Edifício de habitação na esquina da Rua Teófilo Braga com a Rua de Cascais
Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Abril de 2018:
Queridos amigos,
Durante anos, a historiografia oficial, a portuguesa e a do PAIGC, dava como ponto de arrancada da luta armada a flagelação a Tite, em 23 de janeiro de 1963, era apresentado como ato primigénio, não tinha passado. Há anos que se sabe que não foi exatamente assim, houvera assaltos e atos vandálicos praticados pelo Movimento de Libertação da Guiné, a partir do Senegal, ainda continuados em 1963, mas no segundo semestre de 1962 fora profundamente alterada a ordem na região Sul, isto a despeito do gerente do BNU de Bissau que falara numa quase perfeita normalidade. Se assim fosse, se a luta armada tivesse caído quase de paraquedas, ele não iria descrever o precioso legado de informações, em grande continuidade, logo a partir de fevereiro, não é difícil concluir que o Sul rapidamente foi avassalado por um caos militar, económico, social e político.
Um abraço do
Mário
Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (64)
Beja Santos
A subversão está em marcha, manifesta-se ao longo do segundo semestre de 1962. Logo em 26 de junho, o gerente do BNU em Bissau informa Lisboa:
“ É nosso dever levar ao conhecimento de V. Ex.ª que por volta das três da madrugada de ontem, pequenos grupos de indivíduos, que se supõe pertencerem ao PAIGC, atacaram a tiros de pistola em Catió a Administração do Concelho, a Central Eléctrica, o posto da PIDE e os CTT, cortando os fios telefónicos e atravessando árvores na estrada.
Incendiaram também a jangada e três pequenos barcos que fazem a ligação de Bedanda para Catió.
Entre Buba, Empada e Fulacunda, foram cortadas as comunicações telefónicas e destruídos alguns pontões feitos de paus de cibe.
O ataque foi prontamente repelido, tendo-se deslocado para o local alguns efectivos militares, como medida de segurança.
Não foram feitas capturas, sendo desconhecido o número dos assaltantes. Não houve feridos. O assalto, pela sua curta duração e reduzido número de tiros disparados, é interpretado como o início de uma campanha de pânico a estabelecer pelo PAIGC.
Devemos, contudo, dizer a V. Ex.ª que o ataque não teve qualquer reflexo sobre a população”.
Nova mensagem em 18 de dezembro:
“Segundo nos foi hoje revelado, vindo de fonte fidedigna, foi obtida a informação que na noite de 11 de Dezembro, vindos da vizinha República da Guiné, entraram no nosso território pelo local denominado Gam Dembel, na área de Fulacunda, munidos de espingardas e pistolas-metralhadoras, infiltrando-se nas matas de Forreá e Cantanhez, que cobrem uma extensa área na parte sul da Província.
No dia imediato, essa informação foi confirmada, desconhecendo-se, contudo, o número dos componentes desses bandos.
Apenas se sabe que as tropas fixadas na parte sul da Província já pegaram no rasto, e estão seguindo esses grupos para uma operação de limpeza. É a primeira vez que bandos de terroristas se apresentam armados de espingardas e metralhadoras. A entrada fez-se por um sítio isolado, distante 12 km da fronteira, e as condições atmosféricas locais não têm permitido que a aviação, em sucessivos voos de reconhecimento, consiga determinar o local onde se acobertaram.
A informação está rodeada do maior sigilo, pois receia-se que o pânico substitua o optimismo e confiança que predominam, nesta época de início da campanha da mancarra.
A divulgação da notícia traria o risco de uma paralisação de negócios no interior da Província”.
O gerente de Bissau volta a dar notícias em 21 de janeiro de 1963:
“Em aditamento à nossa carta-extra de 18 de Dezembro passado, cumpre-nos levar ao conhecimento de V. Exas. que foram nulas as pesquisas realizadas pela tropa para a descoberta dos grupos de terroristas entrados no território na noite de 11 de Dezembro.
