quinta-feira, 26 de maio de 2011

Guiné 63/74 - P8329: As mulheres que, afinal, também foram à guerra (11): Como fui parar à Guiné (Maria Dulcinea)

1. Mensagem da nossa tertuliana Maria Dulcinea (NI)*, esposa do nosso camarada Henrique Cerqueira) que esteve em Bissorã nos anos de 1973/74, com data de 24 de Maio de 2011:

Olá Carlos Vinhal
No seguimento do tema "As nossas Mulheres de Guerra", vou tentar o mais sintetizado possível descrever como fui parar à Guiné para me juntar ao meu marido.
NI


COMO FUI PARAR À GUINÉ

Tudo começou em 25 de Agosto de 1968, dia de Festa do São Bartolomeu na Foz do Douro.

Aí conheci o Henrique e jamais nos separamos. Casamo-nos em 1970 e em 1971 o Henrique foi para a tropa.
Quando ele estava nas Caldas da Rainha em Setembro desse ano nasceu o nosso Miguel Nuno.
Logo depois o Henrique foi para Tavira de seguida para Elvas e antes da Guiné foi para Évora.

Em Junho de 1972 e vésperas do seu aniversário, recebo um telefonema do meu marido para passar o fim de semana em Évora (já o nosso filho tinha 10 meses) .

Lá fui para Évora saltando de comboio em comboio, isto porque antigamente ir do Porto a Évora era uma autêntica odisseia.

Em Évora lá estava o Henrique e até aí tudo bem. O pior foi no Domingo, quando juntamos alguns camaradas para um almoço a festejar o aniversário do meu marido, embora com uma antecipação de um dia, pois que ele embarcaria no dia seguinte, dia do seu aniversário, o que eu não sabia.

Durante o almoço um dos camaradas disse:

- Então amanhã a esta hora já estamos longe.

Olhamos uns para os outros em silêncio e foi aí que percebi que embarcavam com destino à Guiné no dia seguinte.

Fiquei sem fala porque já sabia que ele iria para a Guiné, só que não sabia quando, mas não chorei.

No dia seguinte (19/06/1972) pela manhã e aproveitando uma boleia dum alferes nosso amigo e que era de Lisboa, fomos todos de automóvel até ao aeroporto e o resto da malta foi toda em viaturas do Exército. E assim, após a partida do avião, fiquei de novo só.

Fui para Santa Apolónia onde apanhei o comboio para o Porto e, deixando transvasar a minha tristeza, chorei toda a viagem.

Passou um ano e o Henrique ainda veio gozar férias em Junho do ano seguinte. Voltou à Guiné e passado uns tempos convida-me para ir ter com ele. Eu nem hesitei.

Entretanto o nosso amigo Alferes Santos veio a Portugal casar com a Zinha. Combinamos fazer a viagem para a Guiné juntos, levando o nosso Miguel que tinha feito já dois anos em Setembro. Embarcamos em Outubro de 1973.

Quando o avião sobrevoava a Guiné, achei aquela terra linda me parecendo "Um Jardim rodeado de Rios".

Quando desembarcamos o calor sufocante, a terra seca e poeirenta foi uma desilusão. Para agravar, o Henrique estava irreconhecível de tão magro, fumava, coisa que eu desconhecia, mas passado essas impressões menos felizes e após a alegria do reencontro, fizemos uma ida a Bissau para embarcarmos no transporte que o meu marido arranjou, que foi viajarmos todos dentro de uma Ambulância Militar que ia nesse dia para Mansoa. Vieram depois de Bissorã nos buscar pois que já era quase noite quando chegamos a Bissorã. Pelo vistos foi um pouco complicado arranjarem coluna de protecção, mas os amigos ajudaram.

Quando chegamos a Bissorã e entro na nossa "CASA" fiquei espantada pois estava decorada com assentos dum carocha, as camas eram da tropa, tínhamos um frigorifico a petróleo, a casa de banho eram dois bidões de chapa. Tínhamos chuveiro pois o Henrique conseguiu ir buscar água bem longe (daí a explicação do seu estado de magreza pois que arranjou casa, fez uma abrigo, decorou a casa e sempre fazendo a sua actividade militar, porque na CCAÇ 13 não se mandriava.

Quanto à nossa alimentação, foi organizada do seguinte modo: as refeições dos adultos vinham duma espécie de restaurante (O LABINAS) que tinha um acordo com a tropa, mas as refeições do nosso Miguel era eu que as confeccionava com artigos comprados na messe e outros sempre que possível na população.

