Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 27 de setembro de 2023
Guiné 61/74 - P24705: Historiografia da presença portuguesa em África (387): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (2) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2023:
Queridos amigos,
É facto que o ano de 1886 gerou pesar e profundo ceticismo sobre o futuro da Guiné, como colónia portuguesa. Os alertas sobre Ziguinchor eram constantes, os redatores da Revista Ilustrada esperavam que as negociações em Paris não se saldassem numa Guiné retalhada. É bem curioso que a par deste tom apocalítico com que se fala de uma Guiné moribunda, nenhum destes ânimos encolerizados refira o que se ganhou em extensão, já que até então a presença portuguesa estava bem limitada à faixa litoral, pela convenção luso-francesa subscrita em 12 de maio de 1886 ficávamos legalmente com uma faixa de território que se estendia até perto do Futa Djalon, onde nunca houvera presença portuguesa, a par de termos ficado numa situação legitimada com a península de Cacine. O que mais pesava era a perda do Casamansa e de o comércio no rio Nuno. Recorde-se que não fora por acaso que se escolhera Bolama por esta estar na interseção entre Bissau, o Quínara e o Tombali, os rios Nuno e Pongo, que facilitavam o comércio na Serra Leoa, onde tínhamos estabelecimentos comerciais. Não consigo entender como é que esta Revista Ilustrada denominada As Colónias Portuguesas não fazer parte da bibliografia essencial da Guiné, sobretudo neste final do século XIX.
Um abraço do
Mário
Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (2)
Mário Beja Santos
A publicação As Colónias Portuguesas, Revista Ilustrada, publicou-se entre 1883 e 1891, era inequivocamente dirigida à classe política, não descurava a atração de investimentos, procurava dar informação aos funcionários da administração colonial e a potenciais estudiosos do Terceiro Império. Comecei, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, por percorrer o volume referente a 1883 e a 1884. Não posso esconder o entusiasmo que sinto ao folhear estas páginas, elas comportam informações que, por um lado, corroboram o que a historiografia vai lavrando, e, por outro lado, temos inesperadamente acesso a testemunhos que se afiguram genuínos, um dos redatores efetivos, António A. F. Ribeiro terá montado uma rede de contactos e o que vai aparecer sob a forma de correio parece-me de insofismável valor.
Já chegámos ao n.º 1 de janeiro de 1885. Veja-se esta carta de um leitor de Cacheu que refere a indisciplina que ali grassavam, a hostilidade a quem vivia na fortaleza: “Uma lição severa os poderá tornar humildes e submissos; porém, para ter lugar essa lição, são necessários recursos que nós não temos.” E para além de falar na falta de recursos que tornam a vida tão intranquila dentro da fortaleza, o leitor tece acusações à Administração em Cacheu do capitão Sérgio Leitão de Melo, terminando assim: “Eis a nossa situação; dentro da Praça o povo amotinado contra as autoridades, e fora os gentios dispostos à guerra contra nós. E a metrópole, o que fará? Nada.”
Vejamos agora o n.º 3, de março de 1885, é um texto de queixa e de mágoa, intitulado Os Rios Nunes e Casamansa:
“É gravíssimo o estado em que está a nossa Guiné. A França, querendo possuir de força o nosso rio Casamansa, faz, quem sabe se em vista das informações dos seus delegados, as maiores diligências para nos emaranhar por forma tal que quando um dia se chegue a tratar deste assunto nos ser já impossível podermos reaver o que por todos os títulos nos pertence!
É necessário dizer também que não é só o rio Casamansa que a França nos ambiciona. É o rio Nunes, de que se vai apossando. A colónia francesa, Senegâmbia, reavida em parte do poder dos ingleses, pela paz aceite pelos diferentes estados da Europa depois das sanguinolentas guerras de 1808 a 1814, não era a que prendia mais atenção dos seus homens de Estado. Sirva de exemplo o procedimento da França e não nos iludamos com as boas relações e amizades de que se fala, mas que não impede que vão tomando posse dos pontos mais importantes da nossa província da Guiné.”
