, e muito certamente o único que a Companhia passaria em Gandembel/Ponte Balana, e talvez mesmo em terras da Guiné, já que do tempo de comissão decorrido, tudo indiciava que a próxima Natividade seria passada no tão desejado aconchego familiar.

Bastante cedo, fomos procedendo às tarefas de rotina, e com um efectivo redobrado, seguimos até ao rio Balana buscar água; tudo haveria de correr de feição. O almoço, haveria de ser mais avantajado e suculento, já que tínhamos recebido determinados víveres que deram azo a que a ementa fosse das melhores que durante esta longa estada nos fora proporcionado.

E ao princípio da tarde, vestidos a preceito (onde a camisa era indumentária de gala), esperámos o séquito que haveria de vir ao nosso encontro. E pouco tempo passado, irrompiam nos ares do horizonte, um conjunto de helicópteros, que aterravam celeremente no centro de Gandembel, donde iam saindo diversas personalidades. E logo, aquelas singulares máquinas alares - as únicas que nos puderam tantas e tantas vezes socorrer-, levantavam.

Recordo os que pisaram este chão térreo: uma comitiva do Movimento Nacional Feminino, onde pontificava a sua Presidente, D. Ana Supico Pinto; presbíteros liderados pelo Bispo de Madarsuma; o Comandante-Chefe António de Spínola com alguns militares do seu Estado Maior; um jornalista do Diário Popular.

A Companhia postou-se junto a uma das casernas-abrigo e aprestou-se a dar as boas-vindas. Em silêncio (não em sentido), Spínola aproximou-se de nós e durante alguns momentos fitou-nos de frente [apresentava um fácies de olhar lânguido] e profere uma alocução muito breve em que abordando o tema do Natal, deu particular ênfase aos conceitos de Deus, Pátria e Família. Muito seguramente já havia tomado a decisão pela evacuação daquele aquartelamento, mas nada exteriorizou. De todo o modo, julgo que ao findar as suas palavras, parece ter-lhe perpassado um frémito de emoção, e repentinamente manda descer o seu helicóptero e segue um outro caminho, porventura menos ínvio e liberto que este.

As senhoras do MNF, em atitude bastante contida, simpaticamente fizeram uma pequena oferta a cada um de nós. O Natal de 1968 também nos obsequiara com o maior número de mulheres que Gandembel jamais tivera oportunidade de agregar, e ”nas conversas de caserna” referia-se que talvez fosse a maior prenda que o Pai Natal nos aportara.

Também se retiraram rapidamente.

Ficavam os membros do Clero, para a concelebração da missa. Um altar improvisado e uma Companhia em que a maioria dos seus homens eram católicos praticantes, sentida e contemplativamente ouvem e rezam em murmúrio dolente e fervoroso.

Mas, mal a missa acabou, começam a detonar uma série de granadas de morteiro 82, lançadas junto à fronteira. O bispo e seus acólitos ficam atónitos ante tal quadro e num relance meia dúzia de soldados vão em seu socorro, pegam-lhes nos braços e conduzem-nos para uma das casernas-abrigo. Passaram-se cerca de 10 minutos, terminam as deflagrações, e o helicóptero que devia estar em Aldeia Formosa é chamado, e os membros da Cúria também seguirão outros destinos.

Restou ente nós, o jornalista do extinto Diário Popular, que haveria de escrever um belo artigo sobre a guerra de Gandembel/Ponte Balana, e que o Blogue já o divulgou na sua quase generalidade.

O Sol, entretanto começa a empalidecer, e como havia conhecimento que no dia seguinte viria um helicóptero, cada um reconheceu que era o momento ideal para se escreverem algumas letras de saudade.

E a vida, felizmente para a maioria de nós, foi continuando. Em Gandembel/Ponte Balana, um Natal único, muito provavelmente o aquartelamento com um efectivo de Companhia, de todas as Províncias, em que se celebrou uma só vez.

E o tempo de hoje, vai-nos devorando, quando procuramos tactear as sensibilidades daquele dia ou de um qualquer outro similar.

Há recordações imorredouras…!

A toda a Tertúlia e seus familiares, veementes desejos de Boas-Festas.

Um forte abraço do Idálio Reis (***).

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Notas de L.G.:

(*) Vd.poste de 4 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3404: Recortes de imprensa (9): Em Gandembel - O adeus à Guerra (José Teixeira/César da Silva)

(**) Vd. últimpo poste da série O Meu Natal no Mato > 21 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3660: O meu Natal no mato (18): Olossato, 1966 (Rui Silva)

Vd.postes anteriores:

20 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3654: O meu Natal no mato (17): Cufar, 1973, o Cantanhez a ferro e fogo (António Graça de Abreu)

18 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3550: O meu Natal no Mato (16): Os meus Natais na Guiné (Luís Dias)

16 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3636: O meu Natal no mato (15): Salsichas com arroz na messe de Sargentos, na Consoada de 1968... (Jorge Teixeira)

12 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3609: O meu Natal no mato (14): Numa tabanca fula em autodefesa (Torcato Mendonça)

11 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3597: O meu Natal no mato (13): De Cutia (1970) ao CAOP1, em Teixeira Pinto (1971) (Jorge Picado, ex-Cap Mil)

24 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2379: O meu Natal no mato (12): Mansoa, 1971: Uma de caixão à cova... para esquecer o horror (Germano Santos)

24 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2378: O meu Natal no mato (11): Saltinho, 1972: O melhor bolo rei que comi até hoje, o da avó Clementina (Paulo Santiago)

22 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2374: O meu Natal no mato (10): Bissau, 1968: Nosso Cabo, não, meu alferes, sou o Marco Paulo (Hugo Guerra)

