Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 3 de julho de 2020
Guiné 61/74 - P21135: Bombolom XXIV (Paulo Salgado): Memória, em catadupas, as minhas memórias, que são, afinal, memórias dos outros
1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor dos livros, "Milando ou Andanças por África", "Guiné, Crónicas de Guerra e Amor" e "7 Histórias para o Xavier", com data de 30 de Junho de 2020:
Camaradas Editores do nosso Blogue
O meu Bombolom (não sei que número…).
Abro os “Diários da Guiné” do Mário Beja Santos, recebidos ontem, dia 29 de Junho de 2020, em tempo de pandemia. Vieram-me à memória, em catadupas, as minhas memórias, que são, afinal, memórias dos outros. Do Suleiman Seidi e do Nhindé Cudé, sargento e alferes de segunda linha, do Jam Fodé, comerciante próspero, e as crianças, e as mulheres, sobretudo a Kadi. Dos soldados, melhor dos soldadinhos (que éramos todos). Para falar deles todos não bastam os livros que escrevi, os livros que li, as narrativas de outros camaradas (gosto de usar a palavra camarada, já o afirmei aqui no blogue, carregada de um duplo sentimento: a partilha da caserna no que ela tem de físico – portanto uma conotação militar – e da noção imanente de companheiro, amigo, até do ponto de vista psicológico; ora, ainda valeria a pena falar no sentido de camarada de ideologia, mas isso nem sempre aconteceu, claro, salvo raras excepções). Para falar deles teria que os ouvir – e foi isso que fiz enquanto cooperante – indo em sua busca. Já estive com eles no meu “Guiné – Crónicas de Guerra e Amor”, e por lá passei no meu “Milando ou Andanças por África”. Até no livro infantil 7 Histórias para o Xavier, meu neto.
Mas hoje quero dizer, clamar, o quão satisfeito fiquei ao abrir o primeiro volume dos Diários. E logo me saltou a ideia de agradecer ao Mário Beja Santos: a delicada dedicatória, a nota explicativa, merecida, dirigida ao Luís Graça, e o comentário oportuno do Virgínio Briote. O que me chamou a atenção – desculpar-me-eis – foram as “leituras de guerra”. Apetece-me dizer: diz-me o que leste e dir-te-ei o que foi para ti o tempo de guerra, em termos de passar o tempo, o tempo vivido para lá das emboscadas e das cambanças e dos tarrafos e dos rios e das morteiradas e dos tiros. O Beja Santos, que me desculpe esta falha de não ter ainda comigo a obra; agora vou ler o sumo que vasto é, e que me trará – quem sabe? – alguma ideia nova.
Uma última palavra neste bombolom de hoje: para mim, a minha escrita está fortemente “agarrada” ao que passei em África. Lá, no Olossato, na Sintra da Guiné, como referiu há tempos o Beja Santos, povoação que visitámos os quatro, num Fiat 127 (!) em 1991, ele, a minha mulher, Conceição Salgado, a minha filha a Maria Paula, e eu, que por lá andou a fazer o 11.º ano e que, feito o doutoramento, quis uma viagem à Guiné, como prémio.
Um abraço. Um agradecimento ao historiador Mário Beja Santos.
Outro aos editores. Merecido. Pela persistência.
Paulo Salgado
30.06.2020
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Nota do editor
Último poste da série de 29 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20106: Bombolom IV (Paulo Salgado): Primeira Guerra e Guerra Colonial
Guiné 61/74 - P21134: Tabanca Grande (496): Gonçalo Inocentes, ex-fur mil, CCAÇ 423 e CCAV 488 / BCAV 490: de rendição individual (1964/65), natural de Angola, reformado da TAP, escritor... Senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 810
Guiné > Bissau > Brá > c. 1964/65 > o fur mil Gonçalo Inocentes, angolano, de rendição individual, tendo passado pela CCAÇ 423 e pela CCAV 488, entre 1964 e 1965
Fotos (e legendas): © Gonçalo Inocentes (20w0) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Mensagem Gonçalo Inocentes, que passa a ser o nosso grã-tabanqueiro nº 810
Data: terça, 23/06/2020, 14:47
Luís, encantado com a recepção (*).
Fui mobilizado em rendição individual em Abril de 64 como furriel. Fui direitinho da EPC [, Escola Prática de Cavalaria] em Santarém para a CCAÇ 423 em S. João.
Como eles já tinham um ano de comissão, eu fiquei e fui a seguir colocado na CCav 488 [Bissau e Jumbembem, 1963/65]. Quando eles cumpriram o tempo, eu já tinha mais de 16 meses, pelo que acabei por regressar com eles sem ter cumprido os dois anos. Tive sorte.
Regressei a Angola, onde nasci [, em 1940], para exercer a profissão de Regente Agrícola.
Quatro anos depois fiz a agulha e passei-me para a aviação. O meu primeiro trabalho foi voar para os quarteis do norte para fazer reabastecimentos. Acabei na linha aérea (TAAG) e, com a descolonização, acabei na TAP onde permaneci até ser apanhado por um enfarte cardíaco o que me levou para a reforma.
Aí comecei a escrever, editando a história da Escola Agrícola de Santarém. Depois a história da Sociedade Agrícola da Cassequel, onde trabalhei como técnico [, e onde também trabalhou o Amílcar Cabral, em 1956, como engenheiro Agrónomo].
Depois editei a história de um naufrágio, em 1724, na ilha de Porto Santo, de um galeão holandês.
Editei também um livro de arte e poesia em coautoria com uma artista, bem como um de poesia escrito por um tio falecido. Em espera e já escritos tenho a minha história na aviação, a influência das mulheres no meu percurso de vida, uma viagem desde o mar do Norte até Vilamoura em veleiro de 10 m, o restauro de um veleiro clássico.
Assim, meio resumido, aqui vai o meu percurso.
Como página do meu livro da Guiné, atendendo ao período que estamos agora a passar, envio um bem curioso, sem qualquer tiro.
Quanto a livros podem ser vistos alguns no Google em Gonçalo Inocentes (Matheos).
Como fotos segue uma da Guiné tirada no quartel de Brá e outra actual.
É bom ficar abrigado na grande tabanca.
Outro alfabravo
Gonçalo
2. Comentário do editor LG:
Camarada Gonçalo, depois de um primeiro poste (*), e da manifestação da tua vontade em ficar "abrigado" sob o nosso poilão (simbólico, as fraterno, mágico, protetor...), cabe-me completar a tua apresentação à Tabanca Grande, conforme mail que já te enviei ontem,
Passamos a ser, contigo, 810, os camaradas e amigos da Guiné... 10% infelizmente já não estão, fisicamente, entre, são aqueles bravos que já partiram para a última viagem...
Camaradas são os de armas, amigos são familiares de ex-combatentes (viúvas, filhos, irmãos), e alguns guineenses ou gente especialmente interessada pela Guiné e pela guerra de 1961/74 (investigadores, etc.).
Outro alfabravo
Gonçalo
2. Comentário do editor LG:
Camarada Gonçalo, depois de um primeiro poste (*), e da manifestação da tua vontade em ficar "abrigado" sob o nosso poilão (simbólico, as fraterno, mágico, protetor...), cabe-me completar a tua apresentação à Tabanca Grande, conforme mail que já te enviei ontem,
Passamos a ser, contigo, 810, os camaradas e amigos da Guiné... 10% infelizmente já não estão, fisicamente, entre, são aqueles bravos que já partiram para a última viagem...
Camaradas são os de armas, amigos são familiares de ex-combatentes (viúvas, filhos, irmãos), e alguns guineenses ou gente especialmente interessada pela Guiné e pela guerra de 1961/74 (investigadores, etc.).
Temos gente das 3 armas, e da grande maioria das unidades que passaram pelo CTIG. Partilhamos memórias (e afectos). Temos algumas regras, simples e consensuais, que é pressuposto aceitares tacitamente
Faço a tua apresentação, com os elementos que me mandaste, incluindo o pequeno excerto do teu livro ), que reproduzo abaixo).
Vai dando notícias e manda mais colaboração: se achares oportuno podemos abrir uma série para ti, com pequenas histórias / memórias de 1964/65... Ou outras, que achares por bem, de "outras guerras".
Boa saúde, boas escritas, e que os bons irãs da Tabanca Grande te protejam,
Luís Graça
PS - O alferes miliciano e escritor Armor Pires Mota, é também da tua da CCAV 488. Natural de Oliveira do Bairro, região da Bairrada, onde nasceu em 1939, honra-nos com a sua presença na Tabanca Grande onde tem quase uma centena de referências, Lembras-te dele?
Faço a tua apresentação, com os elementos que me mandaste, incluindo o pequeno excerto do teu livro ), que reproduzo abaixo).
Vai dando notícias e manda mais colaboração: se achares oportuno podemos abrir uma série para ti, com pequenas histórias / memórias de 1964/65... Ou outras, que achares por bem, de "outras guerras".
