sexta-feira, 10 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4171: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): Emboscada na Fonte de Mansambo

1. Mensagem de Torcato Mendonça (*), ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), com data de 8 de Abril de 2009: Meu Caro Carlos Vinhal: Depois de cortes e aligeirar o texto, aí vai o meu relato da emboscada onde morreu o Humberto Vieira, amigo do nosso Camarada Ribeiro Agostinho (**). É assunto que procurei aligeirar porque foi o pior desastre da minha Companhia. A morte de dois Camaradas, saber que alguns dos feridos ainda hoje sofrem e outras recordações revoltam-me. Agradeço que lhe faças chegar o texto, conforme combinado. Quanto a publicação transcende-me. Um abração e Boa Páscoa Torcato de Mansambo ESTÓRIAS DE MANSAMBO PARTE II – (FORA DE ORDEM) EMBOSCADA NA FONTE DE MANSAMBO – 19 de Setembro de 1968) Regressou, ia Setembro a meio. A chuva caía fraca na tarde cinzenta e baça. Tarde tristonha a não destoar assim do aquartelamento, com os seus charcos de água esverdeada, a lama, o capim a sair da mata, logo ali, e a entrar, atrevido ou consentido, a afagar uma fiada e a encaminhar-se para a outra fiada de arame farpado. Nem tão pouco destoava, dos rostos cansados e tristes e de olhares vazios dos jovens que, indiferentes à chuva, olhavam a coluna acabada de chegar. Não por mera curiosidade pois, certamente, o motivo principal era o correio. Desceu do Unimog, depois de ter olhado à volta. Cumprimentou os camaradas que o olhavam como o sortudo que veio de férias. Um Furriel, do seu Grupo, indicou-lhe um local diferente do de outrora onde ia agora ficar, num outro abrigo de construção acabada depois da saída dele. Ajudaram-no a levar a pouca bagagem. Já haviam arrumado todos os seus haveres, por de baixo e ao lado da cama. Sobre a mesa-de-cabeceira, uma novidade, o telefone de campanha e um ou dois objectos pessoais. Luxo para quem vivia meio enterrado e, apesar das paredes de blocos e da austeridade do lugar, das seteiras a toda a volta, da Breda montada a um canto e do armamento bem arrumado e pronto a usar, gostou e sentiu-se em casa. Não havia, ali, diferença entre oficiais, sargentos e praças, quer no alojamento quer na alimentação. Excepções para o comando, secretaria e cripto. Depois de arrumar tudo deitou-se em cima da cama e quedou-se um pouco a pensar. De facto, encontrara mesmo sem ainda ter falado muito com eles, os militares do grupo a mostrarem quebra física e anímica. Viver naquelas condições era desgastante. Má alimentação, falta de quase tudo – da elementar luz eléctrica, água potável para beber ou tomar banho – um sem fim de carências. Acrescia ainda o esforço de construir aquele aquartelamento no meio de quase nada. Oito casernas abrigo e anexos meio enterradas. Cavar, cortar cibes, abrir bidões, erguer paredes de blocos. Como se não bastasse, ainda a actividade operacional pois eram companhia de intervenção. Assim faziam operações, colunas, montavam e sofriam emboscadas, rebentavam minas a um ou dois contos a peça, sofriam flagelações ou ataques fortes ao aquartelamento. Jovens a perderem a juventude, a normal alegria de viver, a sofrerem os efeitos de uma contenda que pouco ou nada lhes dizia. Assim iam endurecendo e precocemente envelhecendo. Meninos há menos de um ano; homens endurecidos agora. Acendeu mais um cigarro e foi tentar falar com o seu grupo. Até nisso a vida naquele lugar tinha regras diferentes. O seu grupo estava em dois abrigos, como o resto do pessoal da companhia. Por prudência não se juntavam todos. Vivia-se partido ou repartido, cerca de vinte ou vinte e cinco homens por abrigo. Reuniram-se e ouviu mais do que falou. Anotou o que para ele tinha interesse. Homens a merecerem muito, muito mesmo. Assim não e havia volta a dar. Havia. Era grupo unido. Com um pouco de tempo dar-se-ia a volta. Dias depois, após o jantar, recebeu a ordem. - Amanhã vais à Moricanhe. Vê como estão por lá os milícias e a população. De madrugada, com o Sol no seu rápido espreguiçar próprio daquelas Latitudes, ouvia-se o reboliço do pessoal na preparação de mais uma saída. Abandonaram o aquartelamento abrindo a cancela – cavalo de