quinta-feira, 6 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24202: Manuscrito(s) (Luís Graça) (221): Boas e santas Páscoas, nós por cá... todos bem!

 

Quinta de Candoz > s/d > Visita do compasso pascal...


Joana Graça (2014) - Técnica mista, 30 x 40 cm. S/ título

Cortesia de © Joana Graça (2014). Todos os direitos reservados


A Páscoa em Candoz: 
no tempo em que ainda estávamos todos vivos, 
e felizes, e de boa saúde
 

À Nitas (que era a deusa do lar  
e a oficiante da liturgia de Candoz);

À Joana (que hoje faz anos, e que desde pequenina gostava 
de brincar com a fada Oriana em Candoz);

À Chita (que é a mãe da Joana,  a "alma gémea" da Nitas 
e a minha feiticeira  de Candoz);

Ao Gusto (que há 49 anos, em 6/4/1974, se casava com a sua "Nita"
 e que, por amor, se tornou o senhor "engenheiro" de Candoz, 
agora inconsolado e inconsolável com a perda 
daquela que era "mais de metade" do seu ser)

 

Quinta de Candoz > c. 1999 >Os manos e sócios, da esquerda para a direita: Chita (Alice), Nitas (Ana) (1947-2023), Zé e Rosa


Era  domingo de Páscoa na aldeia. 
Fazia frio mas o sol estava esplêndido. 
Era um daqueles dias 
em que a gente  se reconciliava  com a vida. 
Nem que fosse por uns breves instantes. 
Com a vida, mas não necessariamente 
com o mundo. 
Como o Eça e o seu príncipe Jacinto, 
em Tormes, ali ao lado, 
do outro lado do vale,
à volta de um copo de vinho verde, branco,
 de umas cebolinhas do talho 
com presunto ou salpicão.
(Não havia favas, em Candoz, 
havia as ervilhas de quebrar.)

A manhã, primaveril, trazia-te 
os sons, as cores e os cheiros do campo.
Um outro campo que não o mesmo 
da tua infância da Estremadura. 
Descobriste, tarde, esta parte 
do Portugal sacroprofano
que era mais pagão, celta, visigótico e românico 
do que fenício, romano, judeu, mouro ou gótico.

Um citadino, como tu, não sabia 
o que era isso de ouvir, 
logo pela manhã, 
os galos a cantar nos seus galinheiros. 
Ou ver as cerdeiras (cerejeiras) em flor. 
Ou observar os melros de bico amarelo 
pousados nas videiras 
que desabrochavam, em gamões.


Quinta de Candoz > s/d > O pôr do sol nos montes (aqui chamam montes aos pinhais, onde outroram cresciam carvalhos e castanheiros)


Um citadino como tu 
não tinha o privilégio de ouvir falar dos gaviões 
nem das suas frágeis presas. 
Nem sabia por que autoestradas andavam 
as toupeiras, os ouriços-caixeiros 
e as raposas deste país. 
Nem por que razão falavam alto e bom som 
aquelas gentes de além-Douro. 
Nem o seu gosto desmedido pelo fogo 
que ribombava como o trovão.

Nos campos de erva, de diferentes tonalidades de verde,
eram  visíveis as partes  cortadas para as ovelhas, 
entáo recolhidas nas cortes, 
à medida que os gamões das videiras 
cresciam a olhos vistos.

Na grande matança da Páscoa, 
o inocente que era sacrificado, 
era o cordeiro, o anho
o ex-libris da gastronomia da região. 
Já fumegabvam as chaminés 
enquanto ao longe se ouvia
o estralejar dos foguetes. 
O compasso pascal andava por aí, 
alvoraçado como a canalha
já vinha no Alto, já chegava ao Cruzeiro, 
com a cruz abrindo os tortuosos caminhos e estradões
e exorcizando os medos ancestrais.

In hoc signo vinces
Com este sinal vencerás. 
Desde Constantino, o Imperador, 
que a cruz marcava a vida dos servos da gleba 
e depois os cabaneiros, os rendeiros e os camponeses,  
do nascer ao morrer. 

 Levava dois dias a percorrer a freguesia. 
A cruz, o Cristo pregado na cruz, 
o compasso, 
os homens da opa vermelha 
e o menino da sineta, 
de sobrepeliz branca como o anjo. 
Pouco mais de mil almas 
e algumas escassas centenas de fogos, 
dispersos, a visitar:
"Aleluia, aleluia, Cristo ressuscitou!", 
proclamava o homem da opa vermelha, 
o mordomo da festa sacroprofana,
que fazia as vezes do padre.

Em frente o vale e a montanha. 
A linha do Douro.
O rio Douro ao fundo. 
Pacificado,
onde já não chegava o sável e a lampreia,
nem o barco rabelo com o néctar dos deuses.

Cem anos depois, o Eça não voltaria a escrever 
A cidade e as serras.
Havia ainda um mundo a desmoronar-se. 
E testemunhas vivas desse mundo. 
O mundo dos rendeiros e dos camponeses pobres 
que decidiram trocar o arado
e as juntas de bois
e a rega do milho
pela linha de montagem automóvel 
ou pelos chantiers da construção civil 
nos arredores de Paris
ou pelas as fábricas do Porto.


Quinta de Candoz > s/d > A preparação do anho... Ainda a Maria da Graça (1922-2014) (à esquerda) era viva... Veio do Sul em visita aos do Norte. A meio a Alice (Chita) e, à sua esquerda, a cunhada Maria (Mi).


Já havia a barragem do Carrapatelo, 
e as suas eclusas,
as antenas das telecomunicações 
e os moínhos eólicos no alto das serras. 
E o Mercedes de matrícula K.
E o alcatrão. 
E os telemóveis.
E as casas do granito 
arrancado às pedreiras de Alpendorada.
O progresso cobrava o seu preço,
a globalização também. 
Estradas e estradões tinham esventrado 
o cenário bucólico 
que outrora escondia a miséria dos casebres 
dos cabaneirosos mais pobres dos pobres. 

O Zé do Telhado já há muito que morrera, 
desterrado em Angola, 
mas ainda continuava vivo 
nos telhas vãs da memória
das gentes dos vales do Sousa e Tamega
Os netos dos antigos senhores, os fidalgos
proprietários agrícolas absentistas 
do Porto e da Foz do Douro, 
recuperavam as casas dos caseiros 
e faziam delas a sua casa de campo. 
Com piscina e court de ténis. 

O povoamento continuava disperso 
pelo verde e pelos socalcos. 
Os montes estavam carecas 
depois das últimas décadas de incêndios. 
Já há muito que regressara
o último soldado das colónias 
e se escrevera o último aerograma
a dar conta do fim do Império.
Os brasileiros tinham dado lugar 
aos franceses.
E o Porto ali tão perto. 
Cada vez mais perto 
com as autoestradas, as IP e as IC  do país motorizado.

Um mundo quase perfeito, visto da janela do teu quarto. 
Domingo de Páscoa, de manhã. 
Faltavm-lhe só, porventura, os camponeses, 
que morreram. 
E os que emigraram. 
E os que não voltaram. 
E os soldados que morreram, de morte matada,
nas guerras do passado.
E os que morreram, mal haviam nascido. 
Que as famílias eram numerosas 
mas a mortalidade infantil altíssima. 

Passavas os olhos 
pelas paredes da casa, de grosso granito. 
Já tinham albergado 
sete, oito ou mais gerações, 
que os seus registos só iam até 1820. 
Não era nada, se quando sabias  
que os australopitecos, teus antepassados, 
tinham evoluído há 5 milhões de anos, 
200 mil gerações atrás.