Boa saúde, boas escritas, e que os bons irãs da Tabanca Grande te protejam,
Luís Graça
PS - O alferes miliciano e escritor Armor Pires Mota, é também da tua da CCAV 488. Natural de Oliveira do Bairro, região da Bairrada, onde nasceu em 1939, honra-nos com a sua presença na Tabanca Grande onde tem quase uma centena de referências, Lembras-te dele?
O alferes Santos Andrade escreveu, em verso, a história do BCAV 490. Podes encontrar no blogue muitos postes com excertos do livrinho, cuja capa se reproduz (, imagem à direita). Lembras-te dele?
Temos apenas meia dúzia de referências à CCAÇ 423... Mais de 3 dezenas à CCAV 488. Vais gostar desta foto, abaixo reproduzida, que eu presumo tenha sido tirada em Jumbembém
Foto (e legenda): © Augusto Mota (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Pormenor da capa do Gonçalo Inocentes (Matheos), "O Cântico das Costureiras: crónicas de uma vida adiada, Guiné, 1964/65" (ModoCromia, no prelo).
3. Excerto do livro"O Cântico das Costureiras: crónicas de uma vida adiada, Guiné, 1964/65"
A Diarreia
A Diarreia
por Gonçalo Inocentes (Matheos)
As diarreias, Senhor!
As diarreias são um desequilíbrio que nos deixa completamente desequilibrados porque é como se estivéssemos a desfazer-nos de dentro para fora.
São péssimas quando aparecem e quando aparecem em certos lugares e ocasiões são simplesmente demolidoras.
Há diarreias singulares e surtos epidémicos.
Agora imagine-se um surto de epidémico de diarreia num grupo de combate, no decorrer de uma acção militar nas matas da Guiné. É surreal.
É surreal de facto. Homens caminhando em duas linhas, afastados como é norma, de arma aperrada prontinha a disparar e no silêncio da mata quando nem os bichos se manifestavam, há uma voz sumida que diz: “é agora!”.
Toda a coluna estaca, joelho no chão e o infeliz
afasta-se um metro para o lado, despe as calçasrápido porque não há tempo, observa bem não vá haver uma cobra por ali e, descarrega.
Não há papel e muito menos higiénico, mas há folhas de plantas que usadas com cuidado limpam e não deixam lá formigas.
E segue-se outro e outro, mais outro correndo a vez a todos mas diga-se: o inimigo nunca nos apanhou com as calças em baixo.
Vivi isto nas matas de Quinhará e deixámos para o inimigo um rastro diarreico, malcheiroso, desagradável até para os formigueiros. Autênticas minas que quando pisadas não matam, mas desmoralizam pra caramba.
E lembrei-me disto, porquê? De facto, desde a dita Guerra da Guiné que terminámos de forma vil, que a nossa Governação se tem caracterizado por uma diarreia epidémica e crónica. Quando a coisa é boa para o povo, arruína as contas do estado, logo é efémera. Quando ajuda o orçamento é penosa para os mesmos de sempre, logo é perene.
Até dá a sensação de que houve uma praga pregada que, quanto mais corrermos mais nos borramos e quanto mais pararmos, mais nos dói. (p. 49)
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As diarreias, Senhor!
As diarreias são um desequilíbrio que nos deixa completamente desequilibrados porque é como se estivéssemos a desfazer-nos de dentro para fora.
São péssimas quando aparecem e quando aparecem em certos lugares e ocasiões são simplesmente demolidoras.
Há diarreias singulares e surtos epidémicos.
Agora imagine-se um surto de epidémico de diarreia num grupo de combate, no decorrer de uma acção militar nas matas da Guiné. É surreal.
É surreal de facto. Homens caminhando em duas linhas, afastados como é norma, de arma aperrada prontinha a disparar e no silêncio da mata quando nem os bichos se manifestavam, há uma voz sumida que diz: “é agora!”.
Toda a coluna estaca, joelho no chão e o infeliz
afasta-se um metro para o lado, despe as calçasrápido porque não há tempo, observa bem não vá haver uma cobra por ali e, descarrega.
Não há papel e muito menos higiénico, mas há folhas de plantas que usadas com cuidado limpam e não deixam lá formigas.
E segue-se outro e outro, mais outro correndo a vez a todos mas diga-se: o inimigo nunca nos apanhou com as calças em baixo.
Vivi isto nas matas de Quinhará e deixámos para o inimigo um rastro diarreico, malcheiroso, desagradável até para os formigueiros. Autênticas minas que quando pisadas não matam, mas desmoralizam pra caramba.
E lembrei-me disto, porquê? De facto, desde a dita Guerra da Guiné que terminámos de forma vil, que a nossa Governação se tem caracterizado por uma diarreia epidémica e crónica. Quando a coisa é boa para o povo, arruína as contas do estado, logo é efémera. Quando ajuda o orçamento é penosa para os mesmos de sempre, logo é perene.
Até dá a sensação de que houve uma praga pregada que, quanto mais corrermos mais nos borramos e quanto mais pararmos, mais nos dói. (p. 49)
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 2 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21129: O nosso livro de visitas (205): Gonçalo Inocentes (Matheos), autor do livro "O Cântico das Costureiras: crónicas de uma vida adiada, Guiné, 1964/65", a lançar proximamente pela editora ModoCromia ...
(*) Vd. poste de 2 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21129: O nosso livro de visitas (205): Gonçalo Inocentes (Matheos), autor do livro "O Cântico das Costureiras: crónicas de uma vida adiada, Guiné, 1964/65", a lançar proximamente pela editora ModoCromia ...
(***) Vd. poste de 6 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16452: Tabanca Grande (493): Augusto Mota, grã-tabanqueiro nº 726... Especialista em material de segurança cripto (Quartel General, CTIG, Bissau, 1963/66), gerente comercial da Casa Campião em Bissau, agente do Totobola (SCML), agente e correspondente do "Expresso" e de outros jornais e revistas, livreiro, animador cultural, português da diáspora a viver no Brasil há mais de 40 anos...
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Guiné 61/74 - P21133: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (9): A funda que arremessa para o fundo da memória
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Junho de 2020:
Queridos amigos,
A relação entre Annette e Paulo Guilherme evolui à roda de uma guerra onde o protagonista fora participante, cerca de trinta anos atrás, a intérprete belga acedera, num jeito de cumplicidade sem quaisquer outras consequências, a ir acompanhando a história dessa experiência na guerra colonial, mas tudo rapidamente se transforma, ambos já não escondem a atração mútua, ela própria fala em saudades, a correspondência é copiosa e os telefonemas constantes, a expetativa de reencontro começa a ser tórrida e Paulo Guilherme desvela aqueles primeiros meses e o amor que se vai entranhando pelo Cuor e pelas suas gentes.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (9): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Chère Annette, que maravilha, estivemos ao telefone tanto tempo ontem à noite, deu para mitigar as muitas saudades que tenho de si. Estou contentíssimo com o que se está a passar na evolução dos seus filhos, oxalá que tenham sucesso nas opções tomadas. Vejo que tem viajado pouco, tudo concentrado em Bruxelas ou quase, temo que, quando dentro de breves dias, lhe anunciar as minhas disponibilidades para a visitar (aguardo a qualquer momento a marcação de uma reunião urgente entre um serviço da Comissão Europeia e a Direção da Associação Europeia de Consumidores, de que faço parte), me vá responder que está na Irlanda ou na Dinamarca nessa altura. Faço figas para que tal não aconteça. Gostei muito do seu entusiasmo quando lhe falei do livro mais recente que publiquei, enviei-lhe um punhado de fotografias de alguns dos meus amigos que me deram o gosto de estar presentes.
Antes de adormecer, a minha querida Bruxelas, aquele território que tão bem conhece, assomou-me à mente, guardo ainda uma boa memória fotográfica. Logo aquele hotel que durante muito tempo foi um dos meus recursos mais baratos quando o George V estava cheio, o Mirabeau, na Place Fontainas, a Praça é mesmo incaraterística, dá para uma zona muito simpática, de gente alternativa, no Verão há imensas esplanadas, costumo passar por aqui até chegar à Grand-Place e depois tomo o metro na Gare Centrale ou se tenho tempo vou a pé até aos locais da reunião. Já a dormitar, imagine as imagens que me afluíram, primeiro o Museu de Ixelles, ainda não tive a felicidade de lá ir consigo, que belas exposições e que acervo permanente, houve para ali um doador que colecionava os cartazes de Toulose-Lautrec e deixou este fabuloso património a este museu comunal que se pode gabar de ter um dos maiores acervos de tais obras fora da França. E já na mais completa sonolência, sem qualquer lógica na sequência das recordações, como costumo ir comprar coisas aos meus filhos na Rua Nova, paro a fazer algumas orações na Igreja de Nossa Senhora da Finisterra, o monumento barroco que tem uma sumptuosidade contida, onde me sinto bem em recolhimento, às vezes sento-me ali já de mala aviada e com sacos dos presentes para os meus entes queridos. Tudo isto serve para dizer, se ainda subsistem dúvidas no seu pensamento, que o seu país me é profundamente caro, a ele volto com o coração aos pulos, mesmo quando passo um domingo fechado a trabalhar na organização de aulas ou coisa que o valha. Como é evidente, agora que a Annette me quer ouvir, é ao pé de si que me sinto bem nesses ditosos fins-de-semana. Estar na sua presença é uma exultação à vida, uma promessa de futuro ridente.
