Foto (e legenda): © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
2. Em janeiro passado, recebi pelo correio, na minha casa da Lourinhã, esta bela prenda, o livro de um amigo e camarada que sempre muito estimei deste os tempos comuns em Bambadinca, na Guiné (entre maio de 1970 e março de 1971).
Confesso que só agora, em finais de abril passado, é que peguei no livro... Primeiro, e como sempre faço, uma leitura na vertical, um leitura mais pausada de um capítulo ou outro, que me chamou em particular a atenção, e depois devorei-o em dois ou três dias, ora à beira mar ora na cama à noite. E, claro, faço questão de lhe dedicar uma ou mais notas de leitura. Não hoje, mas quando regressar, daqui a duas semanas, do Hospital Ortopédico de Santana, na Parede, com um "joelho novo"...O livro é, "grosso modo", um livro de memórias sobre a vila de Riba d'Ave, sua terra natal, a(s) sua(s) histórias, a(s) sua(s) gente(s)... Entre o pícaro, o sarcástico, o lírico, o empático , o socioantropológico e o historiográfico, o autor percorre as geossociografias emocionais do seu passado e do passado dos seus antepassados, cingindo-se ao pequeno grande mundo que circula(va) entre a venda, o largo, o adro, a frábrica, mas também a infância, as crianças... e o futuro. Que a história não é feita só dos grandes nomes, e muito menos das grandes famílias que em três gerações dão cabo da fama, do património e do proveito.
Obrigado, Bilocas, os ibéricos Padre António Vieira, Camilo Castelo Branco, José Saramago e Manuel Vasquez Montalbán, no Olimpo dos Escritores, não se importarão de te lá ver um dia, em bicos de pés, não a pedir um autógrafo, mas a tentar falar com eles como par das letras, de igual para igual. Nunca é tarde para começar a escrever, e de ti se pode dizer que a tua vocação literária “tardia” (revelada em 2013 com as crónicas dos "Caminhos de Santiago") surge agora “amadurecida e consolidada" com esta "Margem Esquerda", de 2020).
Cmo me escreveste, em nota que reproduzo abaixo, "o título não engana e é malandro: o designer entendeu-lhe o espírito de rebeldia e atravessou-lhe Esquerdo por riba de Margem, como barco em desgoverno e arrastafo na enxurrada"...
Como tu, também eu prezo a gratidão. Estou-te grato pelo prazer que me deste ao ler o teu livro, E este seguramente não vai parar à lareira ou à Feira da Ladra... LG (**)
3. Excertos de “Margem Esquerda”, escolhidos pelo autor e a qui reproduzidos como "prendida" para os leitores do nosso blogue;
Pág.s 90 e 91
- … A aldeia, o velho músico
filosofava, o bigode revirado acentuava-lhe o ar de troça, tem seu mérito e
seus heróis, mas não se endeusa nem os incensa, parece não se dar ao respeito,
ri-se de si e dos seus, galhofa, não se leva a sério, melhor forma não há de se
ter em boa conta; há outros , porém, importantes, de tão direitos e hirtos nem
sombra deitam.
- Mas pior que eles, o velho
operário põe sal na estória, ao tempo que fala solta pelas asas do nariz o
fumo do cigarro, são os acólitos, sacristães de missas de que só escorropicham
as galhetas, capatazes de um povo que mesmo se obedece não se submete –
nervoso, sanguíneo, engasga-se, tosse.
- Uns faroleiros, é o que são todos, vaidade vácua…, conclui.
As estórias contadas na venda, no recato de quem se sente em terreno seu,
rasgam a nu a pequenez de quem se julga grande.
Além da família, há na aldeia
um grupo de ricos, proprietários,
donos de quintas ou do que delas resta, mestres, encarregados, empregados ditos
superiores. Caçadores e pescadores, batem os montes à cata de rolas e
codornizes, os sabujos pilham lebres e coelhos, saem com os patrões a rios truteiros, ao Minho a
fisgar salmão, as arcas, a abarrotar, ofereciam jantares opíparos, ceias
babilónicas, consílio porém reservado a poucos, restrito a quem tenha algo de
seu, herdado ou granjeado…
Destes, alguns, de baixo vieram; cuidando de esconder a origem, renegam
pais e avós, calcam as raízes e o povo donde provêm, no afã de o esquecerem,
sem temperança castigam nos operários tanto o descuido como a intenção, pensam
a memória dos outros tão frouxa como a sua, julgam que a mando rijo melhor se
obedece, olvidam que rei severo não é rei obedecido, este povo respeita os que
se elevam da sua condição pelo senso e não pelo bordão, sempre se ouviu por
aqui que manda mais a coroa que o ceptro.
