quinta-feira, 9 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4167: História da CCAÇ 2679 (16): Casais fiéis e solidários (José Manuel Dinis)

1. Mensagem de José Manuel Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 6 de Abril de 2009:

Carlos, camarada,
Desculpa a trabalheira em tempo de sobrecarga, mas calhou assim, enviar-te hoje mais um pedaço de estória. Quero também saudar o Jorge Manarte, que me descobriu através do blogue, e espero que brevemente venha à liça, apresentando-se e descortinando episódios da sua lembrança. É um gajo porreiro.
Neste dia de festa, (aniversário do JMA) apresento-te os parabéns pela elevada capacidade e espírito de sacrifício que revelas em prol da Tabanca.
Abraços fraternos


Casais fiéis e solidários

A cara humedecida pela transpiração constante parecia constituir lenitivo para o poisar dos imensos e minúsculos mosquitos, de uma infindável população esvoaçante, que mais pareciam em suspensão, dado o vôo quase parado, em pequenas trajectórias descontroladas, cujos corpinhos alados chocavam frequentemente com os olhos, ou introduziam-se na boca, quando não se dispunham a perscrutar as fossas nazais ou as superfícies das orelhas, provocando comichões incómodas.

Eram milhões, e de cada vez que batia com a mão aberta numa superficie mosquitada, na face por exemplo, trazia, colados, meia-dúzia deles já sem vida. Mas os restantes ignoravam esta actividade predatória, e continuavam naqueles irritantes bailados para massacre, povoando-me a cabeça e os pensamentos com instintos vingativos.
Qual vingança!

A solução era sair daquela infestação, procurar uma área mais tranquila, onde pudessemos beber ou comer sem levar os bichinhos à boca, onde nos sentíssemos aliviados daquelas cargas quase delicadas, mas muitíssimo incómodas. O sol e o calor castigavam sempre, mas os mosquitos eram o tormento da mata. E, de quando em vez, obrigavam algum de nós a ceder à malária. Porque raio teriam os portugueses chegado à Guiné, e os nativos escolhido esta área endémica para fazer uma luta de libertação contra nós? No seu conceito, provavelmente, preferiam os mosquitos. Doideiras! Por mim, bem podíamos regressar ao puto, à amenidade. Que raio de terra. O relevo é uma imensa planície, e as diferenças regionais assentam na diferente cobertura vegetal, na indefinível orografia com os braços dos rios, e nas bolanhas, que adquiriam vida e cor na época das chuvas, ou tornavam-se terreno rígido, seco e irregular na maior parte do ano sêco. Uma séca!

Para se fazer uma ideia do calor húmido que se sente em todo o território, antecipo a experiência que viria a impressionar-me mais tarde, quando cheguei de avião à provincia: naturalmente, a viagem decorria com o ar pressurizado a bordo, garantindo uma frescura que poderíamos regular através de botões ao alcance de cada passageiro, contrastando com a luz exterior de brilho intenso a prenunciar o calor. Depois de deslizar na pista, rasgada no meio da floresta e construída na terra castanho-vivo, quando imobilizado e as portas se abriam, os passageiros, ainda nos seus lugares, sentiam logo a neutralização do ar fresco, e as roupas leves imediatamente colavam aos corpos já peganhentos, em virtude da intensa humidade exterior que logo ali se fazia sentir.

A progressão continuou sem qualquer incidente ou nota a merecer destaque. Andávamos por automatismo, porque o percurso fora desenhado na carta geográfica e era para cumprir, porque tinhamos treino de andar; andávamos à procura de nada, porque ali, nada, era o melhor que podia acontecer.

A patrulha contemplava a pernoita no mato. Chegada a hora do jantar, pimposa designação para a frugalidade racionada, que consistia daquilo que cada um dispunha da ração de combate, escolhemos um local para abancar. Como era meu costume, andei a pedinchar latas de paté da Manutenção Militar, género de alimento nada apreciado pelo pessoal, que eu não regeitava, por isso as angariava com facilidade, o que me permitia dispensar a carga alimentar, e aligeirar a marcha. De entre o grupo, alguém oferecia-me um pedaço de casqueiro e, assim, regalava-me com um jantar, se não extraordinário, aparentemente suficiente para as circunstências.