Agora procuro dar-lhe por escrito informações complementares àqueles primeiros meses de Missirá, tempo de adaptação, mas de descoberta, e não lhe quero esconder que ia ganhando uma enorme confiança neste novo relacionamento com os militares e os civis. De tal forma, que jamais os esqueci, e todos os dias agradeço ao Bom Deus com eles ter convivido.
Havia pouco tempo em Missirá quando alguém matou esta temível cobra, uma surucucu. Aproveitei esta imagem recordatória para lhe comentar o fundo do que está a ver. São bidons encavalitados com chapas aplainadas, o objetivo é proteger quem por aqui circula no caso de uma flagelação. Por trás de mim está o primitivo balneário, logo que o contemplei pela primeira vez fiz a jura de o substituir rapidamente, quem ali entrava feria-se nas chapas cortantes, o cimento estava todo estalado onde púnhamos os pés, tomávamos banho calçados com sandálias de plástico, a água saía de um chuveiro com um cheiro oloroso a petróleo. Dentro de poucos meses, atravessaremos o rio Geba com um primoroso sistema de seis bidons interligados com três chuveiros, dando oportunidade a uma maior rotação no balneário, e depois de conversar com o régulo acordou-se que os homens e os jovens da população dele podiam usufruir, já que as mulheres e as crianças faziam a sua higiene quando iam lavar a roupa e trazer bilhas de água numa fonte chamada de Cancumba.
Tenho pena de não haver uma fotografia posterior com o novo balneário e os sanitários. Sim, os sanitários. Quando cheguei a Missirá, o Cabo Teixeira, com discrição, foi-me mostrar um local com vala para os nossos detritos sólidos e líquidos, não escondi a repugnância, muito em breve irá começar o meu assédio junto da delegação do Batalhão de Engenharia em Bambadinca, queria duas sanitas para criar dois compartimentos, só ganhei uma, o mesmo Cabo Teixeira concebeu a fossa, alisou-se o terreno, cimentou-se, fez-se porta. Eu sei que agora a Annette se vai rir com o que vou contar, um dia dirigi-me ao sanitário, vi a porta aberta e vi um dos meus soldados de pé, em cima da sanita, ele ficou confuso e eu aterrado, mais dia menos dia teríamos a sanita partida. Apercebendo-me que havia ali um problema cultural, e que a questão tinha os seus melindres, reuni a tropa e expliquei-lhes que se devia fazer um esforço para manter a higiene daquela instalação sobretudo não partir uma peça de cerâmica com todo o peso em cima, a vala ainda estava aberta e quem não pudesse ter o hábito de se sentar e de deixar o sanitário limpo depois de o usar, devia frequentar a vala. Para minha surpresa, a sanita mantinha-se irrepreensivelmente limpa depois de qualquer uso, um balde sempre cheio de água e um cesto para recolher papel usado. A higiene viera para ficar, os militares deixaram de ir à vala.
Annette, apresento-lhe um ângulo de Missirá, junto a uma porta que não é a principal, aí havia um cavalo de frisa, esta era a chamada Porta de Sansão, tinha torre de vigia, felizmente quando cheguei a Missirá já estava relativamente desbastada a área circundante, mas vi sempre com muita apreensão aqueles cajueiros onde se podiam instalar guerrilheiros na escuridão da noite. Mais tarde, alargou-se a distância, irei muitas vezes sair ou entrar pela Porta de Sansão, dava-nos a tranquilidade de caminhar a corta-mato, passava-se ao lado de Maná, mais adiante atravessava-se a estrada de Canturé e avançávamos pela região de Chicri, parecia um território lunar, umas formações em cogumelos, a laterite em pó, mesmo com as calças bem presas com atilhos, toda aquela poeira tinha o condão de subir até ao pescoço misturada com o suor, e assim caminhávamos até Mato de Cão, aproximadamente 12,5 quilómetros a partir desta Porta de Sansão. Como estamos em maré de intimidades, confesso-lhe que dava tudo para fazer este percurso debaixo de chuva torrencial ou com o sol inclemente, com aquelas ondas de calor que geram miragens como no deserto. E Chicri naquele tempo tinha um dos mais belos palmares, tantas vezes por ali passei e questionei como a natureza chega a ser esplendorosa em locais onde tanto sangue se derramou, como eu próprio experimentei.
Como é natural, procurei saber algo sobre esta família Soncó. Os comentários que me chegaram, o que pude ler, nunca me satisfez. Demorei muitos anos até chegar a um certo ponto da verdade. O avô do régulo Malam Soncó, de quem me irei transformar em irmão, dera muitas dores de cabeça às autoridades de Bolama, obrigou a que se tivesse feito uma expedição militar como jamais existira no Centro-Leste, governava Oliveira Muzanty, tudo se passou entre 1907 e 1908. Precisei de um dia ter acesso a um livro para conhecer Infali. Era uma família Beafada que viera do Forreá, e por isso se pode dizer que eram Beafadas mandinguizados, isto é, aceitaram a cultura Malinké e adotaram a sua língua.
Uma das pouquíssimas imagens de Infali Soncó, está sentado no centro, com uma arma na mão. Em breve, vai começar a guerra no Cuor, de que sairá derrotado, estamos em 1908. Fotografia retirada do álbum O Primeiro Fotógrafo de Guerra Português: José Henriques de Mello, por Alexandre Ramires e Mário Matos e Lemos, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008, com a devida vénia.
Despeço-me da Annette com esta fotografia, foi um dia muito feliz da minha vida. Informara ao anoitecer muito cedo, no dia seguinte, iríamos até Bambadinca. Tudo mentira, tinha que estar perto das 10 horas da manhã em Mato de Cão. Chamei em segredo o condutor Setúbal e disse-lhe para levar jerricãs em quantidade, o percurso seria o dobro, iríamos até Enxalé, uma completa surpresa. Estou de braço dado com Nhamô Soncó, ao lado do seu marido, Bacari Soncó, irmão do régulo Malam. A Nhamô leva a sua trouxa convencida de que vai para Bambadinca, deu gritos quando em Canturé virámos para Gambaná e fomos estrada fora até Mato de Cão. E mais gritos deu quando nos encaminhámos para o Enxalé. É uma história que mais tarde irei desenvolver quando esta pobre Nhamô for brutalmente ferida numa flagelação a Missirá, em junho de 1969.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 26 de Junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21111: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (8): A funda que arremessa para o fundo da memória
Queridos amigos,
A relação entre Annette e Paulo Guilherme evolui à roda de uma guerra onde o protagonista fora participante, cerca de trinta anos atrás, a intérprete belga acedera, num jeito de cumplicidade sem quaisquer outras consequências, a ir acompanhando a história dessa experiência na guerra colonial, mas tudo rapidamente se transforma, ambos já não escondem a atração mútua, ela própria fala em saudades, a correspondência é copiosa e os telefonemas constantes, a expetativa de reencontro começa a ser tórrida e Paulo Guilherme desvela aqueles primeiros meses e o amor que se vai entranhando pelo Cuor e pelas suas gentes.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (9): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Chère Annette, que maravilha, estivemos ao telefone tanto tempo ontem à noite, deu para mitigar as muitas saudades que tenho de si. Estou contentíssimo com o que se está a passar na evolução dos seus filhos, oxalá que tenham sucesso nas opções tomadas. Vejo que tem viajado pouco, tudo concentrado em Bruxelas ou quase, temo que, quando dentro de breves dias, lhe anunciar as minhas disponibilidades para a visitar (aguardo a qualquer momento a marcação de uma reunião urgente entre um serviço da Comissão Europeia e a Direção da Associação Europeia de Consumidores, de que faço parte), me vá responder que está na Irlanda ou na Dinamarca nessa altura. Faço figas para que tal não aconteça. Gostei muito do seu entusiasmo quando lhe falei do livro mais recente que publiquei, enviei-lhe um punhado de fotografias de alguns dos meus amigos que me deram o gosto de estar presentes.
