por Luís Graça
[em dia de finados,
lembrando os nossos entes queridos, mais os amigos e camaradas, todos os que já partiram à nossa frente...]
[em dia de finados,
lembrando os nossos entes queridos, mais os amigos e camaradas, todos os que já partiram à nossa frente...]
O cemitério enche-se de flores,
ostensivamente;
é um jardim de mármore e granito,
com centenas de velas acesas
que à noite se transformam em fogos fátuos
e libertam fortes odores.
Durante toda a tarde as famílias da freguesia
visitam as campas e os jazigos dos seus mortos
e convivem, ruidosamente, umas com as outras,
os vivos com os mortos,
os mortos com os que hão-de morrer.
Mistura-se a tristeza com a alegria,
mas vai-se ao cemitério de dia,
nunca de noite.
É a festa dos mortos,
Não sei, contudo,
qual é o entendimento da Igreja Católica
em relação aos seus membros
que morrem em combate,
sejam quais forem as causas, boas ou más,
por que se tenham batido...
No passado, nas Cruzadas,
ou dilatando a fé e o império,
ao serviço do rei,
mais tarde pela Pátria,
conceito republicano e burguês.
Pode ser-se herói,
e herói da Pátria,
e mesmo assim não se estar na lista dos eleitos,
que são todos os nomeados e lembrados...
Pode ter-se morrido pela Pátria
e mesmo assim esse sacrifício
ter sido perfeitamente inútil...
Ou no mínimo, branqueado,
ignorado,
esquecido,
ocultado
ou até mesmo denegado.
Pode-se ter morrido pela Pátria, Mátria ou Fátria
(que o mesmo é dizer
morrer-se pelo pai, pela mãe, pelo irmão),
em Angola, Guiné ou Moçambique,
e mesmo assim ser-se completamente olvidado
(que é o pior dos abandonos),
nos nossos cemitérios,
no dia da festa dos mortos...
Para onde irão as almas dos combatentes?,
pergunta, ingénuo, o poeta…
Quase sempre, muitas vezes,
em toda a parte,
em todos os tempos,
vão para o limbo,
vão, quando muito,
para o silêncio dos arquivos e das estatísticas,
vão para o purgatório do olvido,
que é esquecimento
mas também letargia, adormecimento.
Como em Paços de Gaiolo,
do antiquíssimo concelho,
já extinto, de Bem Viver,
ou em tantas outras freguesias
do nosso querido Portugal profundo,
que já foi medievo, mouro, visigótico, romano, celta, lusitano...
Como estas duas campas, rasas,
de dois bravos
que deram a vida aos vinte anos,
Último poste da série > 2 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13680: Manuscrito(s) (Luís Graça) (40): Selfies /autorretratos: o meu amigo F..., pintor, e eu... Queria que fôssemos, a salto, até Paris, em 1965...
ostensivamente;
é um jardim de mármore e granito,
com centenas de velas acesas
que à noite se transformam em fogos fátuos
e libertam fortes odores.
Durante toda a tarde as famílias da freguesia
visitam as campas e os jazigos dos seus mortos
e convivem, ruidosamente, umas com as outras,
os vivos com os mortos,
os mortos com os que hão-de morrer.
Mistura-se a tristeza com a alegria,
mas vai-se ao cemitério de dia,
nunca de noite.
É a festa dos mortos,
mas também a celebração da vida,
a afirmação da convivialidade,
a reafirmação do poder da vida sobre a morte,
o reforço dos laços dos vivos,
que são vizinhos uns dos outros,
parentes,
familiares,
amigos,
e que também estão na lista dos candidatos ao além.
Não sabem, porém,
nem quando,
a que dia, hora e minuto,
nem em que lugar,
nem como nem porquê…
E mais:
recusam-se a marcar passagem…
Só o velho barqueiro de Caronte
é que tem a lista dos passageiros
e os horários
e os percursos da última viagem
da terra dos vivos.
Aquela que poucos fazem de bom grado...