Entretanto eu e o Henrique tiramos a Carta de Condução no mesmo dia em Bissau. Não pensem que nos facilitaram a vida, não, pelo contrário, foram bem exigentes no exame em Bissau.

Para além de ter tido um Natal muito especial em 1973, com pinheirinho (uma folha de palmeira enfeitada), rabanadas e aletria, tudo isto foi enviado pela família da metrópole. Mas o que mais gostei foi ter partilhado esse Natal com outros soldados que invadiram a nossa casa que até se esqueceram que havia algures por ali uma Guerra.

Entretanto veio o 25 de Abril, e tive a oportunidade de ir cumprimentar o pessoal do PAIGC ainda no seu estado de combatentes inimigos. Uns dias antes os "patifes" tinham-nos bombardeado com foguetões, porque pareciam não estarem satisfeitos com o susto que me pregaram em Dezembro, ao infligirem-nos um bruto ataque que foi o meu baptismo de fogo. Logo lhes perdoei, até porque depois eram todos simpatia. Enfim eram contingências de uma situação que a nada nos dizia em termos de futuro, mas isso são outros "Quinhentos".

Em Junho regresso a Portugal com o Miguel, e em Julho regressa o Henrique, e uma vez mais fui ter com ele a Lisboa ao RALIS onde foi  (fomos) definitivamente desmobilizado.

Depois disto tudo, continuamos juntos, com mais um filho e um neto que é filho do Miguel.

Pronto, terminei. Foi longo eu sei, mas é assim, as recordações são muitas e há sempre tanto para escrever.

Antes de acabar, lembro que em Bissorã viviam mais senhoras, esposas de militares, ou seja dum soldado, dum furriel e de um capitão que tinha uma menina linda de quem vou tomar a liberdade de publicar a foto, junta com o meu Miguelito.

Um beijinho para todos os tertulianos e em especial para algum que tenha estado em Bissorã nessa altura e tenha sido nosso amigo.

Maria Dulcinea (NI)



Ni com fato Mandinga em pose nos aposentos da nossa casa. Tínhamos camas, secretária, mosquiteiro para o Miguel e quintal. Além da cozinha (não tenho fotos), abrigo à porta, cavado no chão e protegido com troncos.


Ni de costas com o Miguel e outra esposa de soldado numa visita a Mansoa




Ni e Miguel no centro de Bissorã

O Miguel com amizades na população masculina de Bissorã



Miguel no nosso quintal com linda filha de um Capitão da CCS

Miguel a brincar com a nossa macaca "Gasolina", de seu nome

Ni e Miguel ao pequeno almoço

Ni e Miguel na Pensão Central de Bissau

[Fotos e texto de Maria Dulcinea]
[Edição de fotos, revisão e fixação do texto de Carlos Vinhal]

____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 18 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8291: As mulheres que, afinal, também foram à guerra (7): Agradecimento pelas palavras simpáticas que me foram dirigidas (NI)

Vd. último poste da série de 25 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8324: As mulheres que, afinal, foram à guerra (10): O pungente testemunho da irmã do nosso malogrado camarada Martinho Gramunha Marques, morto em Madina do Boé, em 30 de Janeiro de 1965

10 comentários:

Luís Graça disse...

Reconheço que era preciso "coragem" e "amor", muita coragem e muito amor, para uma mulher se meter numa aventura destas, ainda para mais com uma criança de tenra idade...

Havia guerra, havia riscos de todo o género para a saúde e a segurança de qualquer civil europeu... A Guiné ainda hoje não é para todos/as!...

É convincente e lindo este testemunho que nos honra a todos, e sobretudo às mulheres que acompanharam os seus homens em tempo de guerra. Espero que a Ni continue a escrever, recuperando as memórias (únicas) desse tempo... Um bj. Luis Graça

PS - E o Miguel. tem algumas recordações desse tempo ? É muito pouco provável...

Anónimo disse...

Amor e coragem,sim,mas também uma completa irresponsabilidade.Imaginar que poderia ter acontecido uma fatalidade ao então pequeno Miguel, e já agora à filha do capitão...bem, é verdade que era em Bissorã, onde felizmente a guerra não era tão intensa, mas mesmo assim....
Enfim "coisas" da juventude.
Felizmente correu tudo bem, e penso que foram calculados os riscos, mas imaginemos que não tivesse sido assim.
Não pretendo julgar e fazer juízos de valor,estou apenas a fazer um exercício de "dedução lógica"

C.Martins

Luís Graça disse...

Eu diria antes... temeridade (ousadia imprudente ante um perigo quase certo; por extensão, atrevimento, audácia, imprudência). De resto, a "sorte protege os audazes", é o lema dos nossos camaradas comandos...