Duas hipóteses se formulam quanto ao desaparecimento dos referidos grupos:
- Uma rápida infiltração, facilmente proporcionada pela extensa e pantanosa área em que teve lugar, coberta pela densa vegetação que forma as matas de Cantanhez e Foreá, ou - O regresso ao vizinho território da República da Guiné em grupos dispersos que não foram referenciados.
O certo é que se sumiram todos os vestígios da sua passagem pelo local da infiltração, o que levou a tropa a abandonar o prosseguimento das buscas, depois de porfiadas diligências.
Os acontecimentos que tiveram lugar no decorrer desta semana, que nos foram hoje revelados pelo inspector da PIDE, fazem-nos admitir relativo êxito da infiltração, pois notou-se certa actividade da parte dos elementos perturbadores da ordem.
Assim, no norte da Província, a ponte de Campada, a 16 km de S. Domingos, foi parcialmente danificada; registou-se o ataque a uma serração situada a 8 km da mesma povoação, levado a efeito por um grupo constituído por cerca de 20 indivíduos munidos de pistolas, que se refugiaram no Senegal logo se aperceberam da aproximação da tropa; em Ganjandim, também próximo de S. Domingos, foi atacado um jipe militar com tiros de zagalote disparados por uma arma caçadeira; e a estrada que liga S. Domingos a Susana, a 8 km da primeira, foi cortada pela abertura de uma vala.
Não se registaram feridos.
Quanto à parte sul da Província, na vasta área de Fulacunda, foram referenciados 50 indivíduos armados de pistolas-metralhadoras, sobre os quais a tropa prontamente agiu.
Na mesma área, efectuou-se uma surtida a determinada tabanca já referenciada pelas autoridades, tendo sido abatido um indivíduo, ferido vários e capturados outros.
Foram apanhadas granadas de mão de fabrico italiano, alguns pacotes de explosivos de origem russa e americana, e ainda pequenos pacotes contendo explosivos de matéria plástica. A captura revelou que já dispõem de algumas dezenas de pistolas-metralhadoras, além de outro material.
Todos estes acontecimentos não têm perturbado as actividades, que continuam a processar-se normalmente”.
Mas dois dias depois dava-se a notícia do primeiro ataque a um quartel:
“Em complemento à nossa carta-extra de 21 do corrente, cumpre-nos informar V. Exas. que, segundo nos acaba de ser revelado, à 1,45 horas de hoje, um grupo de terroristas munidos de pistolas-metralhadoras, atacaram o Quartel de Tite, sede do Batalhão que faz a cobertura da área de Fulacunda.
Uma bomba de regular potência foi lançada, causando a morte de um soldado, e ferindo outros sem gravidade. A tropa prontamente respondeu ao ataque, fazendo numerosas baixas entre os terroristas.
O audacioso ataque à própria sede do Batalhão, confirma ter sido bem-sucedida a infiltração levada a cabo na noite de 11 de Novembro.”
Em 30 de janeiro, o gerente de Bissau complementa a notícia da flagelação a Tite com mais informações:
“O ataque perpetrado visou o paiol das munições e, não tendo sido bem-sucedido na primeira tentativa, de novo foi atacado às 4 horas do mesmo dia, decorridas portanto, cerca de 2 horas da primeira investida.
As numerosas baixas sofridas pelos terroristas, levou-os à desistência de renovarem os ataques ao aquartelamento de Tite.
No dia imediato, uma viatura militar que seguia escoltada por um jipão, do Enxudé para Fulacunda, foi alvejada por tiros de zagalote, sendo atingido um pneu da viatura, despistando-a.
Nenhum dos ocupantes do jipe estava armado, tornando-se fácil aos terroristas alvejá-los à vontade, pondo-se em fuga logo que se aproximou o jipão que servia de escolta que, em marcha mais moderada, vinha ainda bastante distanciado.
Do ataque, resultou a morte de um soldado e ferimentos em mais dois.
No dia 26, uma patrulha do exército, do sector de Buba, numa acção de repressão, caiu numa emboscada, morrendo um sargento, um cabo, dois soldados e dois guias indígenas, e sendo feridos um alferes e dois soldados.
Foram muitas as baixas sofridas pelos atacantes.
