segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7429: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (37): Teixeira Pinto - Erro que podia ter sido fatal

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 20 de Novembro de 2010:

Amigo Carlos Vinhal
Um bom dia.

Como as anteriores, mais uma passagem verídica de “Viagem…” que à altura me viria a afectar bastante em alguns dos dia-a-dias seguintes e que sai agora, ao fim de trinta e nove anos, do exclusivo conhecimento dos intervenientes.

Para ti Vinhal e para os que tiverem a paciência de ler, o meu abraço.
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (37)

Teixeira Pinto - Erro que podia ter sido fatal

Ao meu 2.º GRCOMB foi finalmente atribuído um descanso de dias na actividade operacional de intervenção, passando a operar em serviços e patrulhamentos, aliados a emboscadas na povoação e imediações, o que para nós era uma espécie de férias que nos começou a diminuir a tensão psicológica, levando-nos porventura a baixar um tanto a guarda, o que a acontecer, podia traduzir-se no facilitismo e no erro fatal.

Por muito pouco esse erro… não aconteceu,ficando-me de emenda, como responsável!

No meu 2.º GRCOMB, logo após as primeiras Operações na Guiné, tínhamos instituído que quem fizesse anos seria dispensado de qualquer serviço nesse dia, podendo inclusive e eventualmente, beneficiar também da dispensa de um amigo. Era de certo modo uma maneira de premiar o Pessoal mais que merecedor e ao mesmo tempo prevenir qualquer situação de fragilidade emocional potencialmente de risco, em especial na mata, onde a segurança devia ser sempre uma constante. Na situação em concreto (neste descanso), os graduados revezavam-se nas saídas, considerando a ausência ou diminuta periculosidade das mesmas.

A época das chuvas caminhava para o seu termo, não obstando a que fortes bátegas de água, mais ou menos prolongadas, se abatessem dos céus alagando tudo e que, ao esparramar-se no chão levantava uma espécie de nevoeiro, como se de um aspersor se tratasse.

Assim está o tempo nesse final de tarde em que íamos fazer um patrulhamento com emboscada nocturna pela Povoação e periferia próxima, com regresso previsto, salvo erro, pelas uma ou duas da manhã

Um e depois outro elemento do grupo pedem por licença de anos e pela presença no convívio de alguns amigalhaços. A autorização é-lhes concedida, já que foi considerada uma saída sem ou diminuto risco. Ao Castro (Fur Mil) digo-lhe que dado o pouco Pessoal que ia alinhar, não era preciso vir, pelo que ficou a descansar. O Barros creio que estava para… a Família!?!

Na parada, sob chuva séria, um 2.º GRCOMB (?!) composto por cerca de uma dúzia de elementos com armamento leve e sob o meu comando (só levava a Walter) apresenta-se ao Cap. Branco que, vendo o pequeno número de Homens, me interroga se estamos todos. Mediante a minha resposta afirmativa recebe a apresentação e arrancamos debaixo do aguaceiro.

A zona pré determinada para emboscar era algures entre o perímetro da Povoação e a Ponte Alferes Nunes. Pelo caminho íamos patrulhando a periferia.

Noite adentro e o dilúvio não abranda, ensopando-nos até aos ossos, apesar da protecção dos ponchos. Ainda um tanto afastados da zona de emboscada reparo em duas moranças isoladas à face do caminho e para não nos castigar mais, resolvo e dirijimo-nos para a protecção dos seus beirais zincados. Pareciam inabitadas.

Digo à rapaziada para se abrigar mas, por estarmos fora de zona não queria barulho de molde a acordar ou sermos pressentidos pelos eventuais moradores, já que se o “baldanço” chegasse aos ouvidos do Comando, na certa me lixava. O Cor Pára Durão não era para brincadeiras!!

A Rapaziada anuiu satisfeita e por lá fica abrigada, em conversa sussurrada à mistura de umas cigarradas. Avisados de que vou fazer a segurança e verificar o terreno, afasto-me por um trilho na perpendicular, entre capim alto, que a uma trintena de passos se divide à minha direita com um outro que parece ir na direcção da povoação. Logo a seguir a essa bifurcação, resolvo posicionar-me do lado direito, aninhado sobre os calcanhares e dissimulado no capim, quase à face do trilho, de molde a poder perscrutá-los, ficando coberto pelo poncho e em observação por uma nesga do capuz cerrado sobre a cabeça.

O tempo vai passando e da Rapaziada atrás de mim, não ouvia qualquer barulho, talvez por terem seguido o meu pedido ou por o som ser abafado pelo ruído do aguaceiro.

A chuva continua a cair com força e a dada altura parece-me distinguir a uma vintena de metros, vultos silenciosos na noite que se aproximam, vindos em fila pelo trilho na minha direcção! Surpreso, empunho a Walter, encolho-me e fico estático. Os olhos aguçam-se-me tentando perceber se é população, o que seria estranho àquela hora. Ligeiros continuam a avançar na minha direcção e começo a distingui-los melhor… parece-me… trazem armas… também um RPG! Grande porra, são turras… estou fod …!!