Quinta de Candoz > s/d > O fogo, depois do recolher do compasso pascal


No virar do milénio, 
na madrugada do século XXI, 
Cristo continuaria a ressuscitar 
todos os anos, pela Páscoa, 
no Entre-Douro e Minho da tua aldeia
E os cristãos poderiam ver abalada a sua fé,
mas  continuariam a reunir-se 
em casa uns dos outros 
para comer o agnus Dei com arroz de forno. 
E para celebrar o milagre da vida, 
a vitória da vida sobre a morte.

Há quinhentos anos que se deitavam foguetes 
nas vilas e aldeias do teu Portugal sacroprofano. 
Não sabias nada da história do fogo de artifício, 
sabias apenas que viera da velha China 
com as naus quinhentistas. 
Para celebrar a ressurreição de Cristo, 
ou mais prosaicamente para fazer a festa. 
Que era a vitória sobre o trabalho, 
tripaliu(m) que matava a gente. 
E para marcar o tempo, o fluir do tempo, 
o solstício do inverno e do verão, 
a inexorável usura do tempo.

E todos os anos pela Páscoa, 
tu, descendente de austrapolitecos, 
assistias da tua varanda de granito 
à alegria infantil
 dos camponeses durienses, mortos há muito, 
face à orgia de fogo que assinalava, 
em cada freguesia, 
o recolher do compasso pascal. 

Da tua janela vias o mundo 
ou uma parte dele, mesmo ínfíma:
Paredes de Viadores, Mesquinhata, 
Santa Leocádia, Grilo,
Porto Antigo, Paços de Gaiolo... 
Estes nomes, medievos, passariam a ser-te familiares. 
E as serras à volta do teu presépio: 
Montemuro, Aboboreira 
e, mais ao longe, Gralheira, Meadas, Marão, 
separadas pelo vale do Douro... 
Em 2004, os de Paços 
é que lançaram o fogo mais vistoso:
"Dois mil contos de réis!"!,  
diziam as gentes da terra, 
ainda incapazes de raciocinar em termos de euros, 
dos milhões de euros do novo Brasil da Europa. 
Capricharam, os de Paços de Gaiolo, 
mas também era verdade 
que eles tinhamo dobro dos fogos 
da tua adoptiva freguesia de Paredes de Viadores.


Quinta de Candoz > s/d > Azevinho


Da janela do quarto da aldeia 
que tu também havias feito tua, 
só não podias ver o mar. 
E fazia-te falta o mar, confessavas.
O mar.
A maresia. 
O azul. 
O rugir do grande oceano Atlântico.
E o pôr do sol no mar. 
Na exacta e nítida linha do horizonte. 
E a silhueta do cabo Carvoeiro 
e das Ilhas das Berlengas.

Ah!, quanto falta nos fazia o mar, 
ó Sofia, deusa grega antiga.
Mas a hora não pensar nele, no mar. 
Nem na mediterrânica luz da poesia da Sofia. 
Naqueles domingos de Páscoa de Candoz , 
se te era legítimo ter um pensamento,
de admiração e agradecimento, 
ele ía direitinho para os antepassados 
que desbravaram Candoz 
e ergueram solcalcos e muros de pedra
em antigos montes de carvalho e castanheiro
sem esquecer os teus australopitecos 
que nunca terão chegado a estas terras  
de Candoz e de Fandinhães, 
parte do concelho, extinto em 1836, 
a que os antigos, pobres diabos, 
chamavam Bem Viver.

Da janela do teu quarto, 
com o Porto Antigo ao fundo,
na albufeira do Carrapatelo,
e enquanto aguardavas o compasso pascal, 
gritavas ao mundo dos vivos e dos mortos:
"Boas e Santas Páscoas. Nós por cá..., todos bem!"


Texto e créditos fotográficos: © Luís Graça (2023)

Texto poétixo de Luís Graça, originalmente publicado no Blogue-Fora-Nada > 13 Abril 2004 > Portugal sacroprofano - XIX: Boas e Santas Páscoas. Nós, por cá, todos bem!

Texto profundamente revisto e melhorado nesta data, 6/4/2023 (em que a minha querida Joana faz 45 anos, às dez e trinta da manhã; e a nossa Nitas deixou a Terra da Alegria há duas semanas:  faria hoje precisamente 49 anos de casada com o homem da sua vida, o Gusto, meu "mano", o "engenheiro" da Quinta de Candoz).
___________

Guiné 61/74 - P24201: Parabéns a você (2157): Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Especiais da CART 3492 / BART 3873, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15 (Xitole, Mato Cão e Mansoa, 1971/73)

____________

Nota do editor:

Último poste da série > 4 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24193: Parabéns a você (2156): Agostinho Gaspar, ex-1.º Cabo Mec Auto da 3.ª CCAÇ / BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74)

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24200: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (34): Visita ao "Museu Militar da Luta de Libertação Nacional", na fortaleza da Amura

Foto nº 1 > Guiné-Bissau > Bissau >Fortaleza da Amura > Museu Militar da Luta de Libertação Nacional > "Viatura blindada de fabrico russo que terá sido usado pelo PAIGC em 1974 contra Bedanda e Copá"... o que etsá por confirmar, de fonte independente.


Foto nº 1A > Guiné-Bissau > Bissau >Fortaleza da Amura > Museu Militar da Luta de Libertação Nacional > Viatura blindada (pormenor). Parece-nos ser a uma BRDM-2 (informção sujeita a confirmação).


Foto nº 2 > Guiné-Bissau > Bissau >Fortaleza da Amura > Museu Militar da Luta de Libertação Nacional > Artilharia portuguesa: se não erramos, uma peça 11.4 e um obus 14.


Foto nº 3 > Guiné-Bissau > Bissau >Fortaleza da Amura > Museu Militar da Luta de Libertação Nacional >  Posto emissor que foi usado em Conacri, nas emissões da "Rádio Libertação"


Foto nº 3A > Guiné-Bissau > Bissau >Fortaleza da Amura > Museu Militar da Luta de Libertação Nacional >  Estação emissora >Em 16 de julho de 1967, tiveram início as emissões da "Rádio Libertação", a partir de Conacri... Os nossos soldados chamavam "Maria Turra" à locutora de serviço,  a Amélia Araújo, natural de Angola, casada com o cabo-verdiano José Araújo. (Parece que ainda está viva, a viver em Cabo Verde.)


Foto nº 4 > Guiné-Bissau > Bissau >Fortaleza da Amura > Museu Militar da Luta de Libertação Nacional > O setor das armas pesadas


Foto nº 5 > Guiné-Bissau > Bissau > Fortaleza da Amura > Museu Militar da Luta de Libertação Nacional > A peça do lado direito não pode ser  o famigerado "canhão de 130 mm", de origem russa, fornecido pela Guiné-Conacri ao PAIGC nos ataques a Guileje e a Gadamael... A peça de artilhar 130 mm, M-46, tinha/ tem  um cano ou tubo de mais de 7 metros de comprimento...  Não era armamento do PAIGC,  deve ter sido cedida pelo Sekou Touré, exigia uma equipagem de 8 elementos e disparava do outro lado da fronteira... Angola foi um dos países lusófonos que dispunna desta temível arma, durante a chamada guerra da segunda independência.

Também não vemos aqui o "Grad", o lança-foguete 122 mm, o "jacto do povo", na gíria do PAIGC... Nem o Strela, o míssil terra-ar SA-7, a coqueluche do Manecas dos Santos...


