1. O nosso Camarada de Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520 - Cameconde, 1971/74 – enviou-nos mais uma história das suas memórias da guerra:
Camaradas e Amigos,
Um grande abraço e espero que estejam todos em plena forma.
A história que hoje vos envio é, sobretudo, uma homenagem a um grande amigo e companheiro de armas.
As fotografias já estão velhinhas, mas é o que tenho sobre o tema. Se conseguirem melhorar a qualidade... fico-vos grato, como de costume.
Até breve.
VICENTE, O PIU
O Vicente era o Furriel de Minas e Armadilhas do 2º Grupo de Combate da CCaç. 3520! Popularmente era conhecido por Piu, alcunha que nada tinha a ver com um temperamento piedoso, mas simplesmente com o seu vício de caçador de passarada!
Era ele, provavelmente, quem mais contribuía para o moral elevado das nossas tropas. Embora não fosse aquilo a que habitualmente chamamos uma figura carismática, o Vicente era a boa disposição permanente e contagiante, que nos permitia rir com gosto e facilidade!
Era o homem sempre pronto a pregar partidas aos camaradas!
O Vasconcelos, Furriel de Artilharia em Cameconde, homem dos obuses 14, era uma das suas principais vítimas! Pequenino e bom de bola, fazia inveja ao Garrincha, de tal modo as suas pernas eram arqueadas, e, segundo o Piu, bastante feias! Por essa razão, andava sempre de calças e só tomava banho à noite e sozinho! Salvo quando o Vicente lhe colocava baldes de água em cima das portas por onde ele ia passar!
O Piu e o Zé Vermelho em Cacine: dois grandes malucos!
O Vasconcelos veio à Metrópole de férias e terá conhecido, numa festa, uma miúda por quem se apaixonou! Quem escolheu para confessar a sua paixão? Exactamente o Piu, que explorou exaustivamente a situação, obtendo informação detalhada! Estava em marcha mais uma partida!
O correio enviado diariamente por Cameconde aguardava transporte em Cacine.
A correspondência chegava e partia de Cacine, na melhor das hipóteses uma vez por semana, em avioneta Dornier 27. O pessoal que estava destacado em Cameconde recebia o correio no dia seguinte, através da coluna auto que todas as manhãs ligava os dois aquartelamentos.
Com alguém em Cacine feito com o Piu, o Vasconcelos começou a receber correspondência da sua paixão, aerogramas que eram escritos e falsificados em Cameconde pelo Piu, vinham a Cacine e voltavam a Cameconde, sempre que havia correio geral a distribuir. Naturalmente que as respostas do Vasconcelos nunca passavam de Cacine, voltando a Cameconde, onde eram entregues ao Piu.
O Alcino Sá e o Piu na praia de Cacine: tempo de lazer.
O detalhe da tramóia incluía carimbos e restantes pormenores que faziam acreditar no realismo da correspondência!
O conteúdo, inicialmente erótico, posteriormente pornográfico, com inclusão de sexo virtual, era do conhecimento de todos, apenas o Vasconcelos desconhecia a partida!
Estava cada vez mais apaixonado… e continuava a confessá-lo ao Piu com quem, ainda por cima, comentava o correio que recebia da sua paixão!
A partida durou as semanas que o Piu entendeu e quando se fartou… escreveu uma última missiva, identificando-se, descompondo o Vasconcelos e chamando-lhe alguns nomes que pouco abonavam a sua masculinidade!
Acabou, assim, deste modo abrupto, um passatempo que animou, durante algum tempo, o destacamento de Cameconde, buraco do… cú do mundo, onde nada existia e nada acontecia, para além de umas bazucadas com maior frequência que a desejada!
O Romeiro era outra habitual vítima! Deitava-se muito cedo e o seu quarto era mesmo ao lado do bar de Sargentos em Cacine, onde os noctívagos se reuniam até altas horas da noite!