Irresponsabilidade é, quanto a mim, outra coisa: é a incapacidade de alguém poder responder pelas acções próprias, pelas dos outros ou pelas coisas que lhe são confiadas...

O tema da presença feminina (em zonas de acção) já aqui foi abordado, sob outro ângulo, pelo nosso camarigo Joaquim Mexia Alves... O da equidade ou igualdade de oportunidades: afinal, quem podia "levar a família na babagem" ? O Zé Soldado, seguramente não...

Permito-me perguntar: Aos vinte anos, quem não é ou foi temerário ? Irresponsável é outra coisa... Quem de nós não teve comportamentos "temerários" na Guiné ?... Por exemplo, ir à civil de Bambadinca a Bafatá almoçar, sem escolta, numa viatura militar, ou integrado numa pequena coluna com duas ou três viaturas, escoltadas por uma Daimler... Ou ir de jipe de Bissau a Quinhamel... Ou andar a caçar de heli... Ou dormir fora do quartel... Na prática, todos fazíamos, como fazemos hoje (nas nossas estradas...) uma coisa que se chama "gestão de risco"...

A verdade é que a hierarquia militar autorizava, formalmente ou tacitamente, a ida de "mulheres e crianças" (sic) para o "mato", para zonas de guerra, como Mansoa, Bissorã, Bambadinca, Bafatá... Não sei se havia doutrina (alguma NEP, é o termo ?) sobre esta matéria delicada... No meu tempo, tudo o que estava a norte, leste e sul de Bissau era o Vietname... A própria esposa do Comandsante-Chefe e Governador Geral vivia em Bissau...

Faz amanhã 42 anos que o quartel de Bambadinca sofreu (em 28 de Maio de 1969) um tremendo ataque, com canhões s/r e morteiros e armas automáticas durante uma hora, com várias senhoras de oficiais lá dentro (a começar pela esposa do comandante de batalhão, o BCAÇ 2852)... Apanharam um susto, foram-se embora, mas depois disso, vieram outras (de oficiais e sargentos da CCAÇ 12, da CCS/BART 2917, do BENG 447)... Mas também havia escolas, e uma professora, e crianças, e até crianças brancas, filhas de civis... Julgo que em Mansoa e Bissorã, a situação não era diferente... De qualquer modo, com a CCAÇ 12, lá, sediada em Bambadinca, como unidade de intervenção, nunca mais o PAIGC se atraveu a montar os seus canhões no fundo da pista...

Por outro lado, ao fim de seis meses, já tínhamos perfeitamente interiorizado o falso sentimento de "invulnerabilidade"... Era isso que nos distingua dos "piras"...

PS - Quero poder continuar a ler as histórias da Ni, do Miguel e do Henrique, em Bissorã...

Henrique Cerqueira disse...

Camaradas Da Guiné
Tem sido muito interessante ler alguns comentários referentes à presença da Ni em Bissorã e de meu filho Miguel.
Já o escrevi no poste do Camarigo Mexia ,mas também o comento neste poste,até porque a malta tem sido muito simpática nos seus comentários.
É claro que fomos imprudentes nessa decisão e ainda pelo facto de só ter conseguido uma espécie de casa já na zona mais periférica de Bissorã.Mas camaradas da Guiné quem é que não é temerário e quiçá irresponsável aos vinte e poucos anos.Eu e a NI já o havia-mos feito quando decidimos casar e ter o nosso filho antes da tropa e acreditem que essa decisão foi planeada e não por um mero acaso.Ora,vai daí e no seguimento da nossa convicção de vida partilhada e como houve algumas condições mínimas de varia ordem,como local,população,alimentação,algum poder económico,arriscamos porque a vida é um risco e quando há convicção há-que arriscar.Quanto á guerra,tiros ,foguetões,etc.são situações que só na altura se valorizaram e agora até dá graça e serve para enriquecer as nossas histórias da Guiné não é assim ???
Malta não quero estar aqui com justificações ,só quero é participar experiências com todos e alem disso é mesmo bom escrever com a malta das nossas gerações.
Um grande abraço para toda a Tertúlia.
Henrique Cerqueira

Anónimo disse...