22 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2373: O meu Natal no mato (9): Embarquei no N/M Niassa a 21 de Dezembro de 1971... Que maldade! (João Lima Rodrigues)

21 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - 2372: O meu Natal no mato (8): Bissorã, 1964 (João Parreira, CART 730)

21 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2370: O meu Natal no mato (7): Destacamento do Rio Udunduma, 1969, Pel Caç Nat 52 (Beja Santos)

19 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2366: O meu Natal no Mato (6): Peluda, 1969: a Fátria, Manel (Torcato Mendonça)

19 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2364: O meu Natal no mato (5): Mato Cão, 1972: Com calor, muito calor, e longe, muito longe do meu clã (Joaquim Mexia Alves)

18 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2361: O meu Natal no mato (4): Cachil, 1966: A morte do Condeço e do Boneca, CCAÇ 1423 (Hugo Moura Ferreira / Guimarães do Carmo )

17 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2357: O meu Natal no mato (3): Banjara, 1965 e 1966: um sítio aonde não chegavam as senhoras da Cruz Vermelha (Fernando Chapouto)

17 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2356: O meu Natal no mato (2): Bissorã, 1973: O Milagre (Henrique Cerqueira, CCAÇ 13)

16 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2355: O meu Natal no mato (1): Jumbembem, 1965: Os homens às vezes também choram... (Artur Conceição)



(***) Vd. poste de 19 de Julho de 2007 Guiné 63/74 - P1971: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (9): Janeiro de 1969, o abandono de Gandembel/Balana ao fim de 372 ataques

Guiné 63/74 - P3665: As Boas-Festas da Nossa Tabanca Grande (10): Mensagens de camaradas que se nos dirigiram (Carlos Vinhal)

Mais mensagens de camaradas que se nos dirigiram com votos de Boas-Festas dirigidas a todos os tertulianos


1. Retribui e agradece em dobro com paz amor e saúde acima de tudo
Assim como para todos os Guineenses

Um grande abraço para todos
F Chapouto
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2. Feliz Natal. Bom Ano Novo

José Pedrosa
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3. Amigo Carlos:
Para ti, e por teu intermédio para todos os restantes camaradas da Tertúlia, os meus profundos desejos de umas Festas Felizes em família, com paz, saúde e em harmonia.

Um abraço do
J. Armando Almeida
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4.

Para todos um
BOM NATAL E UM 2009 CHEIO DE SUCESSOS

Benito Neves
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5.

A todos os Tertulianos e camaradas da Guiné desejo um Natal muito feliz
e um novo Ano com muita saúde, paz e amor.
Como é fácil perceber nem todos estarão na sua melhor forma.
Para esses, desejo que recuperem o mais rápido possível, e que nunca percam a esperança.
Deus vos acompanhará.

Um grande abraço para todos
Artur Conceição
____________

6.

Desejo a todos um Natal Feliz, cheio de paz, amor, amizade, sorte, felicidade, e tudo, tudo de bom. Próspero Ano de 2009.

Artur Soares
____________

7.

Para:
Luís Graça, Carlos Vinhal, Virginio Briote e
restante pessoal camarada da Tabanca Grande, com os votos de Feliz Natal e um próspero Ano Novo

Tino Neves
Almada
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8.

Amigos
Boa Festas e Bom ano
Jorge Teixeira
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9. A todos os amigos e camaradas da Tabanca Grande e suas famílias desejo um BOM NATAL e um PRÓSPERO 2009.

Luís R. C. Moreira
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10. Neste Natal e por teu intermédio quero desejar a todos camaradas da Tertúlia e suas famílias... Festas Felizes, super 2009.

Abraço
FIRMINO
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11.

Todos os anos nesta época, somos convidados a fazer Natal - criar ambientes de paz. amor. fraternidade, solidariedade . . .
Como é Natal, quando o homem quer, e, porque o Menino Deus nos desafia, tentemos fazer Natal todos os dias.


Para ti, e para tdos quantos te são queridos, os melhores votos de um Santo Natal
José Teixeira
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12. Manuel Vieira Moreira,
ex-1.º Cabo Mec Auto da CART 1746, BISSORÃ 67 e XIME 68-69, envia a toda a Tertulia, através do nosso amigo e companheiro Carlos Esteves Vinhal, votos de um SANTO NATAL e o 2009 cheio de SAÚDE
____________

13.

Pessoal da "Tabanca Grande":

Para todos vós, e vossos familiares e amigos, sinceros desejos de um Natal cheio de paz e saúde, e que o ano de 2009 seja de esperança e concretização dos vossos sonhos.

Festas felizes
Jorge Santos
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14.

Manuel Lema Santos
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15.

SINCEROS VOTOS DE BOAS FESTAS

Francisco Palma
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16. Feliz Natal para todos vós amigos tertulianos, junto daqueles que vos são são mais queridos!!!

Anexo uma mensagem diferente... (*)

do Pira de Mansoa
Eduardo M.R.
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Notas de CV:

(*) Qualquer trabalho enviado em Power Point, não pode, como é lógico, ser editado para publicação no Blogue. Dá uma trabalheira, copiar os slides e convertá-los em formato jpeg... Façam isso por nós, pobres editores, atarefadíssimos com o movimento natalício...

Vd. último poste da série de 18 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3653: As Boas Festas da Nossa Tabanca Grande (11) : Pepito e Isabel, do Quelélé com muito amor... e muita esperança

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3664: O meu Pelotão (António Matos)

Mensagem de António Matos, de 16 de Dezembro de 2008

África tem em Portugal o seu interlocutor privilegiado. Eu testemunho-o!

