Queridos amigos,
A galopada cultural culminou no Museu de Félicien Rops, santo do meu culto, merece o apodo do mais escandaloso artista do século XIX, mas a clientela nunca lhe faltou, admirava-lhe o génio mesmo com aquelas provocações pornográficas e satânicas. O museu de Namur possui um admirável acervo de todo o seu percurso, desde desenhador de humor a pintor consagrado. Seguiu-se uma viagem pelo Meuse, isto é, andarilhar pela margem, como se fôssemos em direção em Dinant, uns bons quilómetros a juntar à boa passeata por três museus, não posso dar sinal de desfalecimento, a meu lado vai uma aficionada por passeios pedestres, daqueles que podem absorver 30 quilómetros diários, ainda por cima por montes e vales, aguentei firme, guiado pela fé de que tinha uma grande repasto à minha espera e que dormiria um sono de pedra em Watermael-Boitsfort, como aliás aconteceu. No comboio, quando deitava contas à vida para sairmos cedo, de modo a chegarmos a Zaventem pouco depois das 9h, recebi no telemóvel a notícia de que o voo fora diferido para a noitinha. Ah é? Então levanto-me cedo e ainda vou cirandar um pouco por esta Bruxelas onde não sei quando regressarei, tenho dito.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (122):
Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (13)
Mário Beja Santos
Toda a moleja me saiu do corpo quando entrei no Museu Félicien Rops, no n.º 12 da rue Fumal, venho de novo encontrar-me com aquele que é alvo de um epíteto pouco lisonjeiro: o mais escandaloso artística do século XIX. O museu dá-nos uma panorâmica desde os seus trabalhos como caricaturista, desenhador em obras de romancistas e poetas consagrados, até aos seus trabalhos mais sulfurosos com destaque para Pornocrates, que os críticos consideram o seu mais genial trabalho. Rops nasceu em Namur, foi viajante insaciável (Hungria, Escandinávia, EUA, África do Norte, Espanha…), como muitos artistas da sua geração iniciou a sua atividade como desenhador de humor cedo mostrou estar em total dissonância com a moral da sua época, enveredou na corrente simbolista, de que se será um dos seus próceres mais desalinhados. Aos 18 anos, em Bruxelas, fundou um jornal onde realiza caricaturas irónicas e mordazes sobre as classes sociais, os artistas do seu tempo, a atmosfera política. Faz desenhos para uma obra de Charles Baudelaire. Instala-se em Paris, o seu tema de predileção passa a ser a mulher, no papel de dominador ou de cortesã. Atento ás ideologias sobre a decadência presentes na arte e na literatura, aborda sem qualquer receio a prostituição, o erotismo ou o satanismo. Numa série dedicada às Satânicas celebra a aliança entre mulher e Satã. Percorro deslumbrado esta série de obras, temas aparentemente mórbidos, por vezes uma pornografia descarada, há também as telas revelando praias ou panorâmicas de cidade onde se sente perfeitamente que Rops jamais desconsiderou o naturalismo, e momentos há que se percebe que o seu olhar vanguardista prepara a transição para o impressionismo. Que me acompanha olha para o relógio, está na hora de pelo Meuse, é só mais uma hora ou duas, depois tens um banquete à espera.
Pornocrates
Tratamento da mulher e do satanismo
A Agonia
Autorretrato
Félicien Rops
Estou ciente que em itinerâncias do passado já mostrei este rio, o Meuse é encantador na serenidade da sua correnteza e dá que pensar como o Homem tantas vezes obtém sucesso numa boa aliança entre o património natural e o edificado. Agora presto homenagem a quem me preparou este dia de tanta fruição. Quem aparece na imagem é uma amiga de quatro décadas, fizemos conhecimento em Veneza, eu como participante numa conferência, ela como intérprete. É a musa do romance Rua do Eclipse, foi ela que me inspirou a vida de uma intérprete e organizadora de um dossiê sobre a comissão militar de um tal Paulo Guilherme que andou pela Guiné entre 1968 e 1970. Ela é uma andarilha, telefono-lhe e está a caminho de uma viagem para atravessar os Estados Unidos da América, mesmo de ponta a ponta, ou partiu para a Úmbria, voltou há três dias para se integrar num grupo de passeios pedestres que vão até ao norte da Holanda. Insiste que eu fique uns dias em Namur, faremos passeios pedestres a valer, aí tenho medo, já não tenho coluna vertebral para grandes subidas e descidas, arranjo pretextos, mas não hesito em estar um dia inteiro na companhia desta andarilha que tem assinaturas para tudo quanto é ópera, música sinfónica, música de câmara, festivais. Obrigado por tudo, minha adorada amiga! E enquanto ela prepara o ágape vou perscrutar como está o seu jardim, não tem dúvida quanto aos cuidados, vou agora registar o que dá a primavera em flor, se há o conceito do tempo belga tido por instável, com sol, ventania, chuviscos, céu de chumbo, isto para já não falar das pesadas chuvadas de outono e inverno e dias de gelo, a verdade é que este jardim se engalanou para me receber.Todos os anos, deve ser puro acaso, aqui venho encontrar estas túlipas cor de rosa, estão viçosas, prometo voltar para o ano para que vocês ostentem flores tão acetinadas.
Quando vivi numa casinha de campo em Pedrógão Grande comprei um pequeno rododendro que, para espanto meu, cresceu sem dificuldade, nunca lhe faltei com água e limpeza da folhagem, era uma alegria ver os botões e depois a explosão de branco, parecia uma árvore pequena. Na posse de outro proprietário, há seis anos, a casa desmantelou-se no grande incêndio de Pedrógão Grande e aquele calor imenso chegou à horta e ao jardim, senti um baque no coração quando vi o meu rododendro enfarruscado, sem vida. Aqui em S. Marc, este rododendro suscita-me recordações da minha perda, sinto-me feliz porque a natureza tem sempre razão e sabe cobrar juros, o que se perde acolá ganha-se aqui.
Que grande surpresa, vi nascer este rododendro aqui ainda a moradia estava em construção e já a proprietária andava azafamada na organização do jardim, também ele se engalanou para receber quem o tem visto crescer ao longo dos anos.
É um bonito tapete de jacinto-uva, temos muito no nosso país, é um lilás muito delicado, creio que toda a Europa é bafejada por imensas variedades de jacintos, uma flor que tem a particularidade de ser o arauto da primavera.
Havia para ali tanta passarada que interpelei a dona da casa quanto aos porquês daquele corrupio no arvoredo do jardim, ela apontou para diversas caixinhas de alimento e fiquei por ali especado a ver a alegria esfusiante das aves a debicar e a bebericar e depois correr para outras paragens.
Entardeceu, chegou a hora de partir, a dona da casa insiste em levar-me a Bruxelas, declino, vou até à gare ferroviária de Namur, é uma viagem de cerca de uma hora, suspiramos por novo encontro, talvez no outono, na pior das hipóteses na primavera. No comboio consulto o telemóvel, sou surpreendido com uma mensagem da companhia aérea, o voo marcado para as 11h45 foi alterado as 21h10. Deito contas à vida: a minha mochila é leve (fora os trastes comprados na Feira da Ladra), e se eu aproveitasse a manhã e o princípio da tarde a cirandar pelo centro de Bruxelas, enfim, uma despedida em grande? Vamos ver o que o destino me reserva.
(continua)
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Notas do editor:
Vd. poste anterior de 23 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24691: Os nossos seres, saberes e lazeres (591): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (121): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (12) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 26 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24701: Os nossos seres, saberes e lazeres (592): António Carmo, artista plástico de renome, nosso camarada da Guiné (Mário Beja Santos)