Antes de adormecer, a minha querida Bruxelas, aquele território que tão bem conhece, assomou-me à mente, guardo ainda uma boa memória fotográfica. Logo aquele hotel que durante muito tempo foi um dos meus recursos mais baratos quando o George V estava cheio, o Mirabeau, na Place Fontainas, a Praça é mesmo incaraterística, dá para uma zona muito simpática, de gente alternativa, no Verão há imensas esplanadas, costumo passar por aqui até chegar à Grand-Place e depois tomo o metro na Gare Centrale ou se tenho tempo vou a pé até aos locais da reunião. Já a dormitar, imagine as imagens que me afluíram, primeiro o Museu de Ixelles, ainda não tive a felicidade de lá ir consigo, que belas exposições e que acervo permanente, houve para ali um doador que colecionava os cartazes de Toulose-Lautrec e deixou este fabuloso património a este museu comunal que se pode gabar de ter um dos maiores acervos de tais obras fora da França. E já na mais completa sonolência, sem qualquer lógica na sequência das recordações, como costumo ir comprar coisas aos meus filhos na Rua Nova, paro a fazer algumas orações na Igreja de Nossa Senhora da Finisterra, o monumento barroco que tem uma sumptuosidade contida, onde me sinto bem em recolhimento, às vezes sento-me ali já de mala aviada e com sacos dos presentes para os meus entes queridos. Tudo isto serve para dizer, se ainda subsistem dúvidas no seu pensamento, que o seu país me é profundamente caro, a ele volto com o coração aos pulos, mesmo quando passo um domingo fechado a trabalhar na organização de aulas ou coisa que o valha. Como é evidente, agora que a Annette me quer ouvir, é ao pé de si que me sinto bem nesses ditosos fins-de-semana. Estar na sua presença é uma exultação à vida, uma promessa de futuro ridente.
Agora procuro dar-lhe por escrito informações complementares àqueles primeiros meses de Missirá, tempo de adaptação, mas de descoberta, e não lhe quero esconder que ia ganhando uma enorme confiança neste novo relacionamento com os militares e os civis. De tal forma, que jamais os esqueci, e todos os dias agradeço ao Bom Deus com eles ter convivido.
Praça Fontanais
Museu Comunal de Ixelles
Igreja de Nossa Senhora da Finisterra
Havia pouco tempo em Missirá quando alguém matou esta temível cobra, uma surucucu. Aproveitei esta imagem recordatória para lhe comentar o fundo do que está a ver. São bidons encavalitados com chapas aplainadas, o objetivo é proteger quem por aqui circula no caso de uma flagelação. Por trás de mim está o primitivo balneário, logo que o contemplei pela primeira vez fiz a jura de o substituir rapidamente, quem ali entrava feria-se nas chapas cortantes, o cimento estava todo estalado onde púnhamos os pés, tomávamos banho calçados com sandálias de plástico, a água saía de um chuveiro com um cheiro oloroso a petróleo. Dentro de poucos meses, atravessaremos o rio Geba com um primoroso sistema de seis bidons interligados com três chuveiros, dando oportunidade a uma maior rotação no balneário, e depois de conversar com o régulo acordou-se que os homens e os jovens da população dele podiam usufruir, já que as mulheres e as crianças faziam a sua higiene quando iam lavar a roupa e trazer bilhas de água numa fonte chamada de Cancumba.
Tenho pena de não haver uma fotografia posterior com o novo balneário e os sanitários. Sim, os sanitários. Quando cheguei a Missirá, o Cabo Teixeira, com discrição, foi-me mostrar um local com vala para os nossos detritos sólidos e líquidos, não escondi a repugnância, muito em breve irá começar o meu assédio junto da delegação do Batalhão de Engenharia em Bambadinca, queria duas sanitas para criar dois compartimentos, só ganhei uma, o mesmo Cabo Teixeira concebeu a fossa, alisou-se o terreno, cimentou-se, fez-se porta. Eu sei que agora a Annette se vai rir com o que vou contar, um dia dirigi-me ao sanitário, vi a porta aberta e vi um dos meus soldados de pé, em cima da sanita, ele ficou confuso e eu aterrado, mais dia menos dia teríamos a sanita partida. Apercebendo-me que havia ali um problema cultural, e que a questão tinha os seus melindres, reuni a tropa e expliquei-lhes que se devia fazer um esforço para manter a higiene daquela instalação sobretudo não partir uma peça de cerâmica com todo o peso em cima, a vala ainda estava aberta e quem não pudesse ter o hábito de se sentar e de deixar o sanitário limpo depois de o usar, devia frequentar a vala. Para minha surpresa, a sanita mantinha-se irrepreensivelmente limpa depois de qualquer uso, um balde sempre cheio de água e um cesto para recolher papel usado. A higiene viera para ficar, os militares deixaram de ir à vala.
Annette, apresento-lhe um ângulo de Missirá, junto a uma porta que não é a principal, aí havia um cavalo de frisa, esta era a chamada Porta de Sansão, tinha torre de vigia, felizmente quando cheguei a Missirá já estava relativamente desbastada a área circundante, mas vi sempre com muita apreensão aqueles cajueiros onde se podiam instalar guerrilheiros na escuridão da noite. Mais tarde, alargou-se a distância, irei muitas vezes sair ou entrar pela Porta de Sansão, dava-nos a tranquilidade de caminhar a corta-mato, passava-se ao lado de Maná, mais adiante atravessava-se a estrada de Canturé e avançávamos pela região de Chicri, parecia um território lunar, umas formações em cogumelos, a laterite em pó, mesmo com as calças bem presas com atilhos, toda aquela poeira tinha o condão de subir até ao pescoço misturada com o suor, e assim caminhávamos até Mato de Cão, aproximadamente 12,5 quilómetros a partir desta Porta de Sansão. Como estamos em maré de intimidades, confesso-lhe que dava tudo para fazer este percurso debaixo de chuva torrencial ou com o sol inclemente, com aquelas ondas de calor que geram miragens como no deserto. E Chicri naquele tempo tinha um dos mais belos palmares, tantas vezes por ali passei e questionei como a natureza chega a ser esplendorosa em locais onde tanto sangue se derramou, como eu próprio experimentei.
Como é natural, procurei saber algo sobre esta família Soncó. Os comentários que me chegaram, o que pude ler, nunca me satisfez. Demorei muitos anos até chegar a um certo ponto da verdade. O avô do régulo Malam Soncó, de quem me irei transformar em irmão, dera muitas dores de cabeça às autoridades de Bolama, obrigou a que se tivesse feito uma expedição militar como jamais existira no Centro-Leste, governava Oliveira Muzanty, tudo se passou entre 1907 e 1908. Precisei de um dia ter acesso a um livro para conhecer Infali. Era uma família Beafada que viera do Forreá, e por isso se pode dizer que eram Beafadas mandinguizados, isto é, aceitaram a cultura Malinké e adotaram a sua língua.
Uma das pouquíssimas imagens de Infali Soncó, está sentado no centro, com uma arma na mão. Em breve, vai começar a guerra no Cuor, de que sairá derrotado, estamos em 1908. Fotografia retirada do álbum O Primeiro Fotógrafo de Guerra Português: José Henriques de Mello, por Alexandre Ramires e Mário Matos e Lemos, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008, com a devida vénia.
Despeço-me da Annette com esta fotografia, foi um dia muito feliz da minha vida. Informara ao anoitecer muito cedo, no dia seguinte, iríamos até Bambadinca. Tudo mentira, tinha que estar perto das 10 horas da manhã em Mato de Cão. Chamei em segredo o condutor Setúbal e disse-lhe para levar jerricãs em quantidade, o percurso seria o dobro, iríamos até Enxalé, uma completa surpresa. Estou de braço dado com Nhamô Soncó, ao lado do seu marido, Bacari Soncó, irmão do régulo Malam. A Nhamô leva a sua trouxa convencida de que vai para Bambadinca, deu gritos quando em Canturé virámos para Gambaná e fomos estrada fora até Mato de Cão. E mais gritos deu quando nos encaminhámos para o Enxalé. É uma história que mais tarde irei desenvolver quando esta pobre Nhamô for brutalmente ferida numa flagelação a Missirá, em junho de 1969.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 26 de Junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21111: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (8): A funda que arremessa para o fundo da memória
Guiné 61/74 - P21132: Os nossos médicos (88): Fernando António Maymone Martins, especialista de cardiologia pediátrica, ex-alf mil, CCS/BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, e HM 241, Bissau, 1968/70
Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > CCS / BCAÇ 2845 (1968/70) > Equipa dos serviços de saúde no dia de abertura da enfermaria > Destaque para os alferes médicos Fernando António Maymone Martins e Maxinino Cunha, ambos irão também trabalhar na 2ª parte da comissão no HM 241, em Bissau.
Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > CCS / BCAÇ 2845 (1968/70) > Equipa dos serviços de saúde: da esquerda para a direita, de pé: Maymone Martins (alferes), Garrido (furriel), Albino e Garcia; em primeiro plano, Tónio, Borges e Constantino (1º cabo)
Fotos do álbum do Albino Silva, ex-sold maqueiro, CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70) (*).