Registei de um documento sobre o estado financeiro de cada uma das nossas províncias além mar, sendo autor o Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, Manuel Pinheiro Chagas, apresentado ao rei, em 29 de dezembro de 1875, no que se refere exclusivamente à Guiné:
“As receitas tinham chegado à mais completa decadência. As continuadas guerras dos pretos traziam consigo uma falta de segurança, que paralisava a agricultura e, por conseguinte, o comércio. O estabelecimento do telégrafo submarino melhorou completamente as condições dessa província cujo governador pôde rapidamente chamar navios de guerra estacionados em Cabo Verde, assegurando assim dentro em pouco a tranquilidade de agricultura, logo que os tumultuários vejam que têm pronta repressão qualquer motim que intentem.”
Estamos agora em 1886, ano IV. Escreve António A. Ferreira Ribeiro sobre a rua do governador Caldeira, em Bolama:
“Escolhida para capital, pela elevação do antigo distrito da província independente em 1879, teve esta povoação grande desenvolvimento nos primeiros anos, e, sem obedecer a um qualquer plano, hoje, espalhadas à vontade construções de regular merecimento, tanto particulares como do Governo, tudo, porém, foi caprichoso, precipitado e autoritário, o que deu em resultado tornar-se uma povoação irregular e feia no seu conjunto, suficientemente elevada acima do nível do mar e da natureza que a revestiu com árvores frondosas e da mais bela folhagem. A rua do governador Caldeira que a gravura representa, foi assim denominada em homenagem ao nome de um bravo militar que da defesa do território português soube sempre lutar com honra e brio pela sua independência e integridade, quer contra os gentios aguerridos quer contra as ambições teimosas e insistentemente atrevidas dos nossos vizinhos e ‘amigos’, França e Inglaterra. A primeira casa, lado esquerdo, ao nascente, a residência oficial, e avistando-se ao fundo da rua, que forma ao centro uma pequena curva o segundo andar do prédio de Aimé Olivier, a quem Portugal premiou com o título de visconde de Sanderval, em honra, talvez, das suas vilãs tentações contra o domínio português, quer nas ilhas do grande arquipélago dos Bijagós, quer nos diferentes lugares que visitou. O amor à ciência é desinteressado, dizia ele, e assim percorreu por toda a parte como o mais abstrato sábio e mártir do progresso e da civilização, indo, depois, com toda a diplomacia á bon citoyen français, oferecer os tratados secretos com régulos já sujeitos à soberania de Portugal, ao Governo do seus país!”
E assim conclui a sua apreciação sobre Bolama: “A povoação assenta em lugar relativamente elevado, mas faltando-lhe todos os cuidados de asseio, e ficando muito próximo à praia, que é lodosa em grande extensão, precisam os seus habitantes do máximo resguardo e cautela para se precaverem contra as febres do país, que na mudança das estações torna muito perigosa, pela permanência prolongada no mesmo sítio, tanto europeus como africanos.”
E deteta-se na leitura que a questão de Ziguinchor é alvo de uma escrita em pânico, é como se estivesse o autor a tocar uma sirene de alarme para que o Governo em Lisboa viesse salvar a praça e impedir o domínio absoluto do rio pelos franceses. Aliás, lê-se um comentário, ainda no n.º 1 de janeiro de 1886:
“A Guiné está perdida, e perdida porque, de um lado, os negociadores dos seus limites, ao norte e ao sul, vieram afirmar a indiferença da grande maioria dos nossos homens da atualidade, dando o melhor dos seus terrenos, as mais importantes comunicações fluviais com o interior, sem que o pulso lhes doesse ao sancionar tais atos, de que, por força, hão de dar explicações ao público, que tem direito a saber porque entregarão a um país estranho, o que, de séculos, era português.”
E conclui-se a leituras destes números com a carta de Frederico de Barros ao governador (não se sabe se é Francisco de Paula Gomes Barbosa ou José Eduardo de Brito, ambos estiveram ao leme da governação nesse ano:
“Sr. Governador, prezo-me de saber conhecer bem, e compreender razoavelmente os direitos e os deveres que constituem a pessoa moral e política, de que faço parte. Sei que na qualidade de Presidente do Conselho Governativo ao entregar o governo dela a Vossa Excelência me cumpria dar notícias do seu estado.