É também quiçá a recusa da morte,
da partida definitiva,
do fim da peregrinação terrena,
a reivindicação da imortalidade,
o pecado da usurpação do poder divino,
é, enfim, a manifestação da culpa por se estar vivo
em lugar daqueles de nós,
que nos eram muito queridos,
e se calhar muito melhores do que nós,
e que morreram (ou partiram),
injustamente,
antes de nós,
a afirmação da convivialidade,
a reafirmação do poder da vida sobre a morte,
o reforço dos laços dos vivos,
que são vizinhos uns dos outros,
parentes,
familiares,
amigos,
e que também estão na lista dos candidatos ao além.
Não sabem, porém,
nem quando,
a que dia, hora e minuto,
nem em que lugar,
nem como nem porquê…
E mais:
recusam-se a marcar passagem…
Só o velho barqueiro de Caronte
é que tem a lista dos passageiros
e os horários
e os percursos da última viagem
da terra dos vivos.
Aquela que poucos fazem de bom grado...
É também quiçá a recusa da morte,
da partida definitiva,
do fim da peregrinação terrena,
a reivindicação da imortalidade,
o pecado da usurpação do poder divino,
é, enfim, a manifestação da culpa por se estar vivo
em lugar daqueles de nós,
que nos eram muito queridos,
e se calhar muito melhores do que nós,
e que morreram (ou partiram),
injustamente,
antes de nós,
muito antes de nós,
alguns em tenra idade
sem sequer terem conhecido
os sabores do leite e do mel
da terra que lhes fora prometida ao nascer...
Quem vive mais longe
sem sequer terem conhecido
os sabores do leite e do mel
da terra que lhes fora prometida ao nascer...
Quem vive mais longe
(Porto, Lisboa e até Paris...),
vem de propósito neste dia
enfeitar as campas e os jazigos dos seus mortos,
aqui erigidos neste cemitério.
em terra de antigos rendeiros,
camponeses pobres,
que ainda hoje cultivam a memória do Zé do Telhado,
vem de propósito neste dia
enfeitar as campas e os jazigos dos seus mortos,
aqui erigidos neste cemitério.
em terra de antigos rendeiros,
camponeses pobres,
que ainda hoje cultivam a memória do Zé do Telhado,
herói do banditismo social oitocentista,
e que fazem questão de mostrar,
aos ricos
e aos fidalgos de antigamente,
que a democracia e a liberdade trouxeram também
a igualdade de oportunidades
e a miragem da mobilidade social,
e o sonho do sucesso na vida,
tipificados no brasileiro
e que fazem questão de mostrar,
aos ricos
e aos fidalgos de antigamente,
que a democracia e a liberdade trouxeram também
a igualdade de oportunidades
e a miragem da mobilidade social,
e o sonho do sucesso na vida,
tipificados no brasileiro
e no francês do século passado...
No meio do pequeno cemitério da freguesia,
construído tardiamente,
em finais do século XIX,
há ostensivamente uma capela,
a da família da casa
que, foi desde os tempos do liberalismo,
a verdadeira dona e senhora desta terra
e dos seus habitantes,
dona dos seus corpos
e até das suas almas...
No cimo da porta da capela,
em estilo neogótico revivalista,
pode ler-se a frase niilista,
em poético latim:
Memento, homo, quia pulvis es
et in pulverem reverteris.
Como os antigos pobres rendeiros não sabiam ler,
e muito menos o latim
dos frades absolutistas e dos juristas liberais,
alguém terá escrito a giz, branco,
No meio do pequeno cemitério da freguesia,
construído tardiamente,
em finais do século XIX,
há ostensivamente uma capela,
a da família da casa
que, foi desde os tempos do liberalismo,
a verdadeira dona e senhora desta terra
e dos seus habitantes,
dona dos seus corpos
e até das suas almas...
No cimo da porta da capela,
em estilo neogótico revivalista,
pode ler-se a frase niilista,
em poético latim:
Memento, homo, quia pulvis es
et in pulverem reverteris.
Como os antigos pobres rendeiros não sabiam ler,
e muito menos o latim
dos frades absolutistas e dos juristas liberais,
alguém terá escrito a giz, branco,
no mármore liso.
a corresponde tradução em português chão:
Lembra-te, carago, que és pó
e em pó te hás-de tornar...
Mesmo na morte, os homens tentam,
pateticamente,
a corresponde tradução em português chão:
Lembra-te, carago, que és pó
e em pó te hás-de tornar...