Foto nº 6 > Guiné-Bissau > Bissau >Fortaleza da Amura > Museu Militar da Luta de Libertação Nacional > Uma antiaérea ZPU -1Havia as quádruplas, ZPU-4...


Foto nº 7 > Guiné-Bissau > Bissau >Fortaleza da Amura > Museu Militar da Luta de Libertação Nacional > Uma metralhadora pesada, um canhão sem recuo e um morteiro 82 (de que só se vê o prato)... A metralhadora será umantiaérea Degtyarev de 12.7 mm?


Foto nº 8 > Guiné-Bissau > Bissau >Fortaleza da Amura > Museu Militar da Luta de Libertação Nacional > Canhão s/r (B2 B-10?)


Foto nº 9 > Guiné-Bissau > Bissau >Fortaleza da Amura > Museu Militar da Luta de Libertação Nacional >  O célebre "carocha" do Amílcar Cabral (que esteve muitos anos abandonado na casa de Bafatá, onde o líder histórico do PAIGCnasceu em 1924)


Foto nº 9A > Guiné-Bissau > Bissau >Fortaleza da Amura > Museu Militar da Luta de Libertação Nacional >  O célebre "carocha" do Amílcar Cabral (pormenor)


Foto nº 10 > Guiné-Bissau > Bissau >Fortaleza da Amura > Museu Militar da Luta de Libertação Nacional > Vista exterior da Amura... Ao fundo, o estuário do rio Geba e a ilha de Rei e, à esquerda, o antigo edifício da Alfândega, do tempo colonial.

Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2023). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Mensagem do Patrício Ribeiro (nosso correspondente em Bissau, colaborador permanente da Tabanca Grande para as questões do ambiente, economia e geografia da Guiné-Bissau, onde vive desde 1984, e onde é empresário, fundador e diretor técnico da Impar Lda; tem mais de 130 referências no blogue: autor da série, entre outras, "Bom dia desde Bssau" (*):

Data(s) - 1/04/2023, 11:21 e 2/04/2023, 12:39

Assunto - Bom dia desde Bissau: visita ao museu da Amura,

Vou enviar diversas fotos.

Luis, para vosso conhecimento

1ª Parte

Em visita ao Museu da Amura, a convite da Cooperação Portuguesa para assistir a uma peça de teatro sobre a vida do Amílcar Cabral.

Tivemos a possibilidade de ver o Museu Militar, construído dentro da fortaleza da Amura.

Envio algumas fotos, das armas pesadas, que podemos encontrar no exterior. Para os comentários dos nossos especialistas do Blog.

Na 2ª parte, as tiradas no interior do museu. Existem algumas salas novas, onde nas paredes podemos observar dentro de expositores as armas ligeiras.

O Museu Militar da Luta de Libertação Nacional, inaugurado em 2017, pode ser visitado todos os dias, das 8 até 16 horas, sem marcação.

Diretor do museu, Tenente-coronel Quintino Napoleão dos Reis | WTS 00245 95 63556340 | tel. 95 595 90554 – 96663 2756.

Abraço. 
Patrício Ribeiro

Guiné 61/74 - P24199: Historiografia da presença portuguesa em África (362): Discurso político de Castro Fernandes, Bissau, 1960, Comemorações Henriquinas (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Julho de 2022:

Queridos amigos,
A sorte não favorece só os audazes, há bancas da Feira da Ladra onde se podem descobrir pepitas, esta conferência de António Júlio de Castro Fernandes tem muito que se lhe diga, recordo que em 1955 ele produziu, e seguramente que não era um exclusivo para a administração do BNU, um documento bem encorpado sobre a situação da Guiné e já numa previsão de mudanças geoestratégicas e geopolíticas, queixando-se da falta de qualidade dos funcionários da administração e da estagnação económica, baseada numa avidez de duas ou três culturas, de fraquíssima qualidade, só de puro escoamento em Portugal, escreveu para quem o quis ler que a Guiné em termos socioeconómicos e culturais tinha que dar uma grande volta. O que não aconteceu. Seguramente escalado para se dirigir à administração colonial, aos empresários locais, adoçou o discurso, nada de temores com subversões (houve quem previsse que os tumultos nacionalistas podiam começar pela Guiné), e vendeu a receita tão cara aos dirigentes do Estado Novo que a nossa presença em África era uma especificidade em prol da civilização ocidental e da mensagem cristã. No ano seguinte a esta alocução de fé e da inabalável crença do Estado Novo de que não haverá política de abandono, a subversão estará em marcha.

Um abraço do
Mário



Discurso político de Castro Fernandes, Bissau, 1960, Comemorações Henriquinas

Mário Beja Santos

Nome sonante do Estado Novo, economista, banqueiro, membro do Governo, Presidente da Comissão Executiva da União Nacional, António Júlio de Castro Fernandes era grande conhecedor da realidade económica da Guiné. Queria lembrar ao leitor o documento que assinou pelo seu punho em 1955 e enviado à administração do BNU, a que ele pertencia, documento que parcialmente transcrevi no meu livro "Os Cronistas Desconhecidos do Canal de Geba", o BNU da Guiné, Edições Húmus, 2019, onde revela que não se pode perder mais tempo numa atitude de desenvolvimento, estavam previstas grandes alterações em torno da colónia, era um risco não mudar o estado das coisas. Se o leitor estiver interessado tem o documento integral à sua disposição na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa.

A conferência que ele vai proferir em 23 de abril de 1960 direciona-se para três temas: Portugal na Guiné; presente e futuro da Guiné; e condicionalismo político. Não traz nada de novo acerca do descobrimento da Guiné, a não ser não ter referenciado Nuno Tristão como o primeiro a chegar à região, mas sim Diogo Gomes, em 1456. Refere sumariamente a colonização e dirige-se ao auditório falando do presente e do futuro. Estamos em 1960, na fronteira norte está a República do Senegal que então fazia parte da Federação do Mali. “Sobre vários aspetos, a Guiné Portuguesa é um país singular, que se destaca pelas características próprias entre as paisagens do Sudão e o grande planalto da Guiné Superior, com a sua particular estrutura de terras baixas, irrigadas por rios largos e numerosos, um território meio continental e meio insular.”

Dá-nos uma água-forte do mosaico étnico, e discreteia sobre a economia, baseada na agricultura. “O ponto fraco do sistema reside na monocultura, não em sentido literal porque, na área da província, há três ou quatro culturas com relevante valor económico. Assim, temos: a mancarra em Farim, Bafatá e Gabu; a palmeira de azeite em Cacheu, Geba e Arquipélago de Bijagós; o arroz em Mansoa, Catió, Fulacunda, Bissau e São Domingos. É visível que a agricultura guineense está concentrada em número restrito de produtos: o amendoim, o coconote e o óleo de palma, que são artigos de exportação; o arroz e o milho, de consumo interno. O primeiro problema que se põe é o de transitar para um esquema em que os produtos cultivados sejam mais numerosos e em que as explorações evoluam no sentido da policultura. É preciso imprimir à economia agrícola da Guiné características de variedade e flexibilidade que lhe faltam. As grandes culturas tradicionais correspondem a direções que estão certas e bem pode dizer-se que têm sentido funcional. O arroz e o milho são os produtos-base da alimentação do indígena. As oleaginosas são o ouro da província. Mas não só podem aclimatar-se outras culturas como aquelas são suscetíveis de adquirir maior extensão. Há que vitalizar e enriquecer um sistema que se enquistou na rotina, sem que nela encontrasse um equilíbrio salutar.”