Por cá há intriguistas e aduladores perigosíssimos, cujas ciladas Vossa Excelência deve evitar. Tenho muito que expor sobre o estado desgraçado desta província. Disseram a Vossa Excelência que eu não me tenho dado bem com nenhum dos governadores, é bem verdade, e disse-me de orgulho. Espero que nos daremos bem. Mas se a Guiné Portuguesa tem lavrada, como eu creio, a sua sentença de morte, isto é, se está prestes a ser riscada do mapa das nossas possessões coloniais, e se a má sorte venha a ser que Vossa Excelência se torne o último governador português, que a terra lhe seja leve!”
Bolama, capital da moribunda Guiné, 20 de outubro de 1886, o Africano, Frederico de Barros.
Deve-se a Alexandre Herculano uma magnífica peça de oratória no Parlamento, o grande escritor respondeu encrespado a um deputado da Madeira que observara que a palavra Casamansa era um barbarismo e que o melhor era entregar tudo aos franceses
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 20 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24679: Historiografia da presença portuguesa em África (386): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", revista ilustrada (1) (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P24704: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (1): A Feira (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)
Quinta de Candoz > 2023 > O que resta do velho carro de bois: duas rodas desconjuntadas...
1. Luís Graça, que não é antropólogo (mas ficou com o "bichinho" da antropologia / etnologia, aquando das aulas e trabalhos de campo com o seu grande mestre e amigo Joaquim Pais de Brito, no ICSTE, no âmbito da sua licenciatura em sociologia, 1975/80), tem pelo menos a sensibilidade cultural (ou socioantropológica, passe o palavrão) para olhar para o passado sem saudosismos nem miserabilismos, mas sabendo que a roda de um carro de bois, a enxada, a matança do porco, a salgadeira, a panela de ferro, a "mina" (nascente de água") ou os muros de suporte da Quinta de Candoz de antigamente (quando ainda se fazia o milho, o centeio e havia rendeiros...), todos esses "signos", todas essas "coisas & loisas" falam do "antigamente" da gente. Falam da nossa infância, falam do campo da nossa infância, falam das nossas pequenas vilas e cidades de provincia, falam dos nossos "usos e costumes", das formas de vida e de trabalho, dos nossos pais e avós... nomeadamente na regiáo de Entre Douro e Minho, a que se referem as fotos que reproduzimos acima.
Há dias lançámos o mote e o desafio (**)...Vamos lá "relembrar" algumas das "coisas & loisas do antigamente", ainda do tempo em que nascemos, crescemos, andámos na escola, começámos a trabalhar e a namorar (e alguns casaram) e, entretanto, fomos para a tropa e depois para a "nossa querida Guiné" (**)... com "licença para matar e morrer"...
Vamos abrir uma série para deixar espaço para essas "recordações avulsas", de modo a que não se percam na voragem do tempo... Interessam-nos sobretudo as nossas vivências (no campo, mas também nas vilas e cidades onde nos fizemos homens). Afinal, tudo isto faz parte do nosso ADN sociocultural, da nossa identidade, da nossa humanidade, da nossa portugalidade... São as nossas raízes "telúricas", não as podemos enjeitar, temos orgulho nelas: afinal nascemos num pequeno grande país, já milenar,,,
O pontapé de saída cabe ao nosso querido amigo e camarada, minhoto dos quatro costados, Joaquim Costa (***).
Vila Nova de Famalicão > c. meados dos anos de 1950 > A família Costa: da esquerda para a direita na fila de trás: José (pai) e Gracinda (Mãe), seguindo-se os irmãos: Maria, Avelino, Manuel (que esteve na Guiné), Eduardo (o columbófilo) e na fila da frente o João (o Don Juan da família) a Noémia e o Joaquim, o mais novo.