Para que conste, naquela guerra, a nação ainda não dispunha de nutricionistas em número suficiente, que regulassem capitosas soluções alimentares.

A noite aproximava-se. Deslocá-mo-nos um pouco à procura de um lugar razoável para dormir, já que, sob as árvores, com o chão coberto de arbustos, tornava-se incómodo. Foi numa clareira que nos instalámos. O firmamento era o nosso tecto, sumptuoso de brilhos astrais.

Adormeci com a cabeça apoiada nas cartocheiras e a canhota muito juntinha a mim, corpo com corpo, como os casais fiéis e solidários.

A certa altura do sono, terei sentido alguma pressão sobre o peito, qualquer movimento, qualquer coisa insólita, pelo que, estremunhado e reflexamente, levei a mão a proteger-me do que fosse. Tacteei algo, indefenido, agarrei e notei que se tratava de um lagarto, coisa para vinte e cinco, trinta centímetros, um camaleão, provavelmente, que teria vindo até mim em busca de algum calor que amenizasse a noite fria de cacimbo.

Não pensei, saltei impulsivamente, e lancei o lagarto numa qualquer direcção, mas não para longe, pois numa corrida que lhe garantisse tranquilidade, ainda atropelou alguém que, espantadamente, perguntou: o que é isto?

A fotografia tirada a bordo do Uíge, a caminho de Bissau, retrata, da esquerda para a direita, o irmão gémeo do Mário, com destino a Cabuca, o Faria, o Valentim, o Mário e o Dinis. De pernas flectidas, o Virgílio Fernandes, estes, elementos do Foxtrot. Bem dispostos, pois claro!

O Virgílio Fernandes foi, indubitavelmente, o mais controverso dos Foxtrot. Irreverente, boémio e espalhafatoso, mas também aquele home. São inúmeras as estórias de que foi interprete, ora na provocação de companheiros e elementos da restante tropa; nas artes que usava para que lhe pagassem um copo que, indistintamente, podia ser de bagaço ou cervejinha; nas confrontações verbais com o capitão Trapinhos, com quem mantinha uma relação dialéctica; nos truques que já não pegavam para por os outros a trabalhar por ele, mas que geravam momentos de descontração inovidáveis; nas narrativas que fazia do seu passado no bairro do Lazareto; na maneira descontraída e naif, por vezes atrevida, como insinuava o ascendente Foxtrot onde quer que estivéssemos; ora na generosidade e camaradagem, qualidades avultadas pelo espirito desenrascado com que brindava os amigos, praticamente toda a gente, porque o Virgílio não apontava maldade a ninguém.

Não resisto a contar um episódio que me deixou petrificado. Foi nas vésperas do Natal de 1970, quando o ComChefe visitou a Companhia.

Estávamos já em formatura a prestar atenção às palavras do general, e ouvi o Virgílio, algo distante ainda, a falar alto enquanto se aproximava da parada. Reclamava criticamente:
- O que é que ele vem cá fazer? Se truxesse cervejinha é que era bom!

E parava. Olhava para o céu, como quem espera uma inspiração, lançava o quico ao ar, que caía sem que ele o conseguisse agarrar na viagem descendente, saltava-lhe em cima e resmungava imperceptivelmente.
Ainda repetiu a cena, a reclamar da pouca cervejinha que o estado teria obrigação de fornecer, coisa óbvia e de incontornável justiça. Pelas costas da formatura aproximou-se do Foxtrot, agora como um menino bem comportado, com um chega-para-lá tomou lugar entre os seus, e altivo, elegante e de peito cheio, aguardou pela conversa, que o general prosseguiu após breve pausa.

Fraldisqueiro, sem qualquer preocupação com a imagem, provocava remoques ao capitão que, entre os Foxtrot, encontrava bastas razões de preocupação e afrontamento.

Contou sempre com a amizade dos camaradas e, ainda hoje, recordo-o com saudade.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 19 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4054: História da CCAÇ 2679 (15): Nova estadia em Canquelifá (José Manuel Dinis)

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Olá Zé Dinis, gostei!
Um abraço.
Hélder S.