Um dia, na tranquilidade de um fim de tarde de canícula africana, estirado numa chaise longue que ameaçava desintegrar-se devido à sua artesanal concepção, à conversa com meia dúzia dos meus soldados, recordávamos, à laia de flashback, o que já tínhamos passado de mau e de menos bom naquela guerra, sem sentimentos patrióticos mas com um querer imenso de sobrevivência, contando os dias que faltavam riscando num calendário feito de propósito, numa cartolina preta escrita a marcador branco, entretendo-nos a entregar a roupa às bajudas lavadeiras na convicção absoluta de que mais tarde, à noite, seríamos, uma vez mais, perturbados na paz que tanto desejávamos por um inimigo inculto, ainda que aguerrido, e impossibilitado de compeender a ineficiência daquele conflito, prendando-nos com algumas rajadas de metralhadora.<

O sentimento com que o soldado português era automática e imediatamente tocado à chegada à Guiné era de uma afabilidade incomensurável, sem ideias bélicas pré-concebidas, sem azedumes de qualquer espécie, sem qualquer nesga de racismo, e a demonstrá-lo aí estavam as relações travadas desde logo com as populações no que às actividades normais do dia-a-dia diziam respeito.

No dia da chegada a Bula logo se deram a amizades que durariam aqueles dois anos e algumas delas, provavelmente, enraizaram-se com o nascimento de alguma criança não programada ...

Nem os combates nem a imponderabilidade da vida lhes afectava aquela intimidade espontânea ...

Hoje percebe-se porque é tão fácil o relacionamento de África com Portugal ...

Mas, voltando àquele dia, arrisquei a pergunta ao Moniz se já tinha esquecido um grande acidente que o nosso grupo tivera e no qual faleceram 3 camaradas. O Moniz tinha nas mãos um pássaro muito bonito, colorido, onde o azul sobressaía.
O seu semblante modificou-se profundamente e respondeu-me com muita serenidade:
- Meu alferes, se eu apanhasse um daqueles turras, fazia-lhe isto! - Acto contínuo, com os dedos indicador e polegar, puxou a cabeça do bicho tendo-o decapitado! Pura e simplesmente!
Ficámos por ali, sem recriminações, mas ainda hoje recordo com bastante assiduidade esta cena tão selvática quanto compreensível.
Como açoreano, acredito que o Moniz tenha emigrado e nunca mais ouvi falar dele.

O Pelotão.



Encetei há uns tempos a procura dos meus soldados que ainda se encontrem entre nós. Já "descobri" 4 deles!

Proponho-me reuni-los todos de uma só vez tendo a noção da homérica acção que isso será uma vez que, na sua maioria, são açoreanos.

Fica prometida a "fotografia de família" se a tanto conseguir chegar!

António Matos

BCaç 2928/CCaç 2790

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Nota de vb: Último artigo do António Matos em

14 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3621: Em busca de... (57): Ex-combatentes do BCaç 2928 (Bula...1970/72) (António Matos)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3663: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (14): Jubi, bô tem dos ôbo na mão?


FEITIÇO

No pátio junto às instalações dos alferes, estava sentado um garoto de sete ou oito anos, com um ovo em cada mão.

Passou o furriel Pinto, viu o garoto, reparou nos ovos e lembrou-se da bola de pingue-pongue que tinha no bolso dos calções. Perguntou-lhe:
- Jubi, bô têm dos ôbo na mão?
- É. É p’ra noss’ alfero Silva. Num ‘stá lá.

O furriel Pinto retirou do bolso, com a mão direita, a bola de pingue-pongue, deixando entrever grande parte da bola entre o indicador e o polegar. Perguntou ao garoto:
- Esso é ôbo?
- Sim.
- Suma esso?
- Sim.

Então, arremessou a bola contra o chão de cimento, voltando a agarrá-la. O rapaz levantou-se num repente, olhando o furriel com grande espanto.
- Ué!!!!
- Jubi, bô faz cum ôbo suma esso! – e atirou a bola ao chão repetidas vezes, agarrando-a a seguir.
- Nega! Nega! – gritou o rapaz, entre espanto e medo.
- Bô faz suma esso! Bô faz suma esso! – repetia o furriel, batendo a bola no chão .
- Nega! Nega! Nega! – berrava o rapaz, desesperado, mantendo os ovos bem agarrados nas mãos. Ao mesmo tempo, dizia “não” com o corpo todo – abanando a cabeça, batendo (repetidas vezes) com os cotovelos contra o tronco e com um joelho contra o outro joelho.
- Bô faz suma esso! Bô faz suma esso! – repetia o furriel.
- NEGA! NEGA! NEGA! – berrava o garoto, enquanto fugia.

Já longe, passou por uma mulher, que o interpelou. Parou, apontou para o furriel e, assustado, berrou:
- Feitiço!!! Tem feitiço!!!

E refugiou-se na tabanca.
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Nota de vb:


Último artigo da série em

11 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3603: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (13): Quatro actos para um ponto de vista...

Guiné 63/74 - P3662: As Nossas Mulheres (4): As que casaram com a...Guiné (Virgínio Briote)



À minha Mulher, às nossas Mulheres

por Virgínio Briote (*)

Em Santa Luzia, QG, Bissau


O aroma dela nas cartas, falta pouco, um mês só, não vou a Lisboa esperar-te, mas quando puseres os pés em terra, lembra-te, estou contigo. Em Bissau, a noite quente não lhe trazia ideias. Uma folha toda em branco, enorme, com tanto espaço para responder, nem sabia como começar. Quero estar contigo, sem mais ninguém por perto. Uma frase só numa carta. Não tenho mais para dizer, não sei o que escrever.