Mesmo na morte, os homens tentam,
pateticamente,
inutilmente,
bizantinamente,
reproduzir a segregação socioespacial,
a distância, que mantinham entre si, em vida,
conforme a classe em que nasceram
ou a que ascenderam...
É por isso que eu gosto da designação,
filosoficamente irónica,
dada a alguns cemitérios públicos no sul, no Alentejo:
Campo da igualdade...
Metaforicamente falando,
a gadanha da morte ceifa tudo e todos,
ceifa rente a vida,
e não poupa tanto a espiga de trigo
como a erva do campo,
a papoila vermelha e o saramago,
a raposa e a abetarda,
a lebre e o cágado,
a mondadeira e o patrão,
a rosa e o espinho,
o rico e o pobre,
o herói e o cobarde, o general e o soldado,
a bonita e a feia,
o novo e o velho,
o amo e o servo,
o poeta e a sua musa,
o médico e o doente,
o santo e o pecador,
bizantinamente,
reproduzir a segregação socioespacial,
a distância, que mantinham entre si, em vida,
conforme a classe em que nasceram
ou a que ascenderam...
É por isso que eu gosto da designação,
filosoficamente irónica,
dada a alguns cemitérios públicos no sul, no Alentejo:
Campo da igualdade...
Metaforicamente falando,
a gadanha da morte ceifa tudo e todos,
ceifa rente a vida,
e não poupa tanto a espiga de trigo
como a erva do campo,
a papoila vermelha e o saramago,
a raposa e a abetarda,
a lebre e o cágado,
a mondadeira e o patrão,
a rosa e o espinho,
o rico e o pobre,
o herói e o cobarde, o general e o soldado,
a bonita e a feia,
o novo e o velho,
o amo e o servo,
o poeta e a sua musa,
o médico e o doente,
o santo e o pecador,
o amigo e o inimigo...
Passei por lá,
pelos cemitérios
Passei por lá,
pelos cemitérios
de Paredes de Viadores
e Paços de Gaiolo,
a serra de Montemuro em frente,
o vale cavado pelo rio Douro, a meio,
e havia gente à volta das campas,
de todas as campas, menos de duas...
Tirei fotografias
aos grandes,
vistosos
e dispendiosos arranjos florais,
sobre as pedras de mármore ou granito polido,
que devem ter custado os olhos da cara
e Paços de Gaiolo,
a serra de Montemuro em frente,
o vale cavado pelo rio Douro, a meio,
e havia gente à volta das campas,
de todas as campas, menos de duas...
Tirei fotografias
aos grandes,
vistosos
e dispendiosos arranjos florais,
sobre as pedras de mármore ou granito polido,
que devem ter custado os olhos da cara
aos parentes dos mortos...
Fotografei grupos de familiares e amigos
em amena
Fotografei grupos de familiares e amigos
em amena
(e aqui e acolá alegre,
viva, franca, saudável) cavaqueira.
Quem disse que o cemitério não pode ser uma passerelle ?
Percebi que a homenagem aos mortos
é também (e sobretudo ?) um pretexto
para os vivos se reencontrarem
Percebi que a homenagem aos mortos
é também (e sobretudo ?) um pretexto
para os vivos se reencontrarem
e se mostrarem uns aos outros...
e para dizerem, alto e bom som,
que estão vivos,
e de boa saúde,
e que estão prósperos,
bem de vida,
e para dizerem, alto e bom som,
que estão vivos,
e de boa saúde,
e que estão prósperos,
bem de vida,
com os seus Mercedes de matrícula K,
com os exames e análises em dia,
e o certificado de robustez física,
enfim, com o corpo e todas as miudezas
dentro do prazo de validade.
Em suma, estão vivos,
sãos,
e recomendam-se...
Mas que também têm sentimentos,
não importa se pequenos ou grandes.
E que sabem mostrar
que têm decência
e recato e memória e saudade...
E que sabem chorar,
sinceramente, os seus mortos,
os seus entes queridos,
que, mesmo contra toda a evidência,
estarão algures numa galáxia
a zelar por eles,
ínfimas partículas do sistema solar.
Muito simplesmente, são
ou parecem ser gente feliz
com uma lágrima furtiva ao canto do olho.
