domingo, 5 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4143: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (5): A Justiça Militar ou um processo... kafkiano

1. Mensagem de António Paiva (*), ex-Soldado Condutor no HM 241 de Bissau, 1968/70, com data de 1 de Abril de 2009:

Caros Luís, Carlos e Virgínio

Vou falar de mim.
António Paiva


A Justiça Militar ou um processo... kafkiano

Soldado e Furriel

Tendo regressado em Junho de 1970 a bordo do Carvalho Araújo com destino à disponibilidade, senti-me feliz, missão cumprida. Estou livre.

Em Novembro do mesmo ano, 5 meses depois, algo me surpreende, recebo em minha casa um postal do Ministério do Exército a notificar-me com apresentação obrigatória, dia tantos de tal, no Serviço de Justiça em Sapadores.
- Mau, que querem de mim, que fiquei a dever, que tenho para pagar?

Muitas perguntas fiz a mim próprio e não encontrei respostas.
Comecei a pensar:

- Como me apresentei com um dia de atraso no CICA 5 em Lagos e ouvi dizer que dava uns dias de prisão, o que não veio a acontecer, segui em frente ficando registado na caderneta como Refractário, apresar de estar registado na caderneta a data certa 18 de Setembro de 1967.

- Por cá, nada mais de anormal se passou, só fui uma vez ao Cais da Rocha e duas ao aeroporto, na segunda vez embarquei por ter faltado um Oficial.

- Na Guiné, em Novembro de 1969, a faltar poucos meses para fim de comissão, tive um acidente com um táxi na Estrada de Santa Luzia, mesmo atrás do Hotel Avenida (penso que era assim que se chamava) tendo o mesmo batido na porta do prédio, a meu lado levava um camarada que me tinha pedido boleia no QG até á Amura, grande amigo, que ficou com leve ferimento na testa por ter batido no pára-brisas, o qual partiu, mas foi-se embora dali para me evitar um Auto de corpo-delito.
No dia seguinte estava no Hospital o senhor António, à minha procura, dono do Restaurante que havia na estrada entre os Adidos e a BA12, onde íamos comer o bacalhau assado, para me informar que tinha ido ao QG assinar um termo de responsabilidade pelo acidente e que o processo iria ser arquivado. Este senhor era também dono do Táxi. Dias depois saiu no Boletim Informativo do Hospital o arquivamento.

- No dia 31 de Dezembro de 1969, não por culpa minha, mas sim do whisky, sou apanhado na estrada do aeroporto com excesso de velocidade, levo 10 dias de detenção, a minha sorte foi não soprar no balão, senão os dias eram mais. Era fim de ano.

- No dia em que cá cheguei, fui aos Adidos, não me aceitaram, teria de ir ao RSS em Coimbra por ser a Unidade a que pertencia e só lá podia passar à disponibilidade e entregar a restante farpela militar.
Tudo bem, fui para casa tomar banho, que bem precisava, almoçar com meus pais e depois parti para Coimbra, onde cheguei pelas l6h e 45m.
Azar, bati com o nariz na porta, a Companhia a que eu pertencia, Auto Macas, tinha fechado mais cedo, só lá estava o cabo com quem falei e lhe disse:
- Já que aqui estou, vou lá cima ao Norte ver a família, Castro Daire, e amanhã mais cedo passo por cá.
E assim fiz, às 15h do dia seguinte lá cheguei, fui ter com o cabo que prontamente me diz:
- Estás f…, o Sargento não me deixou fazer o espólio do que cá deixaste, que vinhas à civil e não te apresentaste a ninguém, tens de ir falar com ele e podes ter 15 dias de prisão à perna.
Quem teve o corpo todo, 33 meses e 7 dias, preso à vida militar, 15 dias à perna não seria grave.
Lá fui ter com o sargento, figura cativa do quadro.
Depois de dizer tudo o que tinha para dizer, ao fim de alguma conversa entre ambos, volta a olhar para os papéis, pensei que antes não os tinha visto bem, olhando para mim me diz:
- Os c… que vem da Guiné, vem malucos, vá-se embora.
- Obrigado. - Agradeci.
Lá fui com o cabo entregar o que tinha.

Tudo isto era os meus pensamentos até ao dia em que tinha de lá ir. Algo teria ficado mal e eu não tinha pago no tempo.

Chegado o dia, lá me dirigi à Secção de Justiça em Sapadores, onde fui recebido por um Capitão.
- Bom dia.
- Bom dia.
- Recebi este postal para me apresentar aqui.
- Sim, senhor. É o sr. António Duarte de Paiva?
- Sou.
- Com o numero mecanográfico O6243167?
- Sim.
- Esteve na Guiné?
- Estive.
- Veio cá de férias?
- Vim.
- Mas não voltou.
- Voltei, sim.
- Como pode ser, se você está aqui.
- Diga o que se passa.
- Você é Furriel, estava numa Companhia do Batalhão 1911 (penso ser este o número que ele disse) veio cá de férias e desertou, pode ficar detido.
- Se fui Furriel, o Estado deve-me dinheiro, recebi como Soldado, aqui tem minha caderneta.

O Senhor Capitão, examinou a Caderneta, só me disse:
- Desculpe, há aqui um lapso.
- Lapso não, erro e bem grande!

Resolvido o problema, lá vim embora em liberdade.

Será que esse Furriel existiu ou foi só imaginário? Se existiu, safou-se bem com o meu nome e nunca foi procurado.

O certo, é ter sido mais um erro dos muitos que se cometeram nesse tempo.

Um abraço
António Paiva


2. Comentário de CV:

É caso para dizer que um homem cumpre o seu tempo de comissão integralmente, já depois de estar a gozar a peluda, não merece apanhar um susto destes.

Sabendo nós como funcionam os burocratas, que logo pela manhã, quando começam a trabalhar, ligam a máquina de complicar e então na Tropa muito pior, devido a uma cadeia hierárquica, em que cada um pisa com prazer o de baixo, o nosso camarada António Paiva teve muita sorte em não ser graduado em Furriel, só para apanhar com a porrada destinada ao outro sortudo desenfiado.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3917: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (4): Não cobiçar a mulher do próximo

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