E tece considerações sobre os problemas da qualidade, o amendoim era de baixa qualidade, o óleo de palma dificilmente colocável no estrangeiro, a mancarra ia acarretar o empobrecimento dos solos, impunha-se sanear e valorizar a agricultura da Guiné, que se encontrava num quadro de estagnação. A indústria da Guiné pouco representava, as suas trinta e tantas unidades fabris eram complementares da lavoura. E espraia-se sobre os planos de fomento, a recuperação de terras para o arroz, um programa de regularização e dragagem do rio Geba, a construção de pontes sobre o Geba, o Corubal e o Cacheu, a conclusão da ponte do cais de Bissau e dos cais de Catió e Cacheu. Faz sempre menção ao I Plano de Fomento e ao II, onde se previra a instalação de uma estação agrária para aproveitamento dos terrenos alagados, ribeirinhos do Geba.

E assim se chegou à questão mais delicada, o condicionalismo político, socorre-se de um punhado de lugares comuns para falar da África Negra, do nacionalismo africano, pretende que fique claro que o continente não é nem homogéneo nem uniforme, da ebulição dos novos Estados parece que se deseja um regresso às origens, renasceram ódios, é intensa a hostilidade ao Ocidente, e faz uma observação de caráter pessoal:
“A África é de tal modo complemento da Europa que bem podemos admitir a hipótese de, passado algum tempo, se refazer a colaboração que está na ordem natural das coisas e arrefecer e apagar-se o ímpeto agressivo de um racismo negro que é de criação puramente artificial, produto da propaganda dos agitadores mais do que a expressão autêntica de uma aversão hereditária. Ouvimos por toda a África o tambor da guerra. Nem a África pode organizar-se unitariamente, porque nela não há fator de unidade, nem sequer lhe é possível organizar-se pela simples transformação dos territórios coloniais em Estados autónomos.”

E o político que abraçou o nacional sindicalismo e que se entusiasmou pelo corporativismo e é um peso pesado da União Nacional dá conta à audiência do que fará Portugal. Não se percebe como os responsáveis do Ocidente querem fazer frente à invasão comunista, parece que todos querem descolonizar e recomendam a descolonização a quem não a quer fazer, porque há a especificidade portuguesa. “Não conhecemos os equívocos em que outros tropeçam porque, dentro das nossas fronteiras, nos territórios portugueses, o nacionalismo só tem um sentido. Não há, no nosso Ultramar, nacionalismo que não seja português ou, se o preferirmos, que não seja nacional. Nós vivemos à margem dos equívocos em que outros se transviam. Como eles, nós não temos nações negras dentro dos limites em que se exerce a soberania portuguesa. Na nossa África, é efetiva a presença de uma nação, a Nação Portuguesa. Não corremos o risco de nos desnortearmos, ao ponto de nos atormentar as vigílias a ideia de que dominamos e recusamos o direito à vida a nações escravizadas. A nossa experiência africana é mais larga que a dos outros povos, mais longa e mais rica de conteúdo.”

Está dado o mote para avisar a audiência, os meios de comunicação e a opinião pública em geral de que não iremos praticar a política do abandono, a renunciar ao que é irrenunciável. E evoca-se a lição da história:
“Começámos por nos aventurar pelas rotas do Atlântico Sul e do Índico, lutando com as tempestades em frágeis caravelas, a dobrar os promontórios, de mandar as aguadas, aprender a conhecer o litoral do grande continente. Depois, fundámos os nossos estabelecimentos da costa. Desde logo nos aventurámos através do sertão inóspito, ganhando palmo a palmo a terra e as gentes alma a alma. É que, para nós, colonizar não era apenas criar balcões de comércio ou mesmo fazendas prósperas. Era serviço de Deus e da Pátria. Fomos em África soldados e missionários, mercadores e lavradores, mas fomos, acima de tudo e na mais larga acessão da palavra, homens humanizando outros homens.”

E na sua alocução não deixa de mencionar os valores materiais e morais da Civilização Ocidental e Cristã. E termina a sua conferência com o apelo à energia firme; a aceitação voluntária de sacrifícios e riscos, vivia-se a hora em que se propunha a Portugal o problema de sobreviver ou não sobreviver na sua dimensão mundial. Havia que estar unidos e confiar nos chefes e na aliança inquebrantável de todos os portugueses de boa vontade. Sagaz, não menciona uma só vez a erupção do nacionalismo africano na Guiné ou a subversão latente, não havia que descolonizar porque éramos todos portugueses. Bem silenciou as tensões já existentes, deverá ter considerado que era a comunicação adequada para comemorar a epopeia henriquina. No ano seguinte, tudo começará a ser diferente.

Imagem da época da sede da Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné, projeto do arquiteto Jorge Chaves, teve intervenções no interior de um jovem que seria um grande nome das artes plásticas portuguesas, José Escada
Desenho de António Júlio de Castro Fernandes, por Almada Negreiros, 1932
António Júlio de Castro Fernandes, retrato a óleo de Maluda, 1975
____________

Nota do editor

Último poste da série de 29 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24175: Historiografia da presença portuguesa em África (361): Informações sobre a Guiné no Anuário Colonial de 1917 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24198: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (34): papas de sarrabulho à moda de Candoz

Tabanca de Candoz > 12 de Outubro de 2006 > Na matança do porco (*), faziam-se as papas de sarrabulho... à moda de Candoz.

Video (3' 47''): Luís Graça (2006). (**)

1. A "Tia Nitas" (como eu tratava carinhosamente a minha "mana", e que  "Deus já lá tem",  como diz aqui o povo) sabia explicar tudo direitinho... com a sabedoria, o amor e a paciência que ela punha em tudo o que fazia na Terra da Alegria...  Era uma excelente cozinheira e  "dona de casa" tal como foi uma grande profissional no laboratório de tecnologia química do ISEP.

Já não se mata mais o porco, lá em casa,  como antigamente, nem se farão mais as papas de sarrabulho (a não ser comprando os ingredienets no Talho, mas já não teria a mesma graça...).  A matéria prima    é  (era) o sangue de porco  e os miúdos da carne de porco (coração, fígado,  etc.) .

Fomos desencantar este vídeo (mais do que amador...) no blogue "A Nossa Quinta de Candoz"... E voltamos a reproduzi-lo aqui. É uma pequena homenagem à nossa Nitas (Candoz, 1947 - Porto, 2023), nesta quadra festiva, a Páscoa,  de que ela gostava tanto ou mais do que o Natal.

Vamos reunir a família em Candoz, este fim de semana,  (Riosunbga mas não vamos abrir a porta ao compasso pascal, este ano. (A visita em Candoz era sempre à  segunda-feira,  o compasso levava dois dias a  percorrer a feguesia.) Estamos de luto, como manda a tradição e o coração. 

No vídeo, que é de 2006,  aparecem as três manas da familia, a Rosa (Rosinha, a mais velha das três), a Chita (Alice) e a Nitas (Ana), guardadoras dos segredos e dos sabores culinários da família Ferreira Carneiro... Na altura eram também elas as  sócias da Quinta de Candoz (falta aqui o mais novo, o mano Zé para completar o quarteto dos sócios da Sociedade Agrícola da Quinta de Candoz...).

 2. O modo de fazer este prato segue a tradição minhota, comum à região do Douro Litoral (a que pertence Candoz, já no limite do distrito do Porto) (***). A receita pode ser vista aqui, na página Cozinha Tradicional:

(...) As papas de sarrabulho fazem parte das receitas tradicionais da cozinha portuguesa, sendo oriundas do Minho, no norte de Portugal. 

Os ingredientes principais destas papas são: sangue de porco (que dá origem ao termo 'sarrabulho' ), carne de galinha, carne de porco, cominhos e pão ou farinha de milho. São servidas como sopa ou como acompanhamento de pratos como os Rojões à moda do Minho.