Fotos (e legendas): © Albino Silva (2011) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Não temos, infelizmente, falado aqui o suficiente dos nossos serviços de saúde militares, dos nossos médicos, dos nossos enfermeiros, dos nossos maqueiros...
É minha intenção fazer, proximamente, uma nota de leitura de um capítulo de um livro em que também participei (Veloso, A.J., Mora, L.D.,
Leitão, H., eds. – Médicos e sociedade: para uma história da
medicina em Portugal no século XX. Lisboa: By The Book, 2017, 863 pp.).
O capítulo a que me refiro, sobre saúde militar, é o "34. A Guerra Colonial", da autoria de Carlos Vieira Reis, pp. 492-505. O autor é coronel médico.
Continuamos sem saber, em rigor, quantos médicos, oficiais milicianos ou do quadro, passaram pelo TO da Guiné, entre 1961 e 1974. O autor escreve que "os médicos recém-formados não bastavam para preencher as necessidades". E teve mesmo que se recorrer à mobilização, para certas especialidades, de médicos com mais de 45 anos. Um dado estatístico muito importante é o número de evacuações dos três TO para a metrópole e que foi de cerca de 30 mil, estando a maioria dos processos clínicos no Arquivo Geral do Exército.
Continuamos sem saber, em rigor, quantos médicos, oficiais milicianos ou do quadro, passaram pelo TO da Guiné, entre 1961 e 1974. O autor escreve que "os médicos recém-formados não bastavam para preencher as necessidades". E teve mesmo que se recorrer à mobilização, para certas especialidades, de médicos com mais de 45 anos. Um dado estatístico muito importante é o número de evacuações dos três TO para a metrópole e que foi de cerca de 30 mil, estando a maioria dos processos clínicos no Arquivo Geral do Exército.
Dalguns dos nossos médicos temos aqui falado. O descritor "Os nossos médicos" tem, apesar de tudo, 235 referências.
Um desses profissionais que foi mobilizado para o CTIG, e que queremos hoje homenagear, foi o dr. Fernando António Maymone Martins: passou pela CCS/BCAÇ 2845, mas também pelo HM 241, Bissau, nos anos de 1968/70.
Sobre este nosso camarada, que tem participado nalguns convívios do seu batalhão, recolhemos mais os seguintes elementos, a partir da Net, e nomeadamente da rede Linkedin:
• Especialista Sénior em Cardiologia Pediátrica e Cardiologia das Cardiopatias Congénitas
• Director do Serviço de Cardiologia Pediátrica do Hospital de Santa Cruz, 1987 - 2010
• Director Clínico, Hospital de Santa Cruz (2003-2004).
• Presidente do Conselho de Administração da Fundação Mater Timor
• Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Ajuda de Berço
• Fellow do American College of Cardiology
• Fellow da Sociedade Europeia de Cardiologia
• Presidente da Associação Europeia de Cardiologia Pediátrica (AEPC, 1995-1998)
• Presidente da Associação dos Médicos Católicos Portugueses (2000- 2004).
Está reformado do SNS mas mantém consultório privado em Carnaxide. Sabemos que em 1974/76 beneficiou de uma bolsa Fulbright, na categoria de estudante, na área de Cardiologia Pediátrica, realizada no Cook County Hospital, Chicago, Illinois, EUA.
NA RTP Arquivos pode ser visto um vídeo, de 2 de junho de 1990, em entrevista do jornallista José Eduardo Moniz, em estúdio, ao dr. Maymone Martins, "cirurgião, responsável pela nova técnica de intervenção para a correção de deficiências cardíacas, o cateterismo".
É uma homem de causas, que incluem, por exemplo, a cooperação com Timor Leste na área da saúde materno-infantil.
Naturalmente que gostaríamos que ele aceitasse o convite para integrar a nossa Tabanca Grande. Dessas diligências encarregamos o Albino Silva para levar a carta a Garcia...
2. Memória do serviço de saúde comandado pelo alf mil médico Maymone Martins, CCS/BCAÇ 2845 2845(Teixeira Pinto, 1968/70)
por Albino Silva (**)
(...) Comecei meu trabalho na Enfermaria e todos os dias estava de serviço pois ficava sempre na vez de outros camaradas porque gostava daquele serviço ao lado do Médico do Batalhão, Dr. Fernando António Maymone Martins, Alferes, que dava consultas à tropa até às 13h00 e depois ia para o Hospital Civil dar consultas e outros serviços com pequenas cirurgias, aos civis.
O meu serviço diário era logo de manhã tomar apontamentos daqueles que iam às consultas, depois chamar pelos mesmos ao gabinete do médico e ajudar na Enfermaria a atender o pessoal, pois além da tropa, que era muita, também os civis lá iam receber tratamento, e por isso era muito o trabalho para quem estava de serviço. Basta que em média por dia davam-se 300 injeções e havia feridas para serem tratadas , e ainda o pessoal lá internado e uns à espera de evacuação para Bissau.
Era muito o trabalho e ainda a pedido do Furriel Enfermeiro Garrido, fazia a requisição de Material para Bissau, que depois de recebido o ia conferir, mas eu gostava bem do serviço que ia fazendo e assim foi durante 13 meses.
Depois comecei a alinhar com um Pelotão da Companhia de Caçadores 2313, que era comandado pelo Capitão Penim, em saídas para o mato, em escoltas e para a Ação Psicológica, em picagem de estradas com um Pelotão da Companhia 2368, do meu Batalhão, e também em operações com este pelotão.
Para substituir o 1.º Cabo Enfermeiro Vitorino da 2368, que havia sido evacuado para Bissau, fui um mês para o destacamento de Caió, regressando depois a Teixeira Pinto à minha Enfermaria para de imediato sair com uma Secção da 2313 para uma Ação Psicológica lá para as Tabancas de Calequisse e Caió. (...)
3. Natal debaixo de fogo na Guiné. A memória do médico Fernando Maymone Martins
Rádio Renascença, 23 dez 2011 • Sofia Vieira (Reproduzido com a devia vénia...)
O Natal vivido no essencial, no meio do mato, durante a guerra colonial na Guiné, em 1968 é o testemunho deixado por Fernando Maymone Martins. Na altura, era um jovem médico militar, delegado de saúde, numa povoação que julgava segura.
Poucos meses antes, decidiu vir a Lisboa, em Outubro, e casou com Madalena. Em Novembro, levou-a para a Guiné, para viverem numa povoação que se chamava Teixeira Pinto.
Só que, em vésperas de Natal, foram alvo de ataque. Fernando Maymone Martins teve de deixar a mulher sozinha, porque teve de ir fazer uma revista de saúde a militares portugueses. “Durante essa semana, Teixeira Pinto foi alvo de ataque e a Madalena passou uma noite inteira debaixo de fogo”.
“A coluna em que eu fui também foi atacada, portanto, tivemos muito vivamente, e isto nas vésperas do Natal de 68, a percepção da vulnerabilidade da situação em que nos encontrávamos e do risco de nos acontecer alguma coisa, inclusive, de morrermos!”, recorda.
Fernando Maymone Martins lembra ainda que nessa época os sogros tinham enviado para a Guiné um pequeno presépio, com “figuras muito bonitas” que ainda hoje guardam “e que foi verdadeiramente o que nos ajudou a criar o ambiente de Natal na Guiné. Sem dúvida, com a percepção de que no meio do mato na Guiné, com a vulnerabilidade inerente aos ataques, estávamos verdadeiramente a ser reconduzidos àquilo que o Natal tem de mais importante – comemorar o nascimento de Jesus”.
O médico recorda também que, um ano depois, já com um filho, comemoraram o segundo Natal na Guiné. Dois momentos que o marcaram e à sua mulher Madalena para o resto da vida.
_______________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 1 de julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8495: Os nossos médicos (32): Fotos do Serviço de Saúde do BCAÇ 2845 (Albino Silva)
(**) Vd. poste de 14 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20856: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (1): Mobilizado para a Guiné, destino: Teixeira Pinto
Vd. também poste de 11 de agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11930: Os nossos médicos (67): Maximino [José Vaz da] Cunha, natural de Chaves, ex-alf mil médico, BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto) e HM 241 (Bissau, 1968/70)
Um desses profissionais que foi mobilizado para o CTIG, e que queremos hoje homenagear, foi o dr. Fernando António Maymone Martins: passou pela CCS/BCAÇ 2845, mas também pelo HM 241, Bissau, nos anos de 1968/70.
Sobre este nosso camarada, que tem participado nalguns convívios do seu batalhão, recolhemos mais os seguintes elementos, a partir da Net, e nomeadamente da rede Linkedin:
• Especialista Sénior em Cardiologia Pediátrica e Cardiologia das Cardiopatias Congénitas
• Director do Serviço de Cardiologia Pediátrica do Hospital de Santa Cruz, 1987 - 2010
• Director Clínico, Hospital de Santa Cruz (2003-2004).