No dia 28, pelas 20 horas, fomos procurados pelo gerente da Sociedade Comercial Ultramarina que nos comunicou ter recebido a informação de ter sido assaltada a propriedade do Banco denominada ‘Brandão’, arrendada aquela Sociedade.
Do assalto não eram conhecidos pormenores.
No dia imediato fomos informados pelo oficial que chefia os Serviços Secretos do Exército, que o assalto incidira apenas sobre algumas moranças de indígenas Fulas, suspeitos de colaborarem connosco, sendo poupadas as tabancas dos indígenas da raça Beafada, que sempre foram hostis à nossa colonização.
Quanto ao edifício onde está instalado o estabelecimento da Sociedade, segundo as informações que possuía, nada lhe tinha sucedido.
Como o estabelecimento estava encerrado por ausência do respectivo encarregado que se deslocara a Bolama, não se sabe, por enquanto, se foi roubado.
Segundo nos declarou o gerente da Sociedade, no estabelecimento existia dinheiro, mercadorias e produtos da actual colheita, tudo no valor de cerca de 240 contos.
A notícia divulgada pela Emissora Nacional na sua emissão de hoje não corresponde à verdade, quando diz ter sido incendiado o edifício.
Sabemos que o Comando Militar chamou a atenção de alguns correspondentes de jornais, pela forma precipitada como as notícias são prestadas, fazendo supor o pior.
Achamos conveniente incluir nesta carta a tragédia ontem ocorrida com o navio da Sociedade, ‘Coruche’.
Fazemo-lo no sentido de esclarecer V. Exas. que o sinistro não tem qualquer correlação com os acontecimentos insurrecionais vindos a registar-se.
Atracou ontem, cerca das 17 horas, ao cais de Bissau, com um carregamento de combustível destinado à Aviação Militar o navio motor ‘Coruche’.
Quando se procedia à descarga de bidons, soltou-se um de uma lingada, provocando pela fricção uma chama que originou a inflamação do carburante que transportava.
O incidente ocorreu precisamente pelas 18,45 horas, tendo comparecido, além do pessoal da Casa Gouveia, agentes da Sociedade Geral, material da cooperação dos bombeiros locais. O fogo foi dado por extinto pelas 19 horas para, decorrido pouco tempo, voltar a deflagrar com toda a intensidade. Seriam 21 horas quando o Senhor Governador, segundo nos informaram, ter mandado retirar o barco da ponte de cais, pelo perigo de uma explosão. O navio anda à deriva, subindo e descendo o rio, consoante o sentido das correntes e das marés. Admite-se que os prejuízos sejam totais. Sentimos a necessidade de incluir o incidente neste relato, receando que ao mesmo fosse atribuído um sentido diferente.
Com excepção do ataque à serração de S. Domingos, relatado a V. Ex.ª em 21 do corrente, e em que não houve prejuízos a registar, os incidentes têm visado sempre objectivos militares.
O extraordinário de todos os acontecimentos, que não queremos deixar de evidenciar, é continuar a processar-se, com toda a normalidade, a vida económica da Província”.
Mas o tom otimista desta carta será contrariado pelo que irá escrever em 13 de fevereiro seguinte:
“Toda a parte sul da Província, se encontra infestada de grupos armados de terroristas, que à luz do dia circulam com a maior das liberdades, sem depararem com a oposição.”
E vai relatar que começaram os ataques às infraestruturas económicas, o Sul entrou inexoravelmente num profundo desequilíbrio.
Imagem retirada do livro 'Portugal no Ultramar', 1954, Edições Sotramel - Sociedade de Comércio e Propaganda, Lda com o apoio na cedência de fotos da Agência Geral do Ultramar.
Subúrbios da cidade de Bissau, anos 20
Mapa pertencente ao acervo do Arquivo Histórico do BNU, a quem se agradece a reprodução.
(Continua)
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Notas do editor
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Último poste da série de 13 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19285: Notas de leitura (1130): "Sótão, Rés-do-Chão e Outras Vidas", por Alberto Branquinho; Edições Partenon, 2018 (Carlos Vinhal)