As papas de sarrabulho são tradicionalmente feitas no Inverno, quando se realiza a matança do porco. Além disso, fazem um prato forte, que apetece sobretudo saborear no tempo frio.

 É comum encontrar este prato tradicional nos restaurantes do norte de Portugal, sendo raro encontrá-las nas regiões centro e sul do país. (...).

3. E ainda a propósito da quadra festiva da Páscoa, lembro aqui também o que eu gostava de escrever, por esta altura,  no blogue de "A Nossa Quinta de Candoz", quando ainda erámos todos vivos e respirávamos saúde e havia alegria para poder receber o compasso pascal:

(...) Qualquer que seja o significado que a Páscoa possa ter para cada um de nós, há nela uma mensagem de sentido universal e intemporal: a travessia da 'picada' [estrada ruim, trilho]  da vida, com todos os seus riscos, medos, minas e armadilhas, é bem mais fácil, se for feita em conjunto, de maneira solidária, partilhada... Mesmo sabendo todos nós, que o nascer e o morrer são os atos mais intrinsecamente solitários da vida humana. (...).

terça-feira, 4 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24197: Fichas de unidade (30): BCAV 3854 (Nova Lamego, 1971/73): CCAV 3404 (Cabuca), CCAV 3405 (Mareué) e CCAVV 3406 (Madina Mandinga)



Batalhão de Cavalaria nº 3854

Identificação: BCav 3854

Unidade Mob: RC 3 - Estremoz

Cmdt: TCor Cav António Malta Leuschner Fernandes

2.° Cmdt: Maj Cav Jaime Alexandre Santos Marques Pereira | Maj Cav Francisco José Martins Ferreira

OInfOp/Adj: Maj Cav Viriato Manuel d' Assa Castel-Branco | Maj Cav Eduardo Barata das Neves

Cmdts Comp:

CCS: Cap SGE Adelino Lopes de Almeida Ferreira

CCav 3404: Cap Cav Grad Luís Fernando Andrade de Moura

CCav 3405: Cap Cav Fernando Gill Figueiredo Barros | Ten QEO António Pereira de Lima

CCav 3406: Cap Cav José Carlos Cadavez

Divisa: "Cumprir"

Partida: Embarque em 04Ju171; desembarque em 10Jul71 | Regresso: Embarque em 050ut73

Síntese da Actividade Operacional

Após realização da IAO com as suas companhias, de 12Jul71 a 06Ago71, no CMl, em Cumeré seguiu, em 13Ag07l, para o Sector L3(Lamego), com as suas subunidades, a fim de efectuar o treino operacional e a sobreposição com o BCaç 2893.

Em 05Set71, assumiu a responsabilidade do Sector L3, com sede em Nova Lamego e abrangendo os subsectores de Cabuca, Madina Mandinga, Canjadude, Mareué e Nova Lamego. 

Em 22Nov71, a zona de acção foi reduzida do subsector de Mareué, transferido para outro batalhão. As suas subunidades mantiveram-se sempre integradas no dispositivo e manobra do seu batalhão.

Desenvolveu intensa actividade de patrulhamento, de protecção de itinerários, de escoltas, de intercepção e aniquilamento de elementos inimigos infiltrados e ainda de controlo e defesa dos aglomerados populacionais e organização do respectivo sistema de autodefesa.

Dentre o material capturado mais significativo, refere-se: 1 espingarda, 5 granadas de armas pesadas e a detecção e levantamento de 25 minas.

Em 08Set73, foi rendido no sector de Nova Lamego pelo BArt 6523/73 e recolheu em 11 Set73 a Cumeré e em 24Set73 a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.



A CCav 3404 seguiu em 10Ago71, para Cabuca, a fim de efectuar o treino operacional e a sobreposição com a CCaç 2680, tendo assumido a responsabilidade do respectivo subsector em 05Set7l.

Em 08Set73, foi rendida pela 2ª Comp/BArt 6523/73 e recolheu, em 10Set73, a Cumeré e, em 24Set73, a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

* * *

A CCav 3405 seguiu em 11Ago71 para Mareué, a fim de efectuar o treino operacional e a sobreposição com a CCaç 2658, tendo assumido a responsabilidade do respectivo subsector, em 05Set71, com dois pelotões colocados em Nova Lamego, em reforço da guarnição local.

Em 21Nov71, foi substituída em Mareué pela CCav 3463 e assumiu a responsabilidade do subsector de Nova Lamego, com pelotões destacados em Cansissé e Oco Maúnde, tendo rendido a CCaç 2680 em 29Nov71.

Em 08Set73, foi rendida pela 3ª Comp/BArt 6523/73 e seguiu, em 11Set73, para Cumeré e, em 24Set73, para Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

* * *

A CCav 3406 seguiu em 11 e 13Ago71 para Madina Mandinga, a fim de efectuar o treino operacional e a sobreposição com a CCaç 2619, tendo assumido a responsabilidade do respectivo subsector, com um destacamento em Dara, em 05Set7l.

Em 08Set73, foi rendida pela 1ª Comp/BArt 6523/73 e recolheu, em 10Set73, a Cumeré e, em 25Set73, a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.
Observações - Tem História da Unidade (Caixa n." 101 - 2ª Div/4ª  Sec, do AHM).

Fonte:  Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pp. 288/289.

Brazões Guiões e Crachás: Cortesia da Coleção Carlos Coutinho (2009)

_____________

Nota do editor:

Último poste da série > 6 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23849: Fichas de unidades (29): BCAÇ 4616/73 (Bambadinca, 1974)

Guiné 61/74 - P24196: Tabanca Grande (547): Rogério Paupério, ex-1.º Cabo Escriturário, CCAV 3404 / BCAV 3854 (Cabuca, 1971/73). Natural de Valongo, vive atualmenmte em Vila Nova de Gaia; passa a ser o membro n.º 874 da Tabanca Grande.



Rogério Paupério, ex-1º cabo escriturário, CCAV 3404 / BCAV 3854 (Cabuca, 1971/773). Vive atulamenmte em Vila Nova de Gaia. Passa a ser o membro nº 874 da Tabanca Grande. 


1. Mensagem de Rogério Paupério:

Data - sábado, 1/04/2023, 23:11
Assunto - Cabuca

Boa noite Luís Graça

Tal como o Gomes de Sousa falou, também estive no BCav 3854 / CCav 3404 que embarcou para a Guiné a 4/7/71 e lá chegou a 11/7/71 com destino a Cabuca, Nova Lamego. Fui o escriturário da Companhia.

Em 2010 convenci uns camaradas a ir à Guiné, organizei um grupo de oito, três da companhia (sendo um o Gomes de Sousa, que nos tinhamos acabado de reencontrar 37 anos depois), dois de Canquelifá, um de Angola (que tinha o sonho de visitar a Guiné) e ainda meu filho.

Partimos a 12/3/2010 e regressámos a 20/3/2010. Uma viagem inesquecível. Uma decepção pelo estado lastimoso de tudo; abandono, destruição etc. Salvou-se o amor que tínhamos aquela terra e que se reforçou depois da nossa vinda. Não nos cansamos de recordar aqueles 8 dias da nossa vida.

Ficámos no Saltinho, visitámos Bafafá, Nova Lamego, Cabuca, Piche, Canquelifá, Bissau, Quebo, Buba, Guilege e outros pequenos locais com história principalmente Quitaro, local trágico para as NT.

Junto, como pediste,  uma foto minha da minha passagem pela Guiné e uma actual.