Caro Luis Graça
Acho que no meu comentário anterior fui bem explicito,mas falemos de temeridades.
Em gadamael não podiamos ter esse "luxo".Para o mato ía-se só a nivel de companhia e a maioria das vezes reforçada com um pelotão de milicias.Estava em permanência uma boca de fogo (obus)em prontidão absoluta,isto é ,todos os serventes permaneciam no espaldão,prontos a fazer fogo de imediato já com o obus carregado.O mesmo acontecia com o pelotão dos cnhões s/r e dos morteiros 81.Nos postos de sentinela durante o dia estavam dois soldados e à noite três.No posto de comando e transmissões,estava-se em rádio escuta permanente...etc..etc.A segurança do aquartelamento era de prioridade absoluta.Os soldados iam buscar a "vianda" de marmita e comiam nos abrigos....
Como vês não havia lugar a temeridades,porque estas são sempre circunstanciais em relação com o meio-ambiente.
Nem se quer as minhas idas a Cacine (com autorização superior claro)para comer cocos e "dasanuviar" considero uma temeridade.. apenas era fruto do meu "desespero".
Desculpa o desabafo.Acho que me excedi.

C.Martins

Hélder Valério disse...

Caros camarigos

Esta questão revelou-se, afinal, bem mais importante do que à primeira se poderia pensar.

Tomou-se conhecimento, em discurso directo, de como foi tomada a decisão de uma jovem esposa e mãe de ir até à Guiné. Tomámos conhecimento, através de relato firme e directo, como foram as 'aprendizagens'.
Tal como um 'interessado', o Henrique Cerqueira, diz, perante algumas das observações críticas que surgiram (e eu próprio, não neste, mas noutro post, também considerei temerária a decisão),
"não quero estar aqui com justificações ,só quero é participar experiências com todos e além disso é mesmo bom escrever com a malta das nossas gerações."

Pois é disso que se trata. O que quer que seja que hoje possamos dizer não altera os factos, que têm essa característica precisa, são factos, são teimosos. Não vale estarmos a ajuizar comportamentos passados, à luz dos nossos entendimentos de hoje, e mesmo relacionando-os com o tempo real, o tempo vivido, sabemos bem que as circunstâncias não eram iguais em todo o lado e para toda a gente, aliás como por aqui já foi referido.

Neste momento o que me parece ser mais importante realçar é que, bem pesadas as coisas, os 'ganhos' foram consideráveis. Para além da harmonia conseguida pelo casal, a vivência presenciada e 'praticada' pela "NI" constituiram marcas indeléveis que as suas palavras deixam transparecer.

Confesso que fiquei com alguma curiosidade em saber que recordações terá o "Miguel" desse tempo, do ambiente, das pessoas e dos medos, se é que chegou a tê-los.

Abraço
Hélder S.

Henrique Cerqueira disse...

Caros Camaradas da Guiné e em especial Luís Graça e Hélder Valério.Vocês são mesmo uns bacanos e como tal vou tentar responder à vossa curiosidade em relação ás memórias do Miguel meu filho.
Na verdade actualmente ele não se lembra de nada ou quase nada,pois que na altura ele só tinha dois anos,aliás foi em bissorã que deixou de mamar na chupeta já que a nossa macaca se encarregou de lha tirar e a partir daí deixou de querer a chucha(ele lhe chamava de "pipi" vá-se lá saber porquê)
Na altura ele ficou um pouco afectado pelos ruídos estrondosos,tais como foguetes.É que ele com a mãe chegaram ao Porto em 29 de Junho e como moramos na Foz nessa noite houve foguetório na Afurada margem Sul do Douro e ele segundo a Ni assustou-se e perguntou pelo abrigo,mas na verdade rapidamente ele esqueceu essas senas e ficou tão normal como outra criança qualquer da sua idade,daí ele hoje em dia não tem lembranças quase nenhumas.E o mais engraçado é que em Bissorã estava a aprender com muita rapidez o Balanta e o Cariolo.
Bom camaradas é mais ao menos isto que tenho para vos contar e uma ves mais o grato prazer de comentar estas histórias com a malta.Um Abração.
Henrique Cerqueira e NI

Marcel disse...

Estimado Henrique,
Yo no se si te acuerdas de mi. Soy Felipe Glesener, de la cooperacion belga en Cajamarca, cuando la revolucion de los claveles, estaba contigo en tu casa comentando los acontecimientos. Si eres qui pienso, estoy contento de sabernos aun en vida y con el espiritu combatiente. No se como contactarte por otra via, asi que te dejo mi correo por si acaso. phglesener@yahoo.fr.
Con un fuerte y entrañable abrazo,
Felipe.

zinha disse...

k giro Ni! Foram tempos k jamais esqueceremos e k apesar de tudo, o saldo foi possitivo! Obrigada por todas estas recordações.Bjnhs Zinha

zinha disse...

recordar é viver!
Obrigada Ni por estes momentos k jamais esqueceremos.
Bjnhs
Zinha