frisa – do lado da fonte, circundaram o arame e foram direitos à estrada. Mil olhos a entrarem mata dentro, os picadores à frente a fazerem o seu trabalho e eles, devagar, propositadamente devagar, a manterem distâncias, a não pôr a arma ao ombro, a tentarem ser eles novamente, caminhavam estrada fora até ao alto, já depois do pontão do Almami, o local das emboscadas. A partir daí foram por um trilho, conhecido dos picadores, directos à tabanca da Moricanhe. Muito perto desta, inesperadamente um ou uns centos de rebentamentos e tiros para os lados de Mansambo. - Liga o rádio. Pede informações que é Mansambo a embrulhar. - Não dá nada. A mata é fechada. Não dá. - Vamos depressa, depressa, ali perto está a Moricanhe e antes há clareiras. Estabeleceram contacto rádio. Era um ataque a Mansambo. Ordem para continuar e esperar. O ataque era forte e durou bastante. Já na Moricanhe receberam nova ordem. - Vão para a estrada e façam segurança à coluna vinda de Bambadinca. Quase em passo de corrida, acompanhados do Sargento Milícia Mádia e de uns quantos milícias, rápido estavam na estrada. De repente sentiram o barulho da aviação e pararam. Vindos dos lados de Bambadinca, seguindo a estrada, passou um e logo mais dois helicópteros. Sentem os T6. Mau, mau, há grossa bronca. - Liga para o quartel. - A resposta foi: esperem a coluna. Esperam e desesperam. Nova ordem. Venham imediato este. O mais rápido possível regressam. Entram agora pela porta principal. Sentia-se o alvoroço e a tragédia no ar. Olhando em redor parecia que um ciclone tinha passado por Mansambo. Tentou saber o que se passava. Contaram-lhe de forma sintética, olhar de desespero, voz embargada pela raiva: - O grupo que foi buscar água à fonte caiu numa emboscada forte. Montaram metralhadoras e varriam tudo de modo a não prestarmos auxílio. Os gajos atiraram nos garrafões de vidro e os estilhaços atingiram alguns da malta. Iam dezasseis homens. Tivemos onze feridos, alguns graves, um morto e um desaparecido. Foi o maior desastre da Companhia. Deu ordem para o pessoal regressar aos abrigos e foi até à saída para a fonte. Horas antes, poucas, tinha por lá passado. A fonte estava a menos de cem metros, menos. Olha em redor e tentou perceber. Passou, nada viu e já lá estavam. Ora isso indiciava que sabiam qual o objectivo, tinham disciplina táctica e de fogo, conheciam bem o local. Tentou tirar conclusões e talvez tenha tirado. Certo é que o que viu e sentiu foi determinante para o resto da comissão. Fez sinal a alguns militares que ainda limpavam o trilho e regressou. Quem antes regressara era o desaparecido. Contou que ao tentar abrigar-se numa árvore, tentaram agarrá-lo e falaram em língua estrangeira. Socou o sujeito que parecia branco e fugiu. Quando lhe disseram disse logo: - cubanos. Por isso o modo como a emboscada foi montada. Cabrões! Teve a confirmação cerca de um ano depois. Ao interrogar um prisioneiro – Malan Mané – este confirmou que viram o grupo dele sair, não atiraram e eram comandados por um ou mais cubanos. NOTA: - A emboscada na fonte de Mansambo foi a 19 de Setembro de 1968. O In causou nas NT um morto (Soldado Trms Humberto P. Vieira), cinco feridos graves e seis ligeiros. Um dos feridos graves (1.º Cabo Condutor João M.J. Figueiras veio a falecer a 25 de Setembro) e outros vieram para o Hospital Militar Principal – Lisboa. Passados meses foi aberto um poço dentro de quartel; construíram-se duches e vieram dois obuses 10.5. Num ataque ao Poidom estava um cubano. Perdeu o boné com a foto de mulher e filhos mas, infelizmente, conseguiu abandonar o local com cabeça… __________ Notas de CV: (*) Vd. poste de 18 de Janeiro de 2009 Guiné 63/74 - P3757: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (4): Férias em Janeiro de 1969... (**) Vd. poste de 29 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4098: Tabanca Grande (129): Manuel José Ribeiro Agostinho, ex-Sold Radiotelefonista, Condutor Auto e Escriturário, QG/Bissau, 1968/70

1 comentário:

Anónimo disse...

Compreendo bem as "mossas" que tal acontecimento fez em quem as viveu e ficou para as contar. Desenterrar essas recordações, só mesmo por uma boa causa.
Abraço sentido.
Jorge Picado