O dia de feira era um autêntico dia de festa, pelo que era o êxodo das aldeias para a vila na ânsia de encontrarem alguns produtos e artigos (escolares… e não só!) a bom preço, bem como um pouco de divertimento e “galhofa” fugindo, por algumas horas, às rotinas do trabalho diário. A feira era o sítio onde tudo se vendia e em que tudo podia acontecer:
- venda de gado apalavrado no recinto da feira e selado na taberna da Sara Barracoa à volta de uma malga de vinho tinto e montes de notas saltando de mão em mão. Durante toda a tarde nunca a malga era lavada : "Sara! lave com a mesma água !");
- onde se ferravam os cavalos enquanto os homens confraternizavam e reviam velhas amizades na Sara;
- onde se apregoavam e vendiam panfletos com histórias mirabolantes : um burro que nasceu com 3 cabeças e um homem que foi “morto matado” por um coice do cavalo e ressuscitou quando o cavalo se ajoelha junto do “morto matado” de lágrimas nos olhos de arrependimento;
- onde se jogava a vermelhinha (jogo com dois copos, manuseados com destreza, e um dado) com o homem em permanente fuga da GNR, montando e desmontando a banca percorrendo toda a feira;
- onde homens se zangavam, puxando do pau para uma boa refrega, com aplausos da assistência, a intervenção da GNR e as pazes na Sara Barracoa;
- onde sempre aparecia um grupo de saltimbancos com as suas habilidades, malabarismos, magias e o mais extraordinário o “cospe” fogo;
- onde não faltava, nos dias de maior calor, a “aguadeira”, com o seu cântaro de barro à cintura vendendo copos de água com limão, quente mas que apregoava como fresca;
- onde se vendia literalmente de tudo, desde todos os produtos agrícolas, roupa, móveis, ouro, animais e tudo o mais que se possa imaginar (...não esquecendo a banha da cobra) e em que as mulheres pagavam com o dinheiro embrulhado num lenço guardado em segurança entre os seios.
Depois de feirar: ver, apalpar, experimentar, regatear e pouco comprar, lá chega o momento do caçula. Depois da compra do material escolar: uma lousa, uma dúzia de “riscotes”, uma tabuada, um metro de serapilheira para fazer a sacola… e é tudo…, lá fomos às chancas.
Não era propriamente uma sapataria mas sim um artesão de calçado com sola de pau (Socas, chancas e outros artigos em madeira. O artesão era já conhecido, pois foi ele que calçou ao longo dos anos toda a família. Conhecedor dos hábitos da família começou logo a colocar vários pares de chancas para eu provar. Lá se chegou ao número que eu considerei o mais confortável. O artesão, que já conhecia o hábito da Gracinda diz: leva dois números acima não é D. Gracinda! Claro senhor António, sempre assim foi, pois eles crescem todos os dias e este é o último e não tem a quem deixar!
Sempre usei as chancas com com papeis ou trapos enfiados na biqueira para que as mesmas não me saíssem dos pés!
Nota: As tabernas da Sara Barracoa em Famalicão e a Bagoeira em Barcelos, poiso dos lavradores nos dias de feira, felizmente, ainda sobrevivem, com algumas adaptações aos novos tempos.
24 de setembro de 2023 às 12:27 (**)
(*) Vd. blogue A Nossa Quinta de Candoz > 22 de dezembro de 2005 > Augusto Pinto Spoares > A matança do porco de antigamente
(***) Vde. também postes de:
19 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23996: Origens do Tigre Azul: Nado e criado entre Famalicão e o Porto (Joaquim Costa, ex-fur mil, CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74) - Parte II: A mãe GracindaGuiné 61/74 - P24703: Facebook...ando (37): António Medina, um bravo nativo da ilha de Santo Antão, que foi fur mil na CART 527 (1963/65), trabalhou no BNU em Bissau (1967/74) e emigrou para os EUA, em 1980, fazendo hoje parte da grande diáspora lusófona - Parte II: um veterano do tempo da frada amarela, do capacete de aço e da pistola metralhadiora FB-
terça-feira, 26 de setembro de 2023
Guiné 61/74 - P24702: Recortes de Imprensa (139): Jornal "Voz da Guiné" (9): Reprodução das 3.ª e 4.ª páginas do número especial de 10 de Setembro de 1974 (Abílio Magro)
Caro Carlos:
Bom dia!
Conforme prometido, aqui estou a enviar-te as transcrições do jornal "Voz da Guiné" - edição especial (2 folhas - 4 páginas) de 10 de Setembro de 1974, data do reconhecimento de Portugal da República da Guiné como Estado soberano.