• Presidente do Conselho de Administração da Fundação Mater Timor
• Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Ajuda de Berço
• Fellow do American College of Cardiology
• Fellow da Sociedade Europeia de Cardiologia
• Presidente da Associação Europeia de Cardiologia Pediátrica (AEPC, 1995-1998)
• Presidente da Associação dos Médicos Católicos Portugueses (2000- 2004).
Está reformado do SNS mas mantém consultório privado em Carnaxide. Sabemos que em 1974/76 beneficiou de uma bolsa Fulbright, na categoria de estudante, na área de Cardiologia Pediátrica, realizada no Cook County Hospital, Chicago, Illinois, EUA.
NA RTP Arquivos pode ser visto um vídeo, de 2 de junho de 1990, em entrevista do jornallista José Eduardo Moniz, em estúdio, ao dr. Maymone Martins, "cirurgião, responsável pela nova técnica de intervenção para a correção de deficiências cardíacas, o cateterismo".
É uma homem de causas, que incluem, por exemplo, a cooperação com Timor Leste na área da saúde materno-infantil.
Naturalmente que gostaríamos que ele aceitasse o convite para integrar a nossa Tabanca Grande. Dessas diligências encarregamos o Albino Silva para levar a carta a Garcia...
2. Memória do serviço de saúde comandado pelo alf mil médico Maymone Martins, CCS/BCAÇ 2845 2845(Teixeira Pinto, 1968/70)
por Albino Silva (**)
(...) Comecei meu trabalho na Enfermaria e todos os dias estava de serviço pois ficava sempre na vez de outros camaradas porque gostava daquele serviço ao lado do Médico do Batalhão, Dr. Fernando António Maymone Martins, Alferes, que dava consultas à tropa até às 13h00 e depois ia para o Hospital Civil dar consultas e outros serviços com pequenas cirurgias, aos civis.
O meu serviço diário era logo de manhã tomar apontamentos daqueles que iam às consultas, depois chamar pelos mesmos ao gabinete do médico e ajudar na Enfermaria a atender o pessoal, pois além da tropa, que era muita, também os civis lá iam receber tratamento, e por isso era muito o trabalho para quem estava de serviço. Basta que em média por dia davam-se 300 injeções e havia feridas para serem tratadas , e ainda o pessoal lá internado e uns à espera de evacuação para Bissau.
Era muito o trabalho e ainda a pedido do Furriel Enfermeiro Garrido, fazia a requisição de Material para Bissau, que depois de recebido o ia conferir, mas eu gostava bem do serviço que ia fazendo e assim foi durante 13 meses.
Depois comecei a alinhar com um Pelotão da Companhia de Caçadores 2313, que era comandado pelo Capitão Penim, em saídas para o mato, em escoltas e para a Ação Psicológica, em picagem de estradas com um Pelotão da Companhia 2368, do meu Batalhão, e também em operações com este pelotão.
Para substituir o 1.º Cabo Enfermeiro Vitorino da 2368, que havia sido evacuado para Bissau, fui um mês para o destacamento de Caió, regressando depois a Teixeira Pinto à minha Enfermaria para de imediato sair com uma Secção da 2313 para uma Ação Psicológica lá para as Tabancas de Calequisse e Caió. (...)
3. Natal debaixo de fogo na Guiné. A memória do médico Fernando Maymone Martins
Rádio Renascença, 23 dez 2011 • Sofia Vieira (Reproduzido com a devia vénia...)
O médico Fernando Maymone Martins fecha a semana que a Renascença dedicou a testemunhos de quem viveu o Natal em situações difíceis, mas com lugar para a esperança.
O Natal vivido no essencial, no meio do mato, durante a guerra colonial na Guiné, em 1968 é o testemunho deixado por Fernando Maymone Martins. Na altura, era um jovem médico militar, delegado de saúde, numa povoação que julgava segura.
Poucos meses antes, decidiu vir a Lisboa, em Outubro, e casou com Madalena. Em Novembro, levou-a para a Guiné, para viverem numa povoação que se chamava Teixeira Pinto.
Só que, em vésperas de Natal, foram alvo de ataque. Fernando Maymone Martins teve de deixar a mulher sozinha, porque teve de ir fazer uma revista de saúde a militares portugueses. “Durante essa semana, Teixeira Pinto foi alvo de ataque e a Madalena passou uma noite inteira debaixo de fogo”.
“A coluna em que eu fui também foi atacada, portanto, tivemos muito vivamente, e isto nas vésperas do Natal de 68, a percepção da vulnerabilidade da situação em que nos encontrávamos e do risco de nos acontecer alguma coisa, inclusive, de morrermos!”, recorda.
Fernando Maymone Martins lembra ainda que nessa época os sogros tinham enviado para a Guiné um pequeno presépio, com “figuras muito bonitas” que ainda hoje guardam “e que foi verdadeiramente o que nos ajudou a criar o ambiente de Natal na Guiné. Sem dúvida, com a percepção de que no meio do mato na Guiné, com a vulnerabilidade inerente aos ataques, estávamos verdadeiramente a ser reconduzidos àquilo que o Natal tem de mais importante – comemorar o nascimento de Jesus”.
O médico recorda também que, um ano depois, já com um filho, comemoraram o segundo Natal na Guiné. Dois momentos que o marcaram e à sua mulher Madalena para o resto da vida.
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 1 de julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8495: Os nossos médicos (32): Fotos do Serviço de Saúde do BCAÇ 2845 (Albino Silva)
(**) Vd. poste de 14 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20856: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (1): Mobilizado para a Guiné, destino: Teixeira Pinto
(***) Último poste da série > 11 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19574: Os nossos médicos (87): José Luís Champalimaud (Nova Lisboa / Huambo, Angola, 1939 - Lisboa, 1996): foi médico do meu BCAÇ 3880, em Zemba, por um mês, em abril de 1973, e um dos autores da descoberta do VIH 2 em 1986 (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-al mil at inf, CCCAÇ 3535, Zemba e Ponte de Rádi, 1972/74)
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O meu Natal no mato,
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Guiné 61/74 - P21131: Parabéns a você (1833): António Nobre, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2464 (Guiné, 1969/70)
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Nota do editor
Último poste da série de 1 de Julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21125: Parabéns a você (1832): Silvério Lobo, ex-Soldado Mecânico Auto do BCAÇ 3852 (Guiné, 1971/73)
Nota do editor
Último poste da série de 1 de Julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21125: Parabéns a você (1832): Silvério Lobo, ex-Soldado Mecânico Auto do BCAÇ 3852 (Guiné, 1971/73)
quinta-feira, 2 de julho de 2020
Guiné 61/74 - P21130: Memórias cruzadas nas 'matas' da região do Oio-Morés em 1963/64 (Jorge Araújo) - II (e última) Parte
Foto 4 – Cutia (Região do Óio) - "Ronco" da CART 564 [Out63-Out65]. (Foto do álbum do fur mil Leopoldo Correia, da CART 564), com a devida vénia. In: https://rumoafulacunda.wordpress.com/mansoa/cutia/
Foto 5 – Cutia (Região do Óio) - Estrada principal para Cutia. (Foto do álbum do fur mil Leopoldo Correia, da CART 564, 1963/65), com a devida vénia. In: https://rumoafulacunda.wordpress.com/mansoa/cutia/
Foto 6 – Mansoa (Região do Óio) - Dois elementos da CCAÇ 413 (1963/65), junto à placa toponímica que indicavam algumas das localidades mais próximas para Oeste (Nhacra, a 28 km e Bissau, a 49 km. Para Leste: Enxalé, a 50 km; Bambadinca, a 65 km e Bafatá, a 93 km. – Foto do livro «Nos celeiros da Guiné», de Albano Dias Costa e José Sá-Chaves, com a devida vénia – P3066.
O nosso coeditor Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger,
CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, indigitado régulo da Tabanca de Almada e da Tabanca dos Emiratos; tem 256 registos no nosso blogue.
MEMÓRIAS CRUZADAS
NAS 'MATAS' DA REGIÃO DO ÓIO-MORÉS EM 1963-1964
- O CASO DE ENCHEIA -
II (e última) PARTE
Mapa da região do Óio, com indicação de alguns dos locais de "memórias cruzadas".
Em todos eles, e em todas as gerações de combatentes, com início em 1963, ocorreram factos marcantes para o resto da vida… (de todas as vidas)… em que alguns não tiveram direito a "viagem" de regresso... Lamentavelmente!
► Continuação do P21095 (21.06.20) (*)
3. - AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO DOS COMANDANTES DE BASES
Os objectivos da missão realizada por Bebiano Cabral d'Almada, dirigente do Bureau de Dakar, entre 12 de Janeiro e 05 de Fevereiro de 1964, incluía contactos com as estruturas partidárias organizadas em território da República do Senegal, na região de Casamansa, e um melhor conhecimento sobre o desenvolvimento da luta no interior da Guiné, através da visita a algumas das bases existentes na região do Óio-Morés.