Em dia de festa dos mortos,
ou melhor, em Dia (feriado) de Todos os Santos
que é também, para o povo,
o Dia de Finados ou dos Fieis Defuntos.
Um dia , ao mesmo tempo, de tristes e doces lembranças.
No sul, da Reconquista,
com os exames e análises em dia,
e o certificado de robustez física,
enfim, com o corpo e todas as miudezas
dentro do prazo de validade.
Em suma, estão vivos,
sãos,
e recomendam-se...
Mas que também têm sentimentos,
não importa se pequenos ou grandes.
E que sabem mostrar
que têm decência
e recato e memória e saudade...
E que sabem chorar,
sinceramente, os seus mortos,
os seus entes queridos,
que, mesmo contra toda a evidência,
estarão algures numa galáxia
a zelar por eles,
ínfimas partículas do sistema solar.
Muito simplesmente, são
ou parecem ser gente feliz
com uma lágrima furtiva ao canto do olho.
Em dia de festa dos mortos,
ou melhor, em Dia (feriado) de Todos os Santos
que é também, para o povo,
o Dia de Finados ou dos Fieis Defuntos.
Um dia , ao mesmo tempo, de tristes e doces lembranças.
No sul, da Reconquista,
de onde eu venho,
e a que eu pertenço,
mix de bárbaro, romano, judeu,
visigótico, mouro, franco, africano,
também há o culto antiquíssimo,
megalítico, pagão,
dos mortos,
e a que eu pertenço,
mix de bárbaro, romano, judeu,
visigótico, mouro, franco, africano,
também há o culto antiquíssimo,
megalítico, pagão,
dos mortos,
de que as antas, os menires e os cromeleques
são um magnífico exemplo arqueológico.
Mas aqui, no norte, o cristianismo
(e a Igreja Católica Apostólica Romana)
soube quiçá enquadrá-lo melhor,
dar-lhe a necessária dimensão
escatológica, cultural, gregária,
simbólica, normalizadora...
Por todo o país, no Portugal profundo
(ou no que resta desse mito),
os mortos são lembrados no seu dia,
e no seu sítio,
convenientemente apartados dos vivos.
All souls' day, diz-se em inglês,
o dia das alminhas
(que ternura de termo!),
diz o nosso povo.
Leio na Enciclopédia Católica
(cuja origem remonta a 1917):
"A fundamentação teológica desta festa
é a doutrina segundo a qual
as almas que, ao partirem do corpo,
não estejam perfeitamente limpas dos pecados veniais,
ou não tenham totalmente expiado
as suas transgressões passadas,
ficam privadas da Visão Celeste.
No entanto, os fiéis sobre a terra podem ajudá-los,
por intermédio de orações, esmolas
e sobretudo do santo sacrifício da Missa".
(e a Igreja Católica Apostólica Romana)
soube quiçá enquadrá-lo melhor,
dar-lhe a necessária dimensão
escatológica, cultural, gregária,
simbólica, normalizadora...
Por todo o país, no Portugal profundo
(ou no que resta desse mito),
os mortos são lembrados no seu dia,
e no seu sítio,
convenientemente apartados dos vivos.
All souls' day, diz-se em inglês,
o dia das alminhas
(que ternura de termo!),
diz o nosso povo.
Leio na Enciclopédia Católica
(cuja origem remonta a 1917):
"A fundamentação teológica desta festa
é a doutrina segundo a qual
as almas que, ao partirem do corpo,
não estejam perfeitamente limpas dos pecados veniais,
ou não tenham totalmente expiado
as suas transgressões passadas,
ficam privadas da Visão Celeste.
No entanto, os fiéis sobre a terra podem ajudá-los,
por intermédio de orações, esmolas
e sobretudo do santo sacrifício da Missa".
Não sei, contudo,
qual é o entendimento da Igreja Católica
em relação aos seus membros
que morrem em combate,
sejam quais forem as causas, boas ou más,
por que se tenham batido...
No passado, nas Cruzadas,
ou dilatando a fé e o império,
ao serviço do rei,
mais tarde pela Pátria,
conceito republicano e burguês.
Pode ser-se herói,
e herói da Pátria,
e mesmo assim não se estar na lista dos eleitos,
que são todos os nomeados e lembrados...
Pode ter-se morrido pela Pátria
e mesmo assim esse sacrifício
ter sido perfeitamente inútil...