Vinte e quatro meses de cartas para lá e para cá. Escritas de coisas a encher papel, que de guerra não havia que dizer. Tinha cumprido, sem um desvio, o que tinha prometido a ele próprio, não falar de coisas de um mundo que se vivia longe. Que havia de dizer aos Pais e à namorada? De bazucas, de morteiros, de costureirinhas, de feridos, de estropiados, de evacuações? De uma guerra que se discutia? Não, não à namorada e aos Pais nem pensar.

Quando falava da Guiné, era do tempo que escrevia. Do calor e da humidade que nunca sentira. Vê lá tu, acabo de tomar banho e só de me limpar com a toalha estou outra vez a suar. E do tempo que falta, já estou aqui há quatro meses, falta-me pouco para ir de férias. Umas férias que também nunca vieram, por culpa dele. Quem havia de se meter em sarilhos na Associação Comercial de Bissau? Quem havia de fazer frente a um coronel, na ordem de batalha, dizer-lhe nas trombas, com oficiais presentes, que ele, senhor coronel, estava errado na vocação?

Não posso ir de férias, fui castigado, na tropa diz-se punido, por falta de respeito a um senhor coronel. Já passou um ano, só falta o outro. Vai passar num rápido. Estou bem, em descanso, não tenho nada para fazer, limito-me a esperar pelo dia em que te vou abraçar. Não é preciso testemunhas, só quero estar contigo, os dois sós.

E foi assim, a descontar num calendário riscado dia a dia, que o regresso se foi fazendo, até Janeiro de 1967. Tinha embarcado para a Guiné em 10 de Janeiro de 1965 e, exactamente no mesmo mês e dois anos depois, estava no Uíge, de volta.

Não acreditava, a ponte Salazar acabada, a Conde de Óbidos na mesma, tantas cerimónias de idas e vindas depois. E o ar de Lisboa, o frio de Janeiro, as pessoas enroupadas e ele ainda cheio de calor, da reserva que trazia das terras quentes.

No Depósito de Adidos, pediram-lhe que aguardasse, já que estava cheio de pressa. Só o tempo para lhe passarem um papel para as mãos. Passa à disponibilidade desde amanhã o Sr. Alferes Mil Gil da Silva Duarte, indo domiciliar-se em Fonte Seca, freguesia de Fonte Seca, concelho de Braga. O portador deste documento deverá apresentá-lo quando lhe for exigido pela autoridade militar ou civil, em substituição da sua caderneta militar. Quartel em Lisboa, 24 de Fevereiro de 1967. O Comandante, Fulano Ferreira de tal, coronel.

Na estrada para o Porto, mal deu pela viagem, fartou-se de dormir. Nem se lembra onde ficou, se em casa dos pais, se na da madrinha. Recorda-se, isso sim, do dia seguinte, a seguir ao almoço. O eléctrico para o Monte dos Burgos, o 6 por ali acima até ao Carvalhido, o passo acelerado até à rua dela, o toque na campainha, a corrida pelas escadas acima e ela a vir por ali abaixo.

Um dia frio de finais de Janeiro. O Porto era o Porto do Sol escondido, o eléctrico chiava pela Carvalhosa e Cedofeita abaixo até aos Aliados. Os olhos nem sabiam para onde se virarem, o cheiro era o mesmo Lancôme. Dois anos depois e quase tudo na mesma.

Ao lado dele, Ela linda, de sobretudo azul escuro de botões prateados, os olhos levemente pintados, a cara lisa e redonda, os olhos magníficos. Ele, ainda cheio de calor, de blaizer azul escuro e calças cinzentas, camisa branca e gravata de tons vermelhos como gostava, Atrix nas mãos dadas, rua 31 de Janeiro, de nome mudado para Santo António, acima até à Batalha, muito mais silêncio que palavras de ocasião. Um embaraço, tanto tempo depois, tantas palavras para dizer e tanto silêncio.

Porque não dizes nada? Mais perguntas, maior a vontade de se fechar. Um mundo diferente passava-lhe à frente. Pessoas nas ruas, sorridentes, a vida a correr e as recordações não despegavam. Bolanhas, camaradas, trilhos, coladeras, cerveja, tiros, uísque, terra a ferver, pés queimados, noites escuras e logo a seguir brilhantes como se dia fosse. Outro mundo, uma semana e pouco depois.

As nossas Mulheres. As que nos acompanharam desde os bancos das escolas. Que viveram, com a Cruz na parede das salas, com o olhar severo e crítico dos Pais, sempre presentes ao jantar, e o olhar benevolente e compreensivo das Mães, presentes o dia todo.

As nossas Mulheres. Amantes, de beijos roubados às portas das casas, de um sôfrego respiro de ânsias e desejos difíceis de esconder.

As nossas Mulheres. Que nos acompanharam com linhas escritas com lágrimas, em aerogramas de saudade e esperança numa vida que diziam estar, mesmo aqui, ao lado da esquina, amanhã, o mais tardar. De tão jovens, algumas não aguentaram tanta separação. Quem lhes leva a mal, que a vida é curta e a Guiné estava tão longe.
As nossas Mulheres. Que nos recolheram, exaustos de uma vida tão mal vivida, e nos ensinaram de novo a vivê-la.


Em 1971, quatro anos depois da Guerra e ainda à procura da paz.

Foto: © Virgínio Briote (2008). Direitos reservados


As nossas Mulheres. Que foram dando à luz e criando, quantas vezes sós, os filhos de uma geração desperdiçada, tantas vezes com os companheiros ausentes e desinteressados.

Às nossas Mulheres, às que estiveram nos Terreiros do Paço a receberem medalhas e a todas as Mulheres da nossa geração, que de uma ou outra forma, compartilharam a nossa vida.

