terça-feira, 24 de maio de 2011

Guiné 63/74 - P8318: Notas de leitura (241): Porque Perdemos a Guerra, de Manuel Pereira Crespo (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Maio de 2011:

Queridos amigos,
O depoimento do Almirante Pereira Crespo é de uma grande coerência e dignidade para um homem com a sua formação. Veio a talhe de foice respigar as suas considerações acerca das conversações Senghor e Spínola que, como todos sabemos, foi o rastilho para a criação da fábula federalista e um dos ingredientes para o spinolismo.

Um abraço do
Mário


O Almirante Pereira Crespo e a guerra da Guiné

Beja Santos

Ministro da Marinha entre 1968 e 1974, o Almirante Manuel Pereira Crespo foi considerado como uma das figuras mais distintas da Armada. A sua ligação à Guiné começou ainda nos anos 40 quando foi nomeado Chefe da Missão Geo-Hidrográfica, funções que exerceu durante 10 anos. Importa salientar que sob a sua direcção foram elaboradas a maior parte das cartas hidrográficas e tipográficas da Guiné portuguesa bem como a rede geodésica do território. Conheci directamente o impacto desse trabalho, em Mato de Cão lá estava e permanece a marca dessa missão Geo-Hidrográfica, destinada a medir a altura das marés; tal como o marco existente em Ponta Varela.

“Porque Perdemos a Guerra” (Edição Abril 1977) constitui o seu depoimento sobre as razões do envolvimento de Portugal e a sua explicação para a derrota. Começa por avançar com noções sobre a guerra e estratégia, explana sobre as políticas de coacção, as diferentes soluções da guerra, as várias estratégias e as possíveis soluções de compromisso. Após este preâmbulo, tece considerações sobre a conjuntura internacional e a natureza da guerra que enfrentamos, confronta as teses de Marcelo Caetano e vai sempre encontrando argumentação para as demonstrar como incontornáveis, na lógica da defesa da Pátria.

É exactamente quando aborda eventuais quadros de negociação com o inimigo que se irá referir às conversações que António de Spínola teve com Senghor, em 1972. Tem todo o cabimento, neste contexto de se registarem os depoimentos de todos os matizes quanto ao conflito, ouvir as suas considerações:

Na Guiné, em meados de 1972, surgiu, por intermédio do presidente Senghor, do Senegal, uma hipótese de negociações entre as nossas autoridades e Amílcar Cabral. Esta hipótese, na qual o general António de Spínola depositou grandes esperanças, merece uma referência especial, pelas nefastas consequências que provocou em alguns oficiais que prestavam serviço naquela província e que passaram a descrer da política ultramarina do Governo.

Tanto quanto me recordo, seria acordado um cessar-fogo, Amílcar Cabral regressaria à Guiné, colaborando no Governo e, em prazo a fixar, os guinéus seriam consultados sobre o seu destino, aceitando o Governo de Lisboa a independência, se o povo daquelas terras assim o desejasse.
 São evidentes os pontos fracos deste projecto.

Amílcar Cabral não regressaria à Guiné como vencido. Manteria intacta a estrutura militar do PAIGC e não se compreende muito bem como viriam a funcionar as relações entre os guerrilheiros e as nossas tropas.
Também não desistiria de amarrar ao destino da Guiné o arquipélago de Cabo Verde. E, de acordo com a ética dos chefes políticos e militares da época, seria indigno negociar o futuro daquelas ilhas, nas costas dos seus habitantes, profundamente marcados pela cultura lusíada.
No que se refere a Angola e Moçambique, o facto de aceitarmos negociar com o inimigo