Sem hipótese de ir para junto dos meus, puxo-me lentamente um pouco para trás, aninho-me mais no capim com a Walter já em posição de fogo e fico pronto a disparar com o primeiro na mira. Tenho a noção de que um ou dois tombariam sem que em princípio e dado o meu posicionamento, algo me acontecesse ! O pensamento voa para os meus Homens que, se eu disparar ficarão no enfiamento dos tiros de resposta e serão apanhados de surpresa, na certa com graves consequências. Pena não levar granadas!

Um “flash” mostra-me três hipóteses possíveis: não me detectam e continuam em direcção ao Pessoal, só me possibilitando disparar quando a maioria já por mim tivesse passado, fazendo assim com que a resposta fosse na minha direcção (em principio não me atingiria) e como tal em direcção oposta aos Rapazes, que ao mesmo tempo ficariam alertados e interventivos.

A segunda hipótese, com sorte a melhor, seria eles virarem à esquerda pelo trilho sem me detectarem. A acontecer isso… não haveria tiros.

A terceira hipótese, ser detectado… a acontecer seria um cu de boi !!

A decisão está tomada, só disparo se for detectado ou se eles se dirigirem na direcção dos meus Rapazes. Resta aguardar. Preparado e estático, rezo para que não se ouça a Rapaziada desprevenida.

Continuam a aproximar-se ligeiros e em silencio… dez metros, cinco metros, um metro… estou em tensão, mas calmo e frio… começo a contá-los… vão-me passando pela frente quase me roçando, dezassete elementos com espaçamentos curtos - quinze metralhadoras visíveis, confirmados dois RPG e não um - que começam a virar à esquerda, só Deus sabe porque e vão desaparecendo na noite.

Estávamos safos, graças a Deus. Três ou quatro minutos se tanto que me pareceram uma eternidade, se tinham escoado. De imediato movimento-me e instruo o Pessoal, que de nada se tinha apercebido. Pelo “banana” AVP1 contacto o Comando, alertando para eventual flagelação e informando do observado.

O mote estava lançado… movimentações bélicas iriam acontecer… outra dor de cabeça ia começar !

Luís Faria
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7314: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (36): Teixeira Pinto, uma nesga do Paraíso

10 comentários:

Anónimo disse...

Camarigo Luís Faria

Isso é que foi!!!

Porra...foi preciso ter muito sangue frio e tê-los no sítio.

Não sabes exactamente quando aconteceu?

Patrulavam vocês pelas bolanhas(arrozais) de Binhante para Pt Alf Nunes ou ao longo das tabancas de Petabe, Canobe, Beniche a caminho da tal Ponte?

Isso era mesmo muito perto já de T.Pinto, mas não houve qualquer flagelação nessa altura, pois não?

Teriam ido fazer qualquer "colheita" de mantimentos a alguma dessas tabancas?

Abraço

Jorge Picado

Luís Dias disse...

Camarigo Luís Faria

Bem, essa foi do caraças! Que sangue frio....Também eu cheguei a ir para o mato unicamente com a pistola Walther (ao princípio da comissão, quando fiquei um bocado apanhado pelo clima. Dizia aos soldados que estava ali para os comandar e a parte do fogo era com eles!!!!) Ainda bem que me passou....
A tua estratégia foi boa, mas podia ter corrido mal.
Acontecia cada cena naquela guerra.
Um abraço
Luís Dias

Hélder Valério disse...

Caro camarigo Luís Faria

Tudo correu bem, felizmente.
E, como dizes, as lições foram tiradas.
Não se pode saber hoje como teria corrido se a evolução do IN tivesse sido qualquer outra, não há hipótese de se saber as consequências. Fica o registo. Agora, ao alcance do nosso conhecimento, mas certamente que na tua memória e do teu pessoal, durante todo este tempo.

Como comentou o Luís Dias, repito "acontecia cada cena naquela guerra"!

Um abraço
Hélder S.

manuelmaia disse...

Caro Luis,

Como disse o Jorge Picado,foi preciso nervos de aço e tê-los no sítio...
Dali,os gajos iam chatear alguém...
Já imaginaste se alguém lhe apetecia urinar junto a ti...
Naturalmente,acabarias por reagir e estaria o caldo entornado...
Fod...(tracinho se...)ele havia cada uma!
A malta facilitava e ia de vela...

manuelmaia disse...

Caro Luís,

Ainda estou a pensar no que disseste.
Fod...(tracinho se...)
abraço
manuelmaia

Anónimo disse...