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Nota dos editores LG/CV:

(*) Vd. poste de 11 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1943: Virgínio Briote, novo co-editor do blogue

(i) Virgínio António Briote, 63 anos, nascido em Cascais.


(ii) Asp mil em Set de 1964, no BII17, Angra do Heroísmo, Terceira.


(iii) Mobilizado para Cabo Verde, dois dias depois para a Guiné. Engano, disse-lhe o Comandante do BII17.

(iv) Em rendição individual, foi para Cuntima, onde permaneceu de Janeiro até Maio de 1965 na CCAV 489, do BCAV 490.

(v) No final da comissão do Batalhão, esteve nos Comandos, onde fez o 2º curso de Instrução.

(vi) Comandante do Grupo Diabólicos, de Setembro de 1965 até Junho de 1966.

(vii) Extinta a CCmds da Guiné nessa data, foi destacado com o remanescente dos grupos para reforço do sector de Mansoa, onde se manteve até Set do mesmo ano.

(viii) Até à data de embarque em finais de Janeiro de 1967, prestou serviço na CCS do QG em Bissau.

(ix) Na vida civil, ingressou na Indústria Farmacêutica, tendo trabalhado em várias multinacionais, como responsável pelos departamentos comerciais.

(x) Motivos de saúde obrigaram-no a reformar-se aos 60 anos. Dá colaboração a empresas farmacêuticas, em colaboração com empresas de recursos humanos.

(xi) Vive em Lisboa e é casado com a Mria Irene, professora do ensino secundário, ainda activíssima. É pai e avô... babado.


Vd. também o blogue do Virgínio Briote > Guiné, Ir e Voltar - Tantas Vidas> Guiné. Ir e voltar. 1965 e 1967. Histórias baseadas em factos reais, mas vistas por um certo olhar. Outras vistas por esse olhar e que mais ninguém viu . (...).

Guiné 63/74 - P3661: Blogoterapia (84): Vai-te embora, tuga dum carago! (José Teixeira)

1.Mensagem do José Teixeira, com data de 21 de Dezembro:


Querido amigo Luís.

És um chatarrão (não sei se vem no dicionário) do carago, mas amigo de coração (*).

Então, desde que tive o grato prazer de conhecer a tua Alice no QG de Bissau, agora com o nome pomposo de hotel 24 de Setembro (nem de propósito), ainda mais preso a vocês, fiquei.

Admiro a tua garra e teimosia e agora a tua /vossa (os três bloguistas mor) em manterem esta chama blogosférica acesa, contra alguns ventos e marés (poucos, felizmente). É um ninho permanente de novidades verdadeiramente vividas e sentidas. São histórias de arrepiar, que muitas vezes fazem o coração tremer e as lágrimas teimosas descerem pela face, apesar de tantos anos se terem passado, já. São um reviver da nossa própria história, quando ouvíamos o estrondo da saída, lá longe. reflexo de alguém que me gritava no mato:
- Tuga, vai-te embora !

Vou tentando dar o meu singelo contributo. Sou só e apenas, alguém, que esforça para que a nossa história seja contada pelos nós próprios. A história dos combatentes por uma Guiné que os senhores do poder de então queriam que fosse portuguesa à força das armas e se serviam do melhor tesouro de Portugal (o verdadeiro, com mais de 900 anos de história),a juventude para abafar a força da razão de um povo - o direito a ser livre e condutor do seu próprio destino, nem que esse destino fosse o caminhar para um inferno. Seria correcto, sim, procurar dar-lhe condições para eles, os naturais da Guiné, evoluirem culturalmente, política e economicamente para o grande passo, tal com nós, os que somos pais, fazemos com muito amor, dedicação, carinho e sacrificio para com os nossos filhos.

Essa história foi vivida por nós, é nossa (**).

É urgente que a contemos antes de passarmos para o outro lado da vida e já faltou mais do o que falta agora. Assim estamos a evitar que a nossa história a verdadeira, porque vivida no terreno e sentida na vida seja construida na base da corrente politica que impere na altura em que algum historiador /inventor, tente passar ao papel a sua interpretação histórica dos nossos gestos e actos.

Será que não os vemos já por aí, a insultar-nos, chamarem-nos cobardes e até a perguntarem porque é que fomos, se não queríamos defender a dita (sua) pátria - Portugal pluri-continental e pluri-racial à força, esquecendo-se que havia um Estado totalitário, que nos impunha um único caminho - Carne para canhão ou fuga para o estrangeiro com o anátema de cobarde ou de traidor à pátria.

Os nosso filhos, os nossos netos e vindouros que irão perpetuar o nosso sangue, não podem ficar a navegar nas águas da mentira histórica que é construída de acordo com os ventos políticos que na altura (data) correrão. Não nos podemos demitir, agora que temos na mão os meios possíveis para o fazer. Bem hajas pela coragem que tiveste em arrancar com este projecto que ficará, não tenho dúvidas na História de Portugal e será no futuro uma fonte grandiosa de pesquisa e estudo. Fonte verdadeira, que não permitirá extrapolações ou deturpações da nossa verdadeira história.

Por tudo isto, vou escrevendo umas asneiras, que vocês dão a lume, com tanto carinho que me deixam deslumbrado e, porque não, um pouco vaidoso.

Luís amigo, espero que tenhais uma boa viagem até à terra dos morcões que o Natal seja verdadeiramente Natal para todos quantos vos são queridos e aguardo o prazer de vos Ver na Madalena nos próximos dias.

AS melhoras da Alice para que possa comer umas rabanaditas, carago !