Ou no mínimo, branqueado,
ignorado,
esquecido,
ocultado
ou até mesmo denegado.
Pode-se ter morrido pela Pátria, Mátria ou Fátria
(que o mesmo é dizer
morrer-se pelo pai, pela mãe, pelo irmão),
em Angola, Guiné ou Moçambique,
e mesmo assim ser-se completamente olvidado
(que é o pior dos abandonos),
nos nossos cemitérios,
no dia da festa dos mortos...
Para onde irão as almas dos combatentes?,
pergunta, ingénuo, o poeta…
Quase sempre, muitas vezes,
em toda a parte,
em todos os tempos,
vão para o limbo,
vão, quando muito,
para o silêncio dos arquivos e das estatísticas,
vão para o purgatório do olvido,
que é esquecimento
mas também letargia, adormecimento.
Como em Paços de Gaiolo,
do antiquíssimo concelho,
já extinto, de Bem Viver,
ou em tantas outras freguesias
do nosso querido Portugal profundo,
que já foi medievo, mouro, visigótico, romano, celta, lusitano...
Como estas duas campas, rasas,
de dois bravos
que deram a vida aos vinte anos,
no ultramar português,
Joaquim Araújo,
Francisco Soares…
Deram a vida por alguém,
por alguma coisa,
a que eles e os seus, carinhosamente,
chamavam Pátria,
Morto pela Pátria…
Eterna saudade de mãe e irmãos…
De facto, a guerra do ultramar nunca existiu.
Os mortos do ultramar nunca existiram.
Há uma amnésia geral
em relação aos nossos mortos do ultramar,
uma espécie de má consciência,
de denegação,
de branqueamento,
de alívio...
Mesmo que hoje comecem a aparecer,
nas nossas cidades, vilas e vilórias,
monumentos ao combatente,
como antigamente proliferaram
os monumentos ao soldado desconhecido
da I Grande Guerra.
Pode-se monumentalizar os mortos,
e esquecer os vivos.
Pode-se exorcizar os fantasmas,
mas não desformatar o disco rígido
de toda uma geração.
Por que o fim da guerra colonial
(ou do ultramar, como quiserem),
foi literalmente o fim de um pesadelo...
Para os jovens da minha geração,
Joaquim Araújo,
Francisco Soares…
Deram a vida por alguém,
por alguma coisa,
a que eles e os seus, carinhosamente,
chamavam Pátria,
Morto pela Pátria…
Eterna saudade de mãe e irmãos…
De facto, a guerra do ultramar nunca existiu.
Os mortos do ultramar nunca existiram.
Há uma amnésia geral
em relação aos nossos mortos do ultramar,
uma espécie de má consciência,
de denegação,
de branqueamento,
de alívio...
Mesmo que hoje comecem a aparecer,
nas nossas cidades, vilas e vilórias,
monumentos ao combatente,
como antigamente proliferaram
os monumentos ao soldado desconhecido
da I Grande Guerra.
Pode-se monumentalizar os mortos,
e esquecer os vivos.
Pode-se exorcizar os fantasmas,
mas não desformatar o disco rígido
de toda uma geração.
Por que o fim da guerra colonial
(ou do ultramar, como quiserem),
foi literalmente o fim de um pesadelo...
Para os jovens da minha geração,
um milhão e trezentos mil que por lá passaram,
fora os duzentos mil
que não se apresentaram às sortes...
que não se apresentaram às sortes...
E é bom que os jovens de hoje,
os nossos filhos e netos,
saibam isso,
que havia então o serviço militar obrigatório
e que era altíssima a probabilidade de se ser mobilizado
para uma das três frentes de guerra,
ou teatros de operações,
que Portugal mantinha em África...
Hoje há ainda algum pudor em falar dessa guerra,
de baixa intensidade,
mas que consumia vidas e cabedais.
que havia então o serviço militar obrigatório
e que era altíssima a probabilidade de se ser mobilizado
para uma das três frentes de guerra,
ou teatros de operações,
que Portugal mantinha em África...
Hoje há ainda algum pudor em falar dessa guerra,
de baixa intensidade,
mas que consumia vidas e cabedais.
mesmo que o suicídio,
os acidentes rodoviários,
os acidentes de lazer,
e os acidentes de trabalho,
matassem muito mais
que todas as três guerras juntas...
que todas as três guerras juntas...