A aldeia ri-se deles, inveja-os às vezes, pela fome que carrega na
barriga e na alma, mas não se rebaixa nem os acolhe, tolera-os como mosca
varejeira que o gado enxota com o rabo “.
- Pág. 223
… “ Cedo chegou à aldeia o cinema, na mesma garagem onde descansava a
camioneta víamos nós as fitas que ela
trazia, cada um aninhado no banco que sobraçávamos de casa.
Ajeitou-se depois lugar próprio, inda hoje lá está a casa, o Teatro de
Santa Clara, onde a aldeia via cinema, - um dos que lá vi, os olhos arregalados
até às orelhas, não mais o esqueço, foi o “ Fred na Montanha da Morte “ – e se
levavam à cena os velhos, populares dramas da época.
Ao primeiro filme, agarrei a doença para a vida, verdade que nunca lhe
busquei cura, ainda hoje lembro os filmes com que estrearam o cinema novo,
junto à ponte, o Barão Aventureiro e Aloma, com Dorothy Lamour.
Eu próprio, já maduro, durante tempos, presidi à selecção dos filmes que
à aldeia chegavam, as grandes epopeias, filmes históricos, o cinema italiano e
francês.
O povo afeiçoou-se às fitas,
acorria gente das freguesias vizinhas a ver os astros do cinema.
O Cardeal, quando recebia a
féria, pagava bilhete de balcão, lá de cima, dizia, haveria de ver inteira a
obra de Deus, a nudez capitosa de Gina Lollobrigida imersa em espuma no banho.
Outro, o Tamanca, turrão, domingos a fio no cinema, esperava,
teimosamente esperava que o comboio que justo passava no instante em que Sophia
Loren desnuda a Cary Grant o túrgido seio, esse comboio teimosamente pontual
atrasasse os segundos precisos e lhe deixasse ver a esplêndida altivez daquilo
que, na sua Balbina, era já decadência…”
Excertos de "Margem Esquerda", de Abílio Machado, edição de autor, 2020. O livro pode ser adquirido através de pedido expresso ao autor, para já através do endereço de email do nosso blogue.
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Notas do editor:
(*) Vd. postes de:
31 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15060: Notas de leitura (753): "Diário dos Caminhos de Santiago", do nosso camarada Abílio Machado, português e minhoto, com costela galega, ex-alf mil, CCS/BART 2917, Bambadinca, 1970/72... Um livro que nos ajuda a aprender a envelhecer de maneira saudável, ativa e produtiva... (Luís Graça)
(...) Já aqui temos falado do Abílio Machado, nosso camarada e amigo de Bambadinca (CCS / BART 2917, 1970/72). E sobretudo a propósito de música. Ele é um dos fundadores, em finais de 1985, na Maia, de um notável grupo musical, o Toque de Caixa, de que saíram, além de inúmeros espetáculos ao vivo, dois CD, Histórias do Som (1993) e Cruzes, Canhoto (2010).
(...) O seu gsto pela música, as suas excecionais qualidades humanas, o sentido da camaradagem, a afabilidade, o gosto pelo convívio, o "espírito coimbrão", a irrequietude intelectual... eu já os conhecida de Bambadinca: o "Bilocas", como era tratado carinhosamente, esteve connosco em Bambadinca, entre maio de 1970 e março de 1971. Alf mil, CCS / BART 2917, Bambadinca, 1970/72, fizemos lá uma bela amizade: ele, "baladeiro", tocava viola, mas era um "periquito", um alferes de secretaria, e nós, operacionais, já calejados da guerra, "pretos de 1ª classe", da CCAÇ 12, uma companhia de intervenção africana, ao serviço dos senhores da guerra de Bambadinca e de Bafatá...