Fraternal abraço do
José Teixeira

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 19 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3652: Blogoterapia (83): Voltamos a pôr a Ana (e o José...) a sorrir, na nossa fotogaleria (Luís Graça)

(**) Vd. poste de 18 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3651: Estórias do Zé Teixeira (31): Um Pide, um marabu e um balanta de Bula que se converte ao Islamismo (José Teixeira)


(...) Comentário de L.G.:

Grande Zé! Que em 2009 a gente possa fazer uma festinha, na Tabanca de Matosinhos, para comemorar o lançamento do teu primeiro livro de contos!Quem te deu esse talento, meu morcão ?Hoje não vou estar aí, com muita pena minha, mas olha, dá uma cópia do meu "Poemombro ou um ombro amigo" a quem sentires mais em baixo, mais triste ou mais cansado da vida... São os meus dois cêntimos para a festa da Tabanca de Matosinhos. Diz à malta que eu fico a roer as unhas de pena (e de inveja) por não poder estar aí vocês todos, como ainda planeei...Alice tem estado adoentada... Devo chegar só à tarde, no sábado, e vou primeiro direito à aldeia (Candoz)... Passo o Natal na Madalena. A gente há-de se ver...Luís

domingo, 21 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3660: O meu Natal no mato (18): Olossato, 1966 (Rui Silva)

1. Mensagem do Rui Silva;

Uma história (verdadeira) de Natal

O Natal da 816 no Olossato (Dezembro de 1966)
Das minhas memórias: “Páginas Negras com salpicos cor-de-rosa”-


... Entretanto chega o Natal. O Capitão reúne o pessoal mais graduado, lembra e propõe um programa festivo assinalando tão interessante data e, claro está, a que o pessoal, por doutrina própria, é sensível. Sabíamos que estávamos longe, muito longe dos outros santos do nosso presépio (família) e que também estávamos num sítio errado.

No programa salientava-se um espectáculo de teatro com peças mais ou menos rápidas: cenas de humor, canções, fados, poesia, coro, etc. Só esperávamos era que não houvesse foguetes, presentes do inimigo.

Apareceram habilidosos para tudo. Tudo isto culminava com um jantar de rancho melhorado no dia seguinte, dia de Natal, aonde se reuniu, no refeitório dos soldados, toda a família 816.

Quanto ao espectáculo teatral este começou antes de o ser, pois o bom amigo do Moreira que entretanto tinha improvisado um pequeno palco, de formato quadrado, com tábuas apoiadas em pequenos troços de troncos de palmeiras, ao qual aplicou, nos dois vértices posteriores, dois potentes faróis de viatura militar originando um foco luminoso dirigido aos actores… de ocasião, dando assim mais vida ao espectáculo e até a dar um ar de teatro profissional.

Lembra-se, e aqui é que começa o circo, da sua louvável ideia de arranjar um sistema de cordas e roldanas que permitiam um movimento de puxar esta ou aquela corda, consoante o interesse em abrir ou fechar as cortinas (cortinas mesmo, de alto a baixo) que escondiam o palco aquando da mudança de número e tarecos e à boa maneira dos verdadeiros teatros. O engenho foi testado várias vezes e não havia dúvida, para garbo do Moreira, e a boa surpresa dos outros, a coisa estava funcional. Puxava-se uma ponta da corda e o cortinado abria. Puxava-se a outra ponta e o cortinado fechava. O Moreira sorria com o evento. Estava um primor!, e até parecia um teatro a sério! Por ali já havia sucesso.

Mas o melhor ia sair: logo ao começar do espectáculo o sistema… AVARIOU!

As cordas emaranharam-se de tal maneira que o pano, uma vez fechado, não mais abriu, para nossa desolação e maior frustração do Moreira. No entanto, acabou por o melhor remédio ser uma grande risota. Houve também quem as não poupasse ao diligente e agora desolado Moreira, mas o teatro prosseguiu na mesma, ... de cortina aberta. Tudo afinal contava para uma alegre e boa disposição.

Os cenários e outros adereços, que faziam parte dos diversos números, eram então mudados e montados mas agora mesmo à vista dos espectadores, isto é, ao vivo, o que tirava um certo valor ao programa, mas tudo se compôs com a compreensão e a boa disposição da plateia.

Entre os diversos números destacava-se “A barbearia dos surdos-mudos”, no qual fazia de barbeiro o corpulento Barrumas. O próprio barbeiro era também, claro, surdo-mudo.

Então o barbeiro esperava que se juntassem três fregueses. Logo que chegasse o terceiro freguês sentava-os em outras tantas cadeiras que estavam alinhadas. E então ia trabalhar em série.

Pegava então numa corda que tinha também 3 rolhas fixas a espaços regulares, espaços esses iguais aos de cadeira a cadeira e então com os 3 clientes já sentados, ele punha uma rolha na boca de cada um deles e de forma que a corda ficasse bem esticada.

Depois de afiar a sua grande navalha, que mais parecia uma faca de cortar bacalhau na mercearia, ele puxa a ponta da corda que fazia com que as 3 caras virassem todas ao mesmo tempo e para o mesmo lado. Puxava em seguida por a outra ponta e agora as 3 caras viravam para o lado oposto. Assim o barbeiro barbeava ora as faces esquerdas ora as faces direitas dos clientes no mesmo movimento. Era um trabalho em série e bem sincronizado.

O que acontece é que o dia não estava para as cordas, pois quando ele pega na corda que tem as três rolhas (tantas como os clientes a barbear) para pôr as rolhas nas bocas dos clientes, já sentados, a corda das rolhas enriça-se de tal maneira que faz com que duas das rolhas ficassem muito chegadas. Com isto 2 dos clientes ficaram com as caras quase encostadas, na circunstância o Cowboy e o Vizela. O Cowboy então, por pouco não aguentava a situação, pois ia rebentando com o riso.