Comigo aconteceu uma situação quase
semelhante.Ao invés de ser na Guiné
foi em Moçambique,não chovia,fazia
um luar esplendoroso,uma Abóbada
Celeste pejadinha de estrelas...e
um frio de rachar.Ordens:fazer se_
gurança avançada ao Aquartelamento
para prevenir possivel ataque.Pa_
trulhar no raio de um kilómetro à
volta do arame farpado.Se decorrece
tudo dentro da normlidade até à meia-noite,depois emboscavamo-nos? nas próximidades da aldeia obser_
vando possiveis "visitas".Mas...
emboscar como?com uma noite daque_
las,em terreno plano desprovido de
vegetação eu não me ia emboscar
no meio de meia dúzia de palhotas,
que constituíam a"aldeia"pois não?
Escolhi a horta do chefe de posto
que ficava mais à ponta e nas covas
de rega das laranjeiras um pouco mais camuflados pela rama destas,
fui deixando um homem (sete ao to_
do)a tiritar de frio e embrulhados
nas mantas.Quase todos tinham vindo
essa manhã,de uma outra patrulha,
mal dormidos e os pés com bôlhas.
descansaram o dia todo,à noite vol_
taram a alinhar,como não abundava o
pessoal, era assim que se"trabalha_
va".Eu preveni o 2º comandante da
companhia o Alf.Ferreira,que aquilo
ia dar "buraco".Resumindo passava pouco da 01.00H,TODO O MUNDO RESSO_
NAVA,ALTO E EM BOM SOM,ouvindo-se a
milhas.Manter aqueles desgraçados
acordados não era fácil,"ameaçar
com sanções,era naquele caso uma prepotência,sermos "apanhados à mão"por alguém da FRELIMO,nem pen_
sar.Toca a levantar dos buracos,
aproximar das instalações, com mui_
ta precaução,com toda a gente dei_
tada no chão,gritar para o abrigo da porta d'armas o meu nome e a senha antes de levar-mos uma sarai_
vada de balas em cima e pôr toda a gente em alvoroço.A "estória" não
fica por aqui,acabou por haver re_
boliço na mesma, mas como já estou
a alongar-me muito, não quero abu_
sar da vossa paciência.Obrigado.
Carlos Nabeiro--C.Caç 2357-- 1968/70.

Luis Faria disse...

Amigo Jorge Picado

Respondendo ás tuas questões,esta situação aconteceu em OUT 71.Não tennho a certeza se na primeira ou segunda semana,mas estou em crer que foi na segunda.Num próximo Post
talvez venhas a focalizar este " incidente"!!

Ao que soube e se bem recordo,à população residente nas imediações exteriores à "rotunda " de Teixeira Pinto para Noroeste,roubaram gado,creio que houve um rapto e um ferido,partindo-se do princípio que teria sido este grupo.
Talvez tu saibas melhor já que estavas proximo do comando e julgo que eras interveniente nestes casos. Corrige,OK?

Um abraço
Luis Faria

Caro Carlos Nabeiro

Emboscadas ao luar...era do "caraitas"!!!
Aconteceu-nos algumas vezes em Bula nas laterais da estrada Bula-S Vicente.Por norma saiamos da "protecçao" das poucas arvores e emboscavamos espalhados em campo aberto.Tinha muito mais medo dos RPG do que das morteiradas !!!

Um abraço
Luis Faria

Jorge Fontinha disse...

Lembro-me de teres desabafado comigo, no dia seguinte, entre umas cervejas, no bar.
Continua a lembrar, pois eu só tenho inveja da tua memória!

Aquele ebraço.
Jorge Fontinha

Anónimo disse...

Viva Luís!
A tua decisão de abancar antes de atingido o local da emboscada, nem se pode considerar uma falta grave, sobretudo, porque nada aconteceu.
Nas condições descritas, com a torrente de água a dar banho ao pessoal, todos nos lembramos de como era incómodo, e quase inutil, andar, ou permanecer na mata, pois o IN sentia as mesmas dificuldades que nós.
Quase!
Provavelmente aquela deslocação do IN, naquela noite, não terá dado em nada. Se calhar, também eles iam em busca de abrigo de confiança.
Mas que há (houve) situações caprichosas, do que podem resultar prejuízos... há sim senhor. Provavelmente, quem andou na guerra e se salvou, há-de ter uma ou outra estória de muita sorte.
Respondo ao Manel Maia - se o In lhe mijasse em cima, duas coisas aconteceriam: a primeira, é que a temperatura da urina poderia tornar-se agradável para o encharcado cmdt da força; a outra, seria, que à chegada ao aquartelamento, por causa do dilúvio, já não teria prova suficiente para tal bizarria.
Abraços fraternos
JD

Anónimo disse...

Caro amigo Luís Faria,

Foi muito bom que os tais não explodissem. Teria sido um desastre ver tanta tomatada desperdiçada.

A tua história e as perguntas do nosso amigo e camarada Jorge Picado chamaram-me a atenção para um pormenor interessante.

Capol era uma tabanca que estava enquadrada na zona de acção da minha companhia, a CCaç 3327, quando esteve nos Destacamentos de Teixeira Pinto.

Nestas zonas os guerrilheiros fugiam ao contacto com as nossas tropas.

Capol era muito massacrada com roubos de vacas perpetuados pelos guerrilheiros do PAIGC.

A fuga destes processava-se ao longo do rio Costa-Pelundo, entre Beniche e a Ponte Alferes Nunes. Depois atravessavam o rio para a zona de Pechilal.

Ao consultar a história da minha unidade, está referenciado um roubo de vacas no Capol no mês de Outubro de 1971.

Certamente que foi pura coincidência com a tua história. Mas....

Um abraço amigo,
José Câmara