No entanto, um outro propósito intrínseco aos objectivos supra, passava pela avaliação do desempenho versus comportamento dos diferentes comandantes das bases visitadas, que o relatório dá conta. A justificação para esse desiderato é explicada pelo autor do documento nos seguintes termos:
"Sem qualquer ideia de crítica ou espírito de maldade, mas na obrigação estrita do cumprimento do dever, cumpre-me deixar aqui escrito, certas informações sobre alguns responsáveis, colhidas nas bases visitadas." (Op. Cit., p. 16)
3.1 - INFORMAÇÕES SOBRE DIVERSOS CAMARADAS
● Camarada Mamadu Indjai – responsável da base de Fajonquito [Óio] e da recente base criada em Maqué [viria a morrer em 1973, na região do Boé, fuzilado pelos seus camaradas, por estar envolvido, em Conacri, na conspiração que levou ao assassinato de Amílcar Cabral (1924-1973)].
Não só na organização dos grupos de rapazes e raparigas existentes nas suas bases, como ainda pela muita coragem que tem sempre demonstrado em constantes combates travados contra os colonialistas portugueses, não parando além disso inactivo na sua base, sempre à procura de entrar em acção, quer em terra, como ainda procurando inutilizar as vedetas inimigas em fiscalização no rio, tendo ainda agora, permanecido durante cinco dias vigiando o rio Cacheu, perto de Iador, para ver se conseguia neutralizar a acção duma vedeta que ultimamente tem rondado aquelas paragens, não tendo infelizmente de satisfazer o seu desejo.
● Camarada Leandro Vaz – responsável da base de Dando
Tem uma boa organização na sua base, mas isso não é suficiente, em virtude de não se deslocar da base para procurar entrar em acção contra o inimigo e nem sequer em serviço de rotina de ronda.
● Camarada Augusto Pique –
Encarregado duma base nova a poucos quilómetros de Dando, sob a responsabilidade do camarada Leandro Vaz, tem demonstrado sempre muita coragem e a melhor vontade no desempenho do seu cargo.
● Camarada Paulo Santi I (1º) –
Encarregado duma base recentemente formada, sob a responsabilidade do camarada Leandro Vaz e situada entre Mansoa e Dando, tem desempenhado as suas funções a contento do seu responsável.
● Camarada Corca Só – responsável da base de Sansabato
Demonstrou a sua coragem no ataque no dia 01 do corrente mês (Fev'64), contra os colonialistas, forças terrestres e aéreas que tentaram atacar a sua base, tendo mesmo defendido corajosamente, somente com seis camaradas na ocasião na base, em virtude dos dois pelotões armados terem saído de ronda, tendo-se valentemente aguentado, dando assim tempo à chegada de reforços saídos da base Central. Merece as melhores referências [morreu em combate, na base Guerra Mendes (Óio-Morés), em 08Out72].
● Camarada Inocêncio Kani – responsável da base de Mansodé [, futuro assassino de Amílcar Cabral, em Conacri, em 20 de Janeiro de 1973]
É um incansável e corajoso combatente, tendo ainda há dias, depois de bombardeada a central eléctrica de Farim, assaltado de surpresa uma povoação de fulas, ligados aos colonialistas e dali retirou mais de quarenta cabeças de gado bovino e milho, que servirá para a alimentação das bases.
● Camaradas João da Silva e Quintino Robalo – encarregados da base Central, na ausência do camarada Ambrósio Djassi (Osvaldo Vieira)
Durante a minha estadia na base Central, nunca se deslocaram da base para qualquer acção ou simples serviço de ronda, a não ser o camarada Quintino Robalo, quando me acompanhou de visita às bases a cargo dos camaradas Inocêncio Kani e Corca Só.
● Camarada Agostinho da Silva "Gazela" – responsável da base de Biambe
Não visitei esta base, não só pela longa distância, como me encontrei com o respectivo responsável na base Central, quando ali fora pedir reforço de material para enfrentar os constantes ataques aéreos e terrestres de tropas colonialistas portuguesas, vindas de Bula, Bissorã, Mansoa e Canchungo.
Informou-me não ter raparigas na sua base mas que está em vias de as ter dentro em breve, e que a organização da massa se encontra normal. Desse camarada tive a informação que o camarada Marcelino da Mata, é muito cobarde, procurando fugir sempre a qualquer contacto com as tropas inimigas.
● Camarada Caetano Semedo – responsável da base de Cubajal (Porto Gole)
Também não visitei esta base, pela sua longa distância, mas fui informado pelos camaradas Maximiano Gama e Irénio Lopes, que por lá passaram, que nessa base existem grande número de raparigas e rapazes bem organizados, apesar também de sofrer constantes ataques terrestres, aéreos e navais. Este camarada, por informações obtidas na base Central tem desempenhado corajosamente as funções do seu cargo, mostrando muito brio e competência.
● Camarada Hilário Rodrigues "Lolo" –
Segundo informações colhidas na base Central, tem-se desviado de constantes ataques, tanto assim que o camarada Ambrósio Djassi (Osvaldo Vieira) resolveu destacar-lhe em serviço de mobilização e propaganda, o que demonstra não ter o mesmo condições militares.
Foi depois colocado, como Cmdt da "Zona 3" (Canquelifá - Buruntuma - Piche e Nova Lamego), onde o vamos encontrar em Abril de 1965. Passados cinco meses (Set'65), Amílcar Cabral toma a decisão de o transferir para a Frente Sul, como prisioneiro do Partido, ficando à guarda de "Nino" Vieira, com a seguinte justificação:
Citação: (1965), Sem título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35336, com a devida vénia.
● Camarada António Embaná –
Encontra-se na base de Fajonquito a trabalhar com o camarada Mamadu Indjai, tendo este realçado as suas qualidades, dizendo ser o seu braço direito e que tem desempenhado as suas funções com competência e coragem, tendo no seu regresso, deixado o camarada António Embaná, incumbindo pelo camarada Mamadu Indjai, em Iador a escolher um local seguro, para uma nova base que pretendem criar, tendo nesse mesmo dia reunido o camarada Embaná, numerosas pessoas para explicar-lhes a necessidade da criação daquela base, em virtude da povoação estar agora livre do traidor Braima Cutô, que servindo de Pide, vinha extorquindo a população, e que foi pessoalmente preso por ele Embaná e executado na base Central por ordem do camarada Mamadu Djassi.
● Camarada Julião Lopes –
O parecer sobre o Cmdt Julião Lopes será analisado no contexto do ponto seguinte.
Foto 7 – Citação: (1963-1973), "Reunião de combatentes do PAIGC e população em Morés", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43456, com a devida vénia.
4. - A SITUAÇÃO MILITAR EM ENCHEIA
4.1 - SUBSÍDIO HISTÓRICO DA COMPANHIA DE ARTILHARIA 564 =
NHACRA - QUINHAMEL - BINAR - TEIXEIRA PINTO - ENCHEIA - MANSOA E CUTIA (1963-1965)
4.1.1 - A MOBILIZAÇÃO PARA O CTIG
Mobilizada pelo Regimento de Artilharia Pesada 2 [RAP 2], de Vila Nova de Gaia, para servir na província ultramarina da Guiné, a Companhia de Artilharia 564 [CART 564] embarcou em Lisboa, no Cais da Rocha, em 08 de Outubro de 1963, 3.ª feira, sob o comando do Cap Mil Art Rodrigo Claro de Albuquerque Menezes de Vasconcelos, seguindo viagem a bordo do N/M «ANA MAFALDA», tendo chegado a Bissau em 14 do mesmo mês, 2.ª feira.
4.1.2 - SÍNTESE DA ACTIVIDADE OPERACIONAL
Após a sua chegada ao CTIG, a CART 564 [14Out63-27Out65] rendeu a CART 240 [30Jul61-19Out63, do Cap Art Manuel Fernando Ribeiro da Silva], ficando colocada no sector de Bissau, com Grs Comb destacados em Nhacra e Quinhamel, ficando integrada no dispositivo e manobra do BCAÇ 600 [18Out63-20Ago65, do TCor Inf Manuel Maria Castel Branco Vieira], com vista a garantir a segurança das instalações e das populações da área.
A partir de 24 de Dezembro de 1963, um Gr Comb foi destacado para Binar e seguidamente para Teixeira Pinto, a fim de reforçar a actividade do BCAÇ 507 [20Jul63-29Abr65, do TCor Inf Hélio Augusto Esteves Felgas], enquanto outro Gr Comb se instalou em Encheia, na zona de acção do BCAÇ 512 [22Jul63-12Ago65, do TCor Inf António Emílio Pereira de Figueiredo Cardoso], a fim de ocupar aquela povoação.
Em 12Mai64, assumiu a responsabilidade do subsector de Nhacra, então criado, na zona de acção do BCAÇ 600, continuando, no entanto, a manter o pelotão destacado em Encheia até 01Jul64.