Os clientes da barbearia, ou sejam os fregueses, foram escolhidos a dedo, para tornar o número mais aliciante e assim, aos dois fregueses atrás referidos juntou-se o Fonsequinha. Que trio!!

O Fonsequinha, como era pequeno, mal disse, pelos gestos –não nos esqueçamos que os clientes eles eram todos surdos-mudos- ao que vinha, o Barrumas pega nele por a gola do casaco e assim suspenso, senta-o numa das cadeiras. O Fonsequinha com o seu bigode à Hitler, estava mesmo a calhar para a cena.

O número acabou por se fazer, mas o problema da corda embaraçou barbeiro e barbeados, que à mistura com os risos dificilmente suportados perderam assim alguma serenidade para desempenharem bem o seu papel. Ao fim e ao cabo a malta acabou na mesma por se rir, mais até com o inesperado episódio da corda, e como estávamos ali para nos rirmos…

O barbeamento foi no entanto feito com qualidade, ainda que com algum sacrifício e alguma ginástica de Barbeiro e barbeados. Se o número era já de rir a história das cordas aumentou aquele.

Eu que estava na parte de trás do palco -nos bastidores- quando aconteceu ver o Cowboy quase em cima do Vizela e o embaraço do Barrumas, não mais me interessei ver a peça e foi dar largas à minha enorme vontade de rir, pois a peça era agora outra.

Entre outros números, o Piedade cantou, o Correia apresentou os seus fados de Coimbra, entre eles o seu “Mar eterno”. O Ludgero foi figura principal num número em que o Belchior, então espectador, saiu bem molhado com água.

Por sua vez o Belchior saiu-se com poesia, e bem, ou ele não tivesse pinta para isto. Eu e o Carneiro fomos os apresentadores e houve também um coro –que abriu o espectáculo - muito bem ensaiado pelo Alferes Esteves. A coisa não foi má e aquele alegre convívio fez-nos esquecer a mágoa que porventura sentíamos de nos vermos naquele dia distante da família e num clima de guerra.

O Natal passou. Entretanto toda a malta recebeu do MNF (Movimento Nacional Feminino) um isqueiro e alguns maços de tabaco como lembranças de Natal.

Pela passagem de ano também se fez festa. Dançou-se e cantou-se na cantina dos soldados. O Pele-e-osso foi figura preponderante a dançar, pois ficou-se ali a saber que ele era elemento de um grupo de folclore. Que bem ele dançava! O Capitão apareceu depois e também cantou “O meu menino é d’oiro” e, pronto, o passar do ano também não passou sem festa. Uns copitos e danças (daquelas ao Deus dará –ninguém rachou a tola-) e eis-nos no dia 1 do ano de 1967.

A página da quadra do Natal foi virada e tudo voltou à rotina do dia-a-dia.

A operação seguinte…..

Rui Silva
Ex-Fur Mil
CCAÇ 816
(Guiné 1965/67)
____________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste > 20 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3654: O meu Natal no mato (17): Cufar, 1973, o Cantanhez a ferro e fogo (António Graça de Abreu)

Guiné 63/74 - P3659: Tabanca de Matosinhos (8): Natal 2008: Memorável convívio no Milho Rei (Carlos Vinhal, texto; Jorge Teixeira, imagem)

NATAL 2008 DA TABANCA DE MATOSINHOS

Em Matosinhos, sexta-feira à noite, foi Natal

Cinquenta a 60 pessoas, entre ex-combatentes da Guiné e respectivos acompanhantes, confraternizaram num ambiente extarordinário de camaradagem e amizade, no Restaurante Milho Rei.

Desde Torre de Moncorvo a Lisboa, passando pela Régua, Gaia, Espinho e Aguada de Cima, a Tabanca de Matosinhos reuniu camaradas e famíliares. Muitos mais gostariam de estar presentes, mas motivos vários forçaram a ausência.

Já durante o jantar, e apesar do enorme ruído na sala, consegui ouvir e registar palavras amigas e solidárias do Editor Luís Graça e do tertuliano Jorge Picado que bem gostariam de estar connosco naquele momento. Agradecemos retribuímos os votos recebidos. Contamos convosco para o próximo Natal.

Aproveito para entregar ao Luís uma mensagem especial do senhor Basto, pai do nosso tertuliano Álvaro Basto. Confidenciou-me ter ficado triste por o Luís não poder estar presente, pois gostava de lhe dar um abraço. Envia-lhe os melhores votos de Boas-Festas e um Novo Ano em pleno de saúde.

De registar uma mensagem enviada para Matosinhos pelo Doutor Julião Soares Sousa, Presidente da Direcção da Casa da Guiné-Bissau de Coimbra, agradecendo o que alguns camaradas da Tabanca de Matosinhos têm feito em prol da Guiné-Bissau.

O bacalhau estava óptimo, assim como a perna de porco assada. Bom vinho branco e tinto (conforme o gosto), óptimo digestivo do Zé Manel, alguns doces (rabanadas e bolo-rei incluídos) e café. Melhor não podia ser.

O ponto alto da noite estava para vir com a actuação dos músicos privativos da Tabanca de Matosinhos, a saber: David Guimarães, Jorge Félix, Álvaro Basto e mais dois cavaquinhos dos quais lamentavelmente não sei o nome. António Pimentel andou muito tempo com o instrumento na mão, mas não sei se se fez ouvir.

Alguns dos presentes resolveram estragar a actuação dos instrumentistas, tentado e conseguindo, não raras vezes, cantar ao som da música.