Bom trabalho, boa recuperação suspensória e boa semana.
Abraço
Abílio Magro
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Nota do editor
Último poste da série de 25 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24698: Recortes de Imprensa (139): Jornal "Voz da Guiné" (8): Reprodução da capa e transcrição da página 2 do número especial de 10 de Setembro de 1974 (Abílio Magro)
Guiné 61/74 - P24701: Os nossos seres, saberes e lazeres (592): António Carmo, artista plástico de renome, nosso camarada da Guiné (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Junho de 2023:
Queridos amigos,
Quem porfia sempre alcança. Demore a saber que este prestigiado artista plástico fizera comissão na Guiné, finalmente houve encontro, falei-lhe do nosso blogue, procurei fazê-lo sentir a importância do acervo que ele comporta, e António Carmo, caso eu não esteja a laborar em erro, é o único artista plástico que durante a sua comissão deixou obra, e a trabalhou depois, posso estar a ser precipitado no meu juízo mas o artista durante décadas subscreveu trabalhos de grande tensão, encontro alguma afinidade com a arte de Francisco Relógio, um lirismo e uma poética nestas figuras ultradimensionadas que nas últimas décadas se transmutaram para uma arte mais repousada, asseguram uma contemplação que nos lava a alma naquele eixo central em que se exalta a figura da mulher. Agora fico à espera que ele tenha uma nesga de tempo para conversar comigo e voltarmos à Guiné, onde ele deixou muitos trabalhos, resta saber por onde andam.
Um abraço do
Mário
António Carmo, artista plástico de renome, nosso camarada da Guiné
Mário Beja Santos
Conheci a arte de António Carmo por duas vias. Há uns bons anos, fiz parte de um júri referente a um concurso europeu do jovem consumidor, a reunião decorreu num sindicato de professores, e concluídos os trabalhos o anfitrião quis obsequiar os membros do júri oferecendo serigrafias. Chamou-me a atenção uma que me parecia falar de África, figuras femininas de rosto muito sereno que pareciam encaixadas umas nas outras como as bonecas russas, não hesitei na escolha; emoldurada, veio para o meu escritório, ficou entre um desenho do meu amigo Sá Nogueira e uma gravura de David Almeida. Bem a contemplava à procura da motivação do artista, nada feito. Numa digressão a Bruxelas, à saída da Gare Central encaminhei-me para a Rue de la Madeleine, uma artéria onde há várias galerias de arte e ao tempo uma livraria apaixonante, a Posada, hoje desaparecida, e é nisto que em frente à Galeria Alberto I vejo anunciada uma exposição de António Carmo, nela já pontificavam estas mulheres desmesuradas numa coloração vibrante, mas simultaneamente com efeitos oníricos e a inerente exigência de reflexão. No dia seguinte, fui visitar a exposição e pude ler numa brochura a impressionante carreira internacional do artista.
Só muito mais tarde se me assomou a referência de que fizera uma comissão na Guiné, guardei no meu caderninho de propósitos de futuro trabalho saber como podia encontrar com o artista, saber se ele estava disponível para contar a sua experiência na Guiné. E quis o acaso que na manhã de 20 de setembro ter uma reunião na Âncora Editora, fui ao site e deparou-se-me com o convite para esta exposição. Com o diretor discuti a publicação do livro de memórias do sonhador Vasco, que será publicado em Março próximo, conversas tidas, vai para dez anos, ao longo de meses, na sua casa em Fontanelas. Perguntei por António Carmo, ele sugeriu que aparecesse na apresentação do seu livro mais recente, "Encontros e Memórias", que se iria realizar nessa tarde na Casa dos Livros da Amadora. É nisto que toca o telefone para o editor, este amavelmente pôs-me em contacto com o António Carmo, sim, teria todo o gosto em falar do seu trabalho na Guiné, à tarde aprazaríamos uma reunião, finda a organização de uma nova exposição.