Em 12Mai64, assumiu a responsabilidade do subsector de Nhacra, então criado, na zona de acção do BCAÇ 600, continuando, no entanto, a manter o pelotão destacado em Encheia até 01Jul64.
Nesta data, por rotação com a CCAÇ 413 [09Abr63-29Abr65, do Cap Inf Júlio Eugénio Augusto Viegas de Almeida Pires], assumiu a responsabilidade do subsector de Mansoa, ficando integrada no dispositivo do BCAÇ 512 e depois do BART 645 [10Mar64-09Fev66, do TCor Art António Braamcamp Sobral], sendo utilizada, cumulativamente, na função de força de intervenção do sector, de 12Set64 a Fev65, actuando nas regiões de Santambato, Cubonge e Mantefa, em 13Abr65, voltou a ter um Gr Comb em Encheia, tendo ainda mantido efectivos em Cutia, por períodos variáveis.
Em 27Out65, foi substituída no subsector de Mansoa pela CART 644 [10Mar64-27Jan66, do Cap Art Vítor Manuel da Ponte da Silva Marques (1.º), Cap Art Nuno José Varela Rubim (2.º) e Cap Art José Júlio Galamba de Castro (3.º), tendo seguido para Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso. p 440.
Em 27Out65, foi substituída no subsector de Mansoa pela CART 644 [10Mar64-27Jan66, do Cap Art Vítor Manuel da Ponte da Silva Marques (1.º), Cap Art Nuno José Varela Rubim (2.º) e Cap Art José Júlio Galamba de Castro (3.º), tendo seguido para Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso. p 440.
4.1.3 - SÍNTESE DA ACTIVIDADE OPERACIONAL EM ENCHEIA
A chegada de um Gr Comb da CART 564 a Encheia, verificada em 24 de Dezembro de 1963, 3.ª feira, é a resposta do comando militar do Sector C, da responsabilidade do BCAÇ 512 [22Jul63-12Ago65, do TCor Inf António Emílio Pereira de Figueiredo Cardoso], ao crescendo das hostilidades na região do Óio iniciadas no mês de Junho de 1963, a partir da base central do Morés, "santuário" dos guerrilheiros do PAIGC.
Em relação a Encheia, merecem destaque, como fonte de informação privilegiada, as referidas pelo Chefe Administrativo do Posto local, José Cerqueira Leiras, ex-militar da CCAÇ 153 (1961-1963), retiradas do seu livro «Memórias de um esquecido», edição de 2003, já referenciado na Parte I deste trabalho – P21095 –, onde o camarada Beja Santos faz a apreciação crítica da narrativa do autor, a quem agradecemos, e que aproveitamos para citar algumas ocorrências – P16503.
São exemplos:
"Numa coluna para Bissau [provavelmente em Outubro'63], entre Encheia e Binar há uma emboscada, um camião civil carregado de arroz e mancarra saltou pelos ares com o rebentamento de uma mina".
Passado algum tempo, regressa a Encheia, "e pela estrada de Bissorã, via Mansoa, depara-se um camião civil a arder. Dez quilómetros à frente, duas árvores atravessadas e mais adiante uma grande vala cortando por completo a estrada". (…)
Este quadro adverso e de terror, onde diariamente assiste à fuga da população para o mato, leva José Leiras a deslocar-se a Bissorã para falar com o Administrador local e pedir reforços, mas tudo lhe é recusado. "No regresso, escapa por um triz a uma saraivada de balas".
A este conceito de "sorte", juntou-se um outro algum tempo depois, provavelmente em meados de Outubro de 1963, durante um ataque à povoação de Encheia.
O ataque teve como consequências a destruição, pelo fogo, de muitas moranças, o comércio saqueado, todo o gado roubado e pessoas levadas para o mato. O comerciante Francisco Beira Mar é assassinado. José Leiras consegue chegar ao Posto Administrativo e resiste ao fogo dos guerrilheiros, apesar de ferido, pois no jipe onde se fazia transportar foi atingido por várias balas numa perna. José Leiras arranja um voluntário para ir a Bissorã avisar a tropa. Esta levou cinco horas para fazer 24 kms, pois na estrada havia dezenas de árvores atravessadas para além das valas.
Ferido, José Leiras é levado para o hospital (?), nessa altura as cuidadoras são religiosas. São-lhe extraídas as balas e algum tempo depois vai de avioneta até Bissorã. Aí passará a noite de Natal de 1963, e no dia seguinte segue para Encheia, onde vai encontrar o Gr Comb da CART 564.
O responsável por este primeiro ataque a Encheia foi o Cmdt Julião Lopes, vindo da base Central do Morés. Quem o afirma é Bebiano Cabral d'Almada no seu relatório, no ponto reservado às informações sobre diversos camaradas (ponto 3.1 desta narrativa).
=> Diz o relatório (p. 18):
"Por informações colhidas na base Central sobre este camarada [Julião Lopes], soube que num ataque [realizado em Outubro de 1963] do grupo por ele dirigido, em Encheia, contra o Chefe de Posto [José Cerqueira Leiras] e não contra a tropa colonial, que numa rajada da sua metralhadora matou três camaradas, a saber: Luís Mendes "Mambará", João Balimbote e Joãozinho Amona, ficando ele, Julião, ferido com uma bala de um dos camaradas daqueles que morreram, que o atingiu propositadamente com a intenção de o matar, procurando assim vingar-se por si e seus companheiros, tendo nesta altura também ficado ferido, e ainda pelo camarada Julião Lopes, o camarada Paulo Santi
Depois de arrebentada a porta da residência do Chefe de Posto [José Cerqueira Leiras], para ser liquidado, o respectivo chefe, o camarada Julião Lopes, impediu os seus companheiros de o fazerem, alegando bastar já o mesmo ter uma perna quebrada [balas nas pernas].
O Cmdt deste ataque, Julião Lopes, foi depois transportado para o Hospital de Ziguinchor, a fim de ser intervencionado, onde se manteve até ao dia 09 de Janeiro de 1964, 5.ª feira, data em que deu início ao seu regresso à base Central do Morés.
4.2 - ANTECEDENTE DESTE ASSASSINATO COLECTIVO
Segundo os factos narrados no ponto anterior, procedemos ao seu aprofundamento realizando nova pesquisa onde encontrámos um registo datado de 25 de Setembro de 1962. Trata-se de uma carta escrita em Zinguinchor, em "linguagem codificada", dirigida a Amílcar Cabral, onde constam alguns nomes dos que foram assassinados pelo Cmdt Julião Lopes, em Encheia, e que seguidamente se transcreve o conteúdo e se reproduz o documento original.
=> Ziguinchor, 25 de Setembro de 1962 (3.ª feira).
Camarada Cabral,
Esta tem por fim pedir-lhe o envio urgente, caso seja possível, de 4 bonecas daquelas que trazem sapatos e roupa sobressalente pois que tenho que ir presentear pessoas da minha estima.
Seria conveniente enviar-me também o mapa e croquis do número 10 [Zona 10? - Bula a Teixeira Pinto] porque faz muita falta na conclusão do trabalho que tenho entre mãos.
Não se esqueça também de algumas caixas de supositórios para levar aos meus doentes bem como os respectivos suportes suplementares.
Cito-lhe o nome de alguns doentes: - Augusto da Costa, William Tubman, Luís Mendes e João.
O amigo Brauner [Braima Camará?] pediu-me um pé suplente para a boneca da sua filha porque só veio com um pé. É das bonecas maiores, conforme ficha de recebimento.
Receba cumprimentos do camarada sempre ao dispor,
Julião Lopes.
Citação: (1962), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_37368, com a devida vénia.
Concluído.
► Fontes consultadas:
Ø CasaComum, Fundação Mário Soares. Pasta: 07071.123.011. Título: Relatório do Bureau de Dakar sobre a viagem à região de Casamansa e às bases do Norte da Guiné. Assunto: Relatório enviado a Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC, por Bebiano Cabral de Almada, Membro do Bureau de Dakar, sobre a viagem à região de Casamansa e às bases do Norte da Guiné Bissau. Data: Sábado, 15 de Fevereiro de 1964. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios IV 1963-1965. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Documentos.
Ø Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 7.º Volume; Fichas das Unidades; Tomo II; Guiné; 1.ª edição, Lisboa (2002).
Ø Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 1; 1.ª edição, Lisboa (2001).
Ø Outras: as referidas em cada caso.
Termino, agradecendo a atenção dispensada.
Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde… sem ajuntamentos.
Jorge Araújo.
21JUN2020
__________
Nota do editor:
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1963,
Cabral d' Almada,
CART 564,
Corca Só,
Encheia,
Inocêncio Kani,
Jorge Araújo,
José Cerqueira Leiras,
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Mamadu Indjai,
Memórias cruzadas,
Morés,
região do Oio
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