
Amigo, camarada.
Partiste.
Caro amigo, fui surpreendido pelo teu desaparecimento do nosso convívio, e é com tristeza imensa e com os olhos marejados de lágrimas que procuro escrever alguma coisa. Quem te conheceu, sabia o homem bom que havia em ti e não é fácil aceitar esta perda. De sorriso fácil, de uma delicadeza rara nos meios militares, fazias amigos em todos os camaradas, que contigo privaram. O teu espírito solidário, a tua piada sempre a propósito, com um ligeiro sotaque abrasileirado, era motivo de boa disposição para os que te acompanhavam.
Dizia-me um amigo comum: "Em 149 camaradas da Companhia tinhas 149 amigos".
Recordo os momentos que partilhei contigo. Uns bons, outros nem tanto, sempre a teu lado, tanto na recruta como na especialidade, no Curso de Cadetes para Oficiais Milicianos. Fomos cúmplices em determinadas situações mais complicadas, durante os seis meses de Mafra. A tua incorporação no serviço militar só acontece por decidires visitar a tua família, após muitos anos de ausência no Brasil, e quando não era previsível a tua chamada.
Perdi-te o rasto durante um mês e foi com grande alegria que voltei a encontrar-te em Lamego, para frequência de um Estágio de Operações Especiais. Eras a alma do grupo, admirado e bem querido por todos. Apesar da dureza da instrução tivemos belos momentos, apenas ofuscados pelo fulminante falecimento de um camarada a quem prestámos rápida assistência, mas infrutífera.
Seguimos para a Guiné em Companhias diferentes, mas colocados em aquartelamentos próximos, onde a vida não era fácil. A guerra, muito agressiva, deixou-te marcas cujas sequelas transportaste contigo o resto da vida e te influenciou negativamente.
Só nos reencontrámos passados muitos anos, quando consegui localizar-te numa aldeia do concelho de Marco de Canaveses, já nas imediações do rio Douro. O nosso reencontro foi efusivo e emocionante e os contactos mensais prolongaram-se durante 4 anos. Recordámos algumas peripécias e revisitámos amigos, mas apercebi-me, de imediato, que algo de errado se passava contigo. Vivias aterrorizado com tudo o que te rodeava e desconfiado de todos. Os problemas monetários não me pareciam prementes, procuravas amealhar, numa perspectiva de resolução de qualquer imprevisto. A ajuda médica era indispensável, mas a tua recusa era peremptória, apesar da insistência da tua mulher. Até os cuidados de saúde mais elementares desprezaste.
Neste primeiro encontro regressei a Aveiro com o coração destroçado e não consegui impedir que as lágrimas me rolassem pela face, no trajecto do Marco ao Porto. As condições de habitabilidade eram impensáveis, apesar da casinha, pequena e humilde, ser habitável. Não queria acreditar! A desordem só era explicada pela tua descompensação emocional e anímica.
Ao fim de quatro ano anos entendeste que o nosso relacionamento necessitava de tréguas. Os contactos telefónicos passaram a efectuar-se esporadicamente, sem perder a ligação. Sei, agora, que começavas a apresentar sintomas graves de saúde e que pretendias esconder.
Partiste sem ter oportunidade de me despedir de ti, tal como muitos dos teus amigos.
Trouxeste do Brasil um termo muito carinhoso com que rotulavas os teus amigos: "BAIXINHO"
Repousa em PAZ, Baixinho.
Manuel Reis
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Nota do editor
Último poste da série de 26 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16421: In Memoriam (262): Mário Campos Marinho, ex-sold trms, CART 3494 (Xime e Mansambo, 1971/74). O funeral é hoje na Senhora da Hora, Matosinhos, às 14h30 (Sousa de Castro, o grã-tabanqueiro nº 2)