Só o suicídio mata mais, por ano,
em todo o mundo,
em todo o mundo,
que todas as guerras juntas,
locais, regionais e interbacionais..
Pudor,
lassidão,
locais, regionais e interbacionais..
Pudor,
lassidão,
talvez vergonha,
quiçá culpa...
Da guerra e dos seus mortos,
de ambos lados,
dos trasladados e dos insepultos,
dos seus desaparecidos,
dos seus estropiados,
dos seus mortos-vivos,
dos seus vivos-mortos,
dos que não vieram nem em caixão de chumbo,
dos que vagueiam, ainda hoje, como fantasmas
pelas margens dos Rios da Guiné,
Da guerra e dos seus mortos,
de ambos lados,
dos trasladados e dos insepultos,
dos seus desaparecidos,
dos seus estropiados,
dos seus mortos-vivos,
dos seus vivos-mortos,
dos que não vieram nem em caixão de chumbo,
dos que vagueiam, ainda hoje, como fantasmas
pelas margens dos Rios da Guiné,
Geba, Corubal, Mansoa,
Cacheu, Buba, Cumbijã, Cacine...
Ou dos rios de Angola e de Moçambique
cujos nomes os poetas, os bandeirantes e os geógrafos
já esqueceram...
Se calhar a amnésia é recíproca:
de nós, felizardos, safados,
Cacheu, Buba, Cumbijã, Cacine...
Ou dos rios de Angola e de Moçambique
cujos nomes os poetas, os bandeirantes e os geógrafos
já esqueceram...
Se calhar a amnésia é recíproca:
de nós, felizardos, safados,
que estamos vivos
(mesmo que mais velhos, mais tristes e mais pobres),
em relação a eles
que tiveram o supremo azar de morrer
(em combate, ou de acidente, doença,
ou até de homicídio e suicídio);
e, se calhar, deles em relação a nós,
já que não mais nos visitam,
escrevem,
assombram,
incomodam,
interpelam,
imploram,
gritam,
em relação a eles
que tiveram o supremo azar de morrer
(em combate, ou de acidente, doença,
ou até de homicídio e suicídio);
e, se calhar, deles em relação a nós,
já que não mais nos visitam,
escrevem,
assombram,
incomodam,
interpelam,
imploram,
gritam,
atormentam
ou questionam...
No dia dos Fiéis Defuntos,
na festa dos mortos,
os que morreram de morte natural,
ou de morte matada
no campo de batalha,
nas picadas
e nos aquartelamentos,
na África remota,
distante,
dos séculos passados,
na antiga vila e freguesia da germânica Fandinhães
(substituída do tempo do Marquês de Pombal
por Paços de Gaiolo),
não têm, no cemitério local,
uma menção especial,
um pequeno talhão,
uma atenção especial,
um arranjo floral,
umas simples flores de plástico,
ou questionam...
No dia dos Fiéis Defuntos,
na festa dos mortos,
os que morreram de morte natural,
ou de morte matada
no campo de batalha,
nas picadas
e nos aquartelamentos,
na África remota,
distante,
dos séculos passados,
na antiga vila e freguesia da germânica Fandinhães
(substituída do tempo do Marquês de Pombal
por Paços de Gaiolo),
não têm, no cemitério local,
uma menção especial,
um pequeno talhão,
uma atenção especial,
um arranjo floral,
umas simples flores de plástico,
ou até uma singela frase
escrita a pau de giz, branco,
na pedra oxidada e suja da sua campa...
Mas será que deveriam tê-lo ?
Hoje são apenas pó,
na terra dos homens,
e sobretudo, o que é mais triste,
na memória dos vivos...
Candoz, 1/11/2008
Hoje são apenas pó,
na terra dos homens,
e sobretudo, o que é mais triste,
na memória dos vivos...
Candoz, 1/11/2008
Versão 10, revista em 1/11/2014
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Nota do editor:
Último poste da série > 2 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13680: Manuscrito(s) (Luís Graça) (40): Selfies /autorretratos: o meu amigo F..., pintor, e eu... Queria que fôssemos, a salto, até Paris, em 1965...