Quando se olhou para o relógio, já o dia era outro e as ruas de Matosinhos apresentavam um movimento reduzido.

Basta de palavras e passemos aos melhores momentos registados pelo nosso camarada Jorge Teixeira que passei a conhecer pessoalmente desde ontem.

Texto (incluindo legendas): © Carlos Vinhal, editor (2008)
Fotos: © Jorge Teixeira (2008). Direitos reservados.


Ala esquerda da mesa, onde se destaca o Silva em primeiro plano. O nosso médico veio de Lisboa especialmente para o convívio.

O cantinho da família Marques Lopes. Batista prova o tinto.

O nosso Pira de Mansoa, o bom camarada Eduardo Magalhães, procura o melhor ângulo para a foto da noite. Na tela passa um filme feito em Março, na Guiné-Bissau.

O nosso camarada Jorge Teixeira contempla uma bela travessa de bacalhau, enquanto mão marota rapta uma indefesa rodela de batata frita. Que cheirinho!!! Almeida parece dizer: - Não perdes pela demora.

Na ponta da mesa, Lobo, David Guimarães e esposa em conversa com outros camaradas

Está-se mesmo a ver que quando cheguei junto da mesa... já outros por lá tinham passado.

Marques Lopes e Zé Manel parecem disputar a pomada. Ao fundo, David Guimarães observa a contenda.

Ala direita da mesa onde pontuam Xico Allen, João Rocha, Barroso, família Marques Lopes, Batista, Senhor Basto e Joaquim Almeida (Custóias), entre outros.

Novamente a pomada é motivo de alguma tensão. Os semblantes de José Teixeira e Paulo Santiago enganam. O momento é mesmo grave.

Nesta foto, o Zé Teixeira confere as contas, não vá o diabo tecê-las.

Neste momento já os músicos se faziam ouvir, embora a amplificação sonora parecesse ter sido comprada em alguma loja dos trezentos. Ou dos chineses?

O nosso jovem companheiro, senhor Basto, pai do camarada Álvaro Basto, circula pela sala. Como ex-militar que é, procura a melhor estratégia para defesa e para o ataque.

Não acham o tamanho do instrumento desproporcionado ao tamanho do tocador.

As senhoras não deixaram os seus créditos por mãos alheias e toca a fazerem-se ouvir.

Carlos Silva e Xico Allen trocam impressões. Como vamos atacar as rabanadas?

Como se pode observar, concordância é coisa que não existe. Cada dedo, um objectivo. E efectivos para tantos golpes de mão?

Álvaro Basto ataca o instrumento, enquanto Pimentel parece perguntar se as cordas são todas para usar. Batista pensa, mas não pode ajudar.

A esposa do Carlos Silva dá umas ideias ao Jorge Félix, quanto ao alinhamento do concerto.


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Notas de CV:

Podem também ver reportagem do acontecimento na Tabanca de Matosinhos, em:
http://tabancapequenadematosinhos.blogspot.com/2008/12/tabanca-encheu.html

Vd. último poste da série de 10 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3591: Tabanca de Matosinhos (7): Jantar de Natal, sexta-feira, 19 de Dezembro de 2008, no Milho Rei, em Matosinhos (Carlos Vinhal)

Guiné 63/74 - P3658: Historiografia da presença portuguesa em África (14): Postais antigos, um relicário de João Loureiro (Beja Santos)

Imagem da capa da publicação Postais antigos da Guiné, da autoria de João Loureiro.


Foto: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados


1. Mensagem do Beja Santos:

Assunto - Um relicário dos postais que enviámos aos nosso entes queridos!
Malta, telefonou-me há dias o Dr. João Loureiro, autor destes esgotadíssimos postais da Guiné, felicitando-me pelos 2 livros meus sobre o meu diário de guerra que ele muito apreciou e pedindo-me para nos encontrarmos.

Aqui está o lindo presente de Natal que acabo de receber. A obra divide-se em quatro secções:

(i) Bissau no primeiro quartel do século XX;
(ii) Bissau dos anos 40 aos inícios da década de 70;
(iii) Aspectos do interior;
(iv) O Povo e os Costumes.

Prometeu-me entregar em Janeiro ou Fevereiro outro exemplar para o Luís Graça, que ele tanto admira. O título da colecção é: Memória Portuguesa de África e do Oriente (*). É uma edição de 2000.

Vou enviar, mais tarde, imagens sugestivas dos postais que escrevemos a quem tinha saudades nossas. Ambiciono que o nosso blogue possa juntar os documentos mais importantes da nossa história comum (**).

Um abraço do Mário

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Notas de L.G.:

(*) Nesta colecção, há outras publicações de João Loureiro: postais antigos de Macau (1995), de Moçambique (1997), de Angola (1997), de São Tomé e Príncipe (1997) e de Cabo Verde (1998).

Vd. Memória de África

Autor - LOUREIRO, João
Título - Postais antigos da Guiné
Local - Lisboa
Editor - João Loureiro e Associados
Ano - 1997
Nº pp - 143
Preço - c. 35 €

"Os 248 exemplares que seleccionei para estes 'Postais Antigos da Guiné' , destacados de um lote superior de 550 que constitui a respectiva 'caixa' de arquivo, procuram documentar a génese e a evolução da cidade de Bissau, aspectos relevantes das vilas do interior e, com alguma ênfase que é natural num território com uma enorme variedade étnica e cultural, tópicos da vida e dos costumes do povo guineense.» (Fonte: ACVL On Line)

(**) Vd. último poste desta série > 17 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3642: Historiografia da presença portuguesa (14): A exótica Bissau do Séc. XVII e o papel de D. Frei Vitoriano Portuense (Beja Santos)