Antes de ele chegar já eu percorria o novo livro e chamou-me a atenção do prefácio de outro artista plástico, Rocha de Sousa: “Cada pintura é paisagem com gente em quadro falsamente imobilizado. Porque António Carmo não cessa de agitar o denso contacto dos corpos, entre flores e vagas névoas além ou ali. A densidade das cores irrealiza a representação de um povo comum: esse povo é alma das festas de aldeia. Mãos entrelaçadas, os rostos subindo a voz ou o cântico, os corpos vestidos de azul, vermelho, amarelos pontuados por verdes, o que de súbito se mistura em muita gente como flores de adorno, abertas à luz, soltando obliquidades da dança e do vento.” Uma observação que me parece corresponder ao trabalho de Carmo.
Iniciada a sessão, Álvaro Lobato Faria comentou os trabalhos e vivências dos últimos 20 anos, as referências dos textos ligados às exposições, observou em que constitui o processo criativo de Carmo, a pesquisa incessante destes corpos com falsa desmesura, tudo ganha numa poética dos sentidos à custa de uma vigorosa materialização da cor. Carmo comentou o que tem feito nos últimos 20 anos, abriu espaço para o debate, senti-me no direito de falar da Guiné, curiosamente a assistência revelou-se interessada com a narrativa do artista plástico. Esteve nas transmissões do quartel-general, começou a fazer uns desenhos, defendia-se com a ambiguidade das mensagens, os seus superiores revelaram entusiasmo, vieram as encomendas, deixou trabalhos em vários locais, escreveu na "Voz da Guiné", publicação do tempo, de tudo prometeu falar quando nos encontrássemos. E a propósito da nossa conversa telefónica no escritório do editor, mostrou o livro publicado na Editorial Caminho, deixou-me fotografar imagens dos seus desenhos feitos na Guiné, para mim estava ali a chave explicativa da serigrafia para a qual eu não tinha, para além de emoção, qualquer código de referência. Dá para perceber que é um desenho de uma África em estado de tensão, ele referiu explicitamente a forte atração que sentiu pela arte Nalu, julga ter plasmado alguns dos códigos desse género artístico nestes seus trabalhos em que a África está sempre presente.
Agora só me resta ficar a aguardar o dia em que nos iremos encontrar e falar dos trabalhos dos seus dois anos na Guiné. Voltou em 1972, no ano seguinte fez uma exposição na Galeria Opinião, ali se mostrava a guerra, ainda hoje Carmo não sabe como é que não teve problemas com a censura.
Fico agora a aguardar que o artista me receba e dê a conhecer as suas memórias com mais de meio século. Talvez valha a pena referir que é o único artista plástico que falou da Guiné daqueles tempos da luta de libertação. O que traz redobrado interesse para conhecermos a inspiração subjacente a todos estes trabalhos e a outros que ele vai mostrar.
Nota do editor
Último poste da série de 23 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24691: Os nossos seres, saberes e lazeres (591): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (121): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (12) (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P24700: Facebook...ando (36): António Medina, um bravo nativo da ilha de Santo Antão, que foi fur mil na CART 527 (1963/65), trabalhou no BNU em Bissau (1967/74) e emigrou para os EUA, em 1980, fazendo hoje parte da grande diáspora lusófona - Parte I: da Ribeira Grande a Mafra e Tavira, e de Lamego a Bissau
2. O António Medina tem mais de 3 dezenas de referências no nosso blogue, tendo-se apresentado a à Tabanca Grande, em 15/2/2014, nestes termos:
Regressei a Portugal para o Centro de Operações Especiais em Lamego. para depois seguir para a Guiné, fazendo parte da Companhia de Intervenção - Artilharia, CART 527.
O meu batismo de fogo foi em Fajonquito quando estávamos estacionados no Olossato.
(*) Último poste da série > 15 de setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24655: Facebook...ando (35): A "morança" do pessoal do 19º Pel Art (obus 14), em Buba, onde se comia o melhor petisco da região, búzios de cebolada (António Alves da Cruz, ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 45613/72, Bula, 1973/74)
Guiné 61/74 - P24699: Parabéns a você (2210): Amílcar Mendes, ex-1.º Cabo Comando da 38.ª CComandos (Guiné, 1972/74) e António Medina, ex-Fur Mil Art da CART 527 (Teixeira Pinto, 1963/65)
Nota do editor
Último poste da série de 23 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24690: Parabéns a você (2209): Toni Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16 (Mansoa, 1964/66)