Quanto à minha colaboração no teu blogue terei o maior prazer em fazê-lo.

Bom fim de semana e um grande abraço.

Cumprimentos, Rogério Paupério.



Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Cabuca > Brasão da CCAV 3404 / BCAV 3854 (1971/73).

Este batalhão embarcou em 4 de julho de 1971 e regressou à Metrópole em 5 de outubro de 1973. Esteve sediado (comando e CCS) em Lamego (Comandante: ten cor cav António Malta Leuschner Fernandes). A CCAV 3405 esteve em Mareué e Nova Lamego. A CCAV 3406 em Madina Mandinga. 

O João Candeias, fur mil, pertenceu originalmente a esta companhia, a CCAV 3404, antes de ingressar, em rendição individual, na CCAÇ 12. Além dele (que entrou a título póstumo, para a Tabanca Grande), temos mais dois camaradas que representam a CCAV 3404 (e felizmente estão vivos), o José António Sousa e agora o Rogério Paupério.

Outros camaradas que passaram por (ou conheceram) Cabuca;
  • António Barbosa, ex-alf mil op esp/ranger, 2.ª C / BART 6523 (Cabuca, 1973/74);
  • Armando Gomes ex-1.º cabo ap armas pesadas, CCAÇ 2383 (Cabuca 1968/70);
  • Carlos Arnaut, ex-alf mil art, 16º Pel Art (Binar, Cabuca, Dara, 1970/72);
  • José da Luz Rosário, ex-fur mil, Pel Canh S/R 2298 (Cabuca e Buruntuma, 1971/72);
  • José Pereira, ex-1.º cabo inf, 3.ª CCAÇ e CCAÇ 5 (Nova Lamego, Cabuca, Cheche e Canjadude, 1966/68);
  • Ricardo Figueiredo, ex-fur mil, 2ª C / BART 6523, Cabuca (1973/74);
  • Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70).
Foto: Cortesia de Os Abutres de Cabuca (2ª CART / BART 6523/73, Cabuca, 1973/74) [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Resposta do editor LG:

Rogério, obrigado, por teres aceitado o meu convite para integrar a Tabanca Grande, na sequência do poste que publicámos com as tuas fotos de 2010, tiradas no Quirafo (*). 

Passas a sentar-te à sombra do nosso poilão, no lugar n.º 874 (**). 

Temos ainda poucas referências à tua/vossa CCAV 3404, como ao teu/vosso BCAV 3854. Já o topónimo Cabuca tem mais de quatro dezenas de referências. 

Todos as fotos e textos que nos mandares, para publicação no nosso blogue (meu/teu/de todos nós),  serão bem vindos (incluindo os da vossa viagem à Guiné-Bissau, em 2010):  ajudam-nos a ampliar, melhorar e enriquecer a memória de todos nós, antigos combatentes no CTIG e demais amigos da Guiné.

Espero voltar a encontrar-te mais vezes numa das nossas tabancas, a começar pela de Matosinhos. Dá uma braço ao Zé António Sousa e demais camaradas e amigos que eu encontrei na passada quarta-feira, dia 29 de março, no almoço-convívio da Tabanca de Matosinhos.  

Já agora aqui fica também, para os nossos leitores, o link para a tua página no Facebook. Ainda a teu respeito, ficamos a saber que:

  Trabalhaste na empresa Barbot
  Andaste na escola de Valongo
 Vives em Vila Nova de Gaia
 És natural de Valongo.


Se quiseres completar os teus dados (data de nascimento e nº de telemóvel) manda um email para o nosso coeditor Carlos Vinhal (Leça da Palmeira / Matosinhos): carlos.vinhal@gmail.com

A data de nascimento serve para te "cantarmos os parabéns" no dia do teu aniversário; e o nº de telemóvel  serve para, além do teu endereço de email, ficarmos mais facilmente em contacto contigo (é confidencial e não será partilhado, a não ser com a tua autorização).

Sê bem vindo, em nome de todos nós, amigos e camaradas da Guiné.
____________


1 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24183: Efemérides (384): A tragédia do Quirafo foi há 51 anos, em 17 de abril de 1972... Em 2010 ainda havia vestígios da fatídica GMC... (Rogério Paupério / José António Sousa, membros da Tabanca de Matosinhos, ex-militares da CCAV 3404 / BCAV 3854, Cabuca, 1971/73)

Guiné 61/74 - P24195: (In)citações (236): "Reflexão sobre a Ciência" (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

REFLEXÃO SOBRE A CIÊNCIA

adão cruz

Sou um materialista convicto, no sentido filosófico-científico, sem qualquer angústia sobrenatural ou metafísica, não perfilhando qualquer dualismo corpo-espírito, a não ser em termos académicos. Desta forma, considero a Ciência como a mais segura plataforma de partida para o caminho do saber e da verdade.

A Ciência oferece-nos perspectivas francamente inovadoras, mesmo sem contribuir com respostas directas e imediatas para todas as questões. A Ciência constitui a mais segura contribuição para a descoberta do homem e do mundo. A permanente interacção da evolução dos conhecimentos científicos com a cultura deve fazer parte da vida de todos nós. A Ciência, em permanente desenvolvimento, interfere constantemente em todos os domínios do quotidiano, e cria a necessidade de critérios de excelência em qualquer dos campos da educação e do progresso, a fim de tornar mais fácil o entendimento da vida. Sem a Ciência não há educação que resista, não há educação da verdade, não há verdade que não esteja conspurcada de crendice. Todavia, nem a Ciência nem a técnica têm sentido se não forem instrumentos para a realização plena da humanidade.

Ao apresentar-me assim, como intransigente defensor da Ciência, fazendo a apologia da Ciência como o mais verdadeiro de todos os caminhos, não deixo de ter em atenção a posição dos que atribuem à Ciência um cunho elitista, considerando-a parte de uma invenção diabólica que apenas serve para a consolidação cada vez maior do poder económico dos senhores do mundo. Neste sentido, a Ciência passaria a ser um instrumento de produção, mais associada ao poder de enriquecimento do que à criação do saber. Daqui a grande contradição entre a maravilha da Ciência e a perversidade das suas aplicações. Não podemos conceber, no entanto, um desenvolvimento sem Ciência, a grande luz contra todos os obscurantismos. Podemos e devemos, isso sim, ter sobre ela uma visão crítica, reconhecendo o seu incomensurável papel no desenvolvimento da humanidade e não desprezando os seus perigosos desvios. Um campo infinito, apaixonante e imparável, que tanto pode ser usado para reforço do poder dominante, como pode estar ao serviço de uma sociedade mais justa, mais verdadeira, mais progressista e igualitária.

Podemos concluir, dizendo que o mal não está nem nunca esteve na Ciência, mas no uso negativo que o ser humano lhe dá.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 2 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24186: (In)citações (235): "Reflexão sobre as palavras" (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

Guiné 61/74 - P24194: (Ex)citações (424): Adeus, até ao meu regresso !... Mas em que ainda se fala de esquizofrenias galopantes, de Diniz de Almeida e do velho... do Restelo da Revolução (José Belo, Suécia)

1. Mensagem de Joseph Belo:

Data - quinta, 23/03/2023, 18:23 

Caro Luís

Sempre na busca de reviver diálogos com alguns Camaradas que aparentemente (e infelizmente) tem vindo a diminuir as suas interessantes participações activas (!), enviei, em 22/02/2023, um despretensioso texto intitulado “O caminho marítimo para um certo socialismo“.

Quanto a mim, a conclusão final do velhote protagonista engloba de forma genial, na sua simplicidade realista, o interessante tipo de dialética (não existente no período) entre alguns dos actuantes na “Revolução” e grandes massas de pseudo receptores.

A minha comparticipação nestes diálogos sempre procurados será improvável por regressar dentro de dias para os States onde me espera um período muito activo a nível pessoal e empresarial.

Abraço do JBelo

2. Resposta do editor LG:

 Data - sexta, 24/03/12023, 10:55

José, não está esquecido. Mas primeiro tenho que enterrar uma pessoa que me é muito querida, a irmã da Alice e minha "mana"... Acaba de morrer... Sabes como é, quando morre alguém que muito amamos, morremos também um pouco. Ab, Luis

3. Mensagem de Joseph Belo:

Data - 24/03/2023/2023, 11:56 

Meu Caro Luís: Sinceros Sentimentos. Eu infelizmente sei bem demais o que são tais situações e o que elas nos trazem quanto a sentimentos. Um grande abraco, JBelo.

4. Resposta de Luís Graça:

Data - 24/03/2023, 12:10 

Obrigado, Zé. Foram 4 anos de sofrimento. Mas a minha mulher acompanhou-a nestes últimos dias, o que ajuda a fazer o luto. Eram "almas gémeas". E eu já lhe escrevi a oração fúnebre. Abraço fraterno. Luís

5. Texto emviado pelo Zé Belo:


Data - Sexta, 17/03/2023, 20:08

Assunto - Um texto já... fora de tempo.

 Caro Luís

O pequeno texto que te enviei no qual, muito de passagem, referia Diniz de Almeida, tinha por intenção estabelecer um diálogo à volta deste importante membro do MFA em data próxima do 11 de Março de 1975.

Apodado de tudo e mais alguma coisa pela direita então frustrada e, não menos, por pseudo políticos militares de então que, desde os seus confortáveis gabinetes em Belém, com alcatifas, interessantes mui simpáticas secretárias, e bonitas “vistas” das suas janelas sobre o Tejo, trabalhavam para o seu futuro pessoal.

Ele e um punhado de outros ingénuos que julgavam defender o espírito de Abril junto dos Soldados nos respectivos Quartéis. A contribuição de Diniz de Almeida para o êxito militar da movimentação de tropas em Abril merece leitura atenta antes de se cair nas críticas fáceis do tipo…. ”Fitipaldi das Chaimites“!

E alguns dos militares-politicos que, após o ataque ao RALIS  em 11 de Março,   “flutuaram“ até Novembro de 75, e não menos no período imediato posterior, não teriam continuado nos seus resguardados “postos” se Diniz de Almeida não tivesse “aguentado” o RALIS naquela data.

Para os que se consolam com a “inventora” possível à volta destes acontecimentos, recordo-lhes que além do cerco das tropas pára-quedistas, o RALIS  foi metralhado desde o ar com resultado em mortos e feridos.

Não me contaram a “história “.

Eu e alguns Aspirantes a Oficial, do Esquadrão que então comandava, quando aguardávamos
embarque para Angola, no Regimento de Cavalaria 5, em Santa Margarida, estivemos de armas na mão nos muros do RALIS nas horas imediatas ao ataque.

E, para muitos dos “revolucionários” que tanto gostam de se abrigar à sombra do politicamente correcto, se Diniz de Almeida não tivesse “agarrado” o RALIS naquela data (e a escolha daquele Regimento não foi por acaso) não teria sido necessário a perda de tempo até…Novembro de 1975.

As opiniões hoje, e de ambos os lados das barricadas, são risíveis por… ultrapassadas!

Um abraço, JBelo



Da Lapónia à Florida... Fotos de JBelo (2023)


6. Mensagem de Joseph Belo:

Data - quarta, 1/03/2023, 18:49
Assunto - Esquizofrenias galopantes

As últimas semanas têm sido bem agitadas nas suas voltas e reviravoltas.
Demasiado agitadas para as nossas idades bíblicas.

Vou "descomputamizar-me" por uns tempos, o que desde há muito compreendi ser... terapêutico!

Termino os meus inocentes diálogos com o umbigo com o texto "O caminho marítimo para um certo socialismo" que te enviei.

Não sabendo se será editorialmente publicável é no entanto uma daquelas histórias que definem um certo tipo de sociedade vista desde pequenas "alturas".

Com o saudoso (???)... Adeus até ao meu regresso...

Um grande abraco,
E... as tais esquizofrenias... JBelo

7. Resposta do editor Luís Graça

Data - 04/03/2023, 23:17

José, vou publicar... mas promete-me que não "desertas"... LG


O caminho marítimo 
para um certo socialismo | Joseph Belo

(Enviado em 22/02/2023, 14:07)

Caro Luís

A caminho de novo período (mais um) da minha já longa vida, veio-me à memória importante e inesperada conversa tida com um “velhote” em inícios de 1975.

Em companhia do então major Diniz de Almeida, a quem me ligava forte amizade pessoal bem anterior a Abrir de 74, decidimos aproveitar a hora do almoço regimental para irmos comer uns famosos “coiratos” em restaurante humilde e discreto nos arredores de Sacavem.

Os “grelhados“ eram cozinhados num terraço onde estavam colocadas algumas mesas artesanais e cadeiras.

Um velho, sentado em banco próximo ia aproveitando o sol. Ao ver-nos fardados com os camuflados abanou pensativamente com a cabeça. Como estava só e sem nada na mesa à frente dele, convidei-o para beber um “copo” connosco.

Mudou-se para junto de nós. Falou-se de tudo um pouco como era normal naquele período. Depois de o tal “copo” se ter tornado o terceiro, olhou-me frontalmente e disse quase num lamento:

−  Os senhores Oficiais nada sabem quanto às realidades em que andam metidos. Eu, quando criança passei muita fome. Quando adolescente,  passei muita fome. Como adulto,  passei muita fome. Agora, já bem velho... habituei-me!

Tudo dito de forma sincera, directa, com poucas palavras.

A vida deu muitas voltas mas esta conversa tem estado sempre presente no meu espírito. Como alguém escreveu: “São histórias que ficam na história da gente“.

Um abraço do JBelo
____________

Nota do editor:

Último poste da série > 2 de abril de  2023 > Guiné 61/74 – P24187: (Ex)citações (423): Camaradas que se separaram na Guiné (José Saúde)

Guiné 61/74 - P24193: Parabéns a você (2156): Agostinho Gaspar, ex-1.º Cabo Mec Auto da 3.ª CCAÇ / BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 de Abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24188: Parabéns a você (2155): Álvaro Vasconcelos, ex-1.º Cabo TRMS/STM (Aldeia Formosa e Bissau, 1970/72)

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24192: Notas de leitura (1569): "Jasmim", de Amadú Dafé; Manufatura, 2020 - A identidade, a multiculturalidade, o transcendente (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
A literatura luso-guineense tem-nos pregado as suas partidas. Na fase de arranque, houve as laudes pela vitória da independência, hossanas aos libertadores, a poesia foi o principal eixo dessa marcha triunfal. Seguiu-se o desalento, basta recordar o importantíssimo livro de Filinto Barros Kikia matcho, o próprio cinema de Flora Gomes dava conta de que aqueles combatentes vitoriosos tinham passado a viver na obscuridade. É nisto que Carlos Lopes, um dos maiores investigadores guineenses, se lança na crítica mordaz a descrever a corrupção das novas elites, os negócios escuros, os aproveitamentos dos fundos de cooperação, a exibição dos carros luxuosos a passearem-se em estradas esburacadas. Tony Tcheka, poeta inconformado, relembrava que não se perdia a esperança no sonho de Cabral, a despeito de todos os desmandos, com a economia no fundo. É neste contexto que vai surgir a prosa mais consistente da Guiné-Bissau, Abdulai Silá, um desmontador do mundo colonial e das suas sequelas na contemporaneidade, usando com perícia absoluta o teatro para descrever a violência das novas fações que procuram aproveitar-se do poder, saqueando, traficando, intimidando. E temos agora Amadú Dafé, cujo Ussu de Bissau é uma denúncia pungente de negociatas envolvendo altas esferas da religião islâmica e máfias organizadas em vários pontos da África Ocidental, o que ele denuncia é mercado internacional de crianças. E agora o Jasmim, um guineense que reflete sobre as questões da identidade, a encruzilhada cultural, o pensamento religioso e filosófico.
Uma obra singular, deixará seguramente muita gente estupefacta, não era propriamente isto que se esperava de alguém que nasceu e cresceu no Ingoré.

Um abraço do
Mário



A identidade, a multiculturalidade, o transcendente, o Jasmim…

Mário Beja Santos

O rio, essa serpente que nos traz o caos e nos devasta esperanças, os irãs, os feiticeiros, o poder da escrita em revelar poderosas recordações íntimas, como se um livro se pudesse transformar numa sala de conversa de convergência multicultural, pois é assim o que "Jasmim", de Amadú Dafé, Manufatura, 2020, nos expõe em itinerância, com muitas culpas e remorsos figurativos, invade a cena gente do Norte da Guiné (Ingoré), cabo-verdianos e brancos, faz-se a exaltação da mulher e a denúncia da violenta discriminação de género que acontece naquele ponto da África Ocidental, mas não só, e, acima de tudo, este livro dá-nos um quadro confessional que jamais foi tentado por qualquer outro escritor da lusofonia, as suas crises de consciência são postas frente a múltiplos espelhos, e o que se pensa e o que se transmite é por vezes muitíssimo doloroso.

Em 2019, Amadú Dafé deu-nos um livro portentoso, Ussu de Bissau, uma amostra daquela tragédia que dá pelo nome de tráfico de crianças, fenómeno internacional onde as escolas corânicas não estão isentas de culpas e os responsáveis islâmicos também não. "Ussu de Bissau" é ponto alto da literatura luso-guineense, bom seria que fosse melhor conhecido e seguramente melhor apreciado.

"Jasmim" tem outra complexidade, está enxameado de metáforas e simbolismos, faz entrelaçar fenómenos de culturas africanas com atitudes filosóficas da cultura ocidental, o discurso direto é acessório, os números dos personagens são, Lua, Pipa, Fé, Banna, Jacinto. Amadú Dafé lança mão a propósito de expressões crioulas, gosta do português vernacular, a Natureza ofusca-o em permanência, e há o rio que é o rio da consciência, o rio do desaparecimento, o rio formado por muitos riachos, tratado como mistério indecifrável, por ser fonte de vida e de morte.

Num mercado de Ingoré dá-se pela chegada de Fé, fez uma longa e estranha viagem, Lua e Pipa ficam fascinadas por ele, pelo adiante iremos saber que todos estes personagens acarretam vários ingredientes da tragédia grega ou também do teatro francês do tempo de Corneille, pois na vida desta gente há algo de Édipo e de Fedra. Há ponderações com carga metafísica, a componente animista tem o seu magnetismo nas componentes islâmica e cristã. Fé procura a mãe, Pipa fugiu e deixou um filho para trás. O encontro é numa barraca de mercado, um símbolo: “A minha barraca é frequentada por pessoas de culturas diversas e todos aqueles que são capazes de coabitar com a diversidade são bem-vindos”.
O animismo prepondera:
“Tenho no interior da barraca garrafas cheias de terra venerável e chifres de todas as espécies de misticidades, cujos gargalos adornei com retalhos envergonhados, garras e penas de tchoka (perdiz), pele de irã-cego e dentes de onça obediente. Nesta terra, incrédulos ou não, velhos, crianças ou senhores, cabo-verdianos, nánias (cidadãos da Guiné Conacri), nares (cidadãos da Mauritânia) ou senegaleses, todos são vulneráveis aos olhos dos senhores feiticeiros. À porta, tenho uma estatueta do irã do Sul, a tal que foi dada ao meu pai por uma senhora que se dizia dona desse irã trazido de Guiledje. Foi esse irã que deu a vitória na luta de libertação contra o kolom (colono). É um irã respeitado. Nele, todas as manhãs deito água e rogativas de proteção e afortunação. Nos quatro cantos da barraca estão tal-qualmente enterrados amuletos e pequenas garrafas com sal, malagueta e carvão nos respetivos interiores”.

Nisto entra em cena Banna, caber-lhe-á o papel de negociante da condição da mulher em toda a África, parideira, vendedora, agricultora, cozinheira, objeto de troca, morre-lhe o marido e é entregue a outro marido. Em contraste, veremos ao longo da narrativa um tipo de tensão onde o amor e o sexo ganharão peso específico, o leitor precisa de os dimensionar à lupa e perceber que aquele incesto, aquele marido estéril, aqueles segredos bem guardados e que só a ficção permite revelar são acertos de identidade no quadro da violência contida, e não é imagem de retórica, faz parte daquela violência latente, submergida, em que vive a Guiné-Bissau, e não só. A questão da identidade, o sentido da vida e as suas fases iniciáticas atravessam toda a narrativa, implicando uma escrita oficinal de diálogos simulados num contexto edénico, cruzam-se os povos, discute-se as suas origens, uns procuram interpretar o castigo dos deuses, outros aceitam resignadamente o destino.

Nos meandros de todo este processo intimista, somos ofuscados pela natureza do rio, em permanente diálogo com o coberto vegetal:
“O rio brilhava e refletia cores obsequiadas pela pequena floresta que o cingia. Do céu decaiam espetros de luz de pouco cio, que em contato com aquela água salgada reverberavam em ondas de baile (…) A bruma estendia a sua mortalha escura sobre a lala do rio Jasmim, enquanto kikias (corujas) e lobos ululavam difusamente. De repente, o tempo transformou-se. Um vendaval assobiava, aproximando-se em velocidade de pensamento. Em cima das árvores tronchudas, polons, palmeiras e cajueiros, sobre as nossas cabeças djambatutus (pássaro da espécie dos cucos) e kikias faziam espetáculos e alertavam para iminentes danos que a chuva iria causar. Sempre que o vento assobiava como um bêbado, a chuva fazia estragos e arrastava consigo vidas e sonhos. O assobio do vento é sinal de mão feiticeira no tempo. Ao lado, uma luz imitando um ciclope em busca da ribanceira, à espreita de um irã que se acusasse, inspirava-nos, no modo de desviar tempestade”.

Como na tragédia grega, nada nesta narrativa pode evitar o inevitável, posto e disposto pelos deuses. Cruzam-se as mensagens do adeus, questiona-se todo o sofrimento que atravessa as nossas vidas, a tragédia encaminha-se para o rio, alguém mais partiu do nosso convívio, alguém tinha aparecido como um milagre e logo a seguir desapareceu como um sonho. É assim que acontece em toda a condição humana, em Jasmim, provavelmente no mundo inteiro.

Um jovem escritor que decidiu enfrentar uma prova de fogo, foi bem-sucedido ao agarrar pelos cornos as questões da identidade e da multiculturalidade, do transcendente e da aceitação da vida. É uma grande promessa confirmada do que há de melhor na literatura luso-guineense.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 31 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24180: Notas de leitura (1568): Arroios à Mesa não esqueceu as especialidades guineenses (Mário Beja Santos)