Certa noite o Vicente aparece com uma corda que previamente atara à cama do Romeiro e ordena:
- Quando eu disser, toda a gente puxa a corda e grita… terramoooooto!
O resultado foi fantástico: o Romeiro salta da cama como o pai Adão quando veio ao mundo, atravessa toda a messe de sargentos a correr, e só pára na parada com todo o mundo a rir!
Alcino Sá, Piu, Costa Pereira, um djubi, Carlos Alves, Juvenal Candeias: em Cameconde, impecavelmente fardados, ou foi dia de festa ou de visita importante.
Ou o Cunha, que por vezes era afectado por sonambulismo!
Uma noite levanta-se, agarra na G3 e corre para a rua a gritar:
- Eu dou cabo dos gajos… eu dou cabo dos gajos!...
Foi o Vicente que o foi buscar e acalmar… antes de ele começar a disparar!
Mas o Vicente não era apenas isto!...
O Vicente era furriel de minas e armadilhas… ou apenas de armadilhas?!
- Não monto minas para os gajos levantarem e voltarem a montá-las contra nós! As armadilhas não levantam! Ou caem nelas ou rebentam-nas! – Dizia com convicção.
Sempre que, a seguir a um campo de minas encontrava munições de kalash espetadas no chão a formar a palavra PAIGC, não saía dali sem deixar a sua armadilha e CCAÇ 3520 escrito no chão com munições de G3!
- Eles voltam sempre ao local do crime! – Afirmava!
Um dia levantámos umas minas anti-pessoal de origem chinesa, tipo queijo da serra em plástico cor verde azeitona! Para nós, habituados aos caixotes PMD6, esta marca era um problema! Estávamos todos à rasca no manuseamento das ditas, até que o Piu disse:
- Dêem cá o material e deixem-me trabalhar sozinho!
Entrou para a casota do gerador, em Cameconde, e o pessoal ficou cá fora, nervoso, sem saber o que a intervenção do Piu iria provocar!
Cerca de meia hora depois, abre-se a porta e ele aparece, com ar triunfante, as minas desmontadas e apenas um ferimento na palma da mão, tipo picada para análise, provocado pelo percutor!
A polivalência do Vicente não ficava por aqui!
Ele era um óptimo caçador… daí a alcunha!
Quando a comida era escassa, lá ia o Piu à caça! A maioria das vezes sozinho, não queria ninguém a espantar os animais!
Passadas umas horas era vê-lo chegar, sempre com um número considerável de rolas à cintura… e o jantar estava salvo! Já não era dia de macaco ou de arroz com atum!
Outra das facetas do Vicente, era a sua sensibilidade para a música!
Os improvisos de bateria eram comuns!
Horas passadas de auscultadores, indiferente a tudo e a todos, mesmo às flagelações diurnas a Cameconde com RPG7, observando tranquilamente do varandim da messe, o fumo dos rebentamentos e comentando:
- Os gajos continuam a ter as mesmas referências de tiro! Elas continuam a rebentar longe!
O Vicente, um verdadeiro fenómeno do humor, era natural do Entroncamento! Chegou da tropa e foi conduzir comboios para a linha de Sintra! Um dia alguém lhe disse:
- Oh Piu, andas a matar gajos no túnel do Rossio?
Ao que ele respondeu:
- Não pá! Eu só os ajudo a suicidarem-se!
Infelizmente o Vicente deixou-nos em Novembro passado! Um sacana de um cancro na próstata, não detectado a tempo, pregou-lhe a partida definitiva e levou-o desta para melhor!
- Vicente, lá, onde estiveres, foi um grande gozo recordar-te, nesta minha singela homenagem!
Um abraço do,
Juvenal Candeias
Alf Mil da CCAÇ 3520
Fotos: © Juvenal Candeias (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:
Vd. último poste da série em:
16 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4961: Histórias de Juvenal Candeias (4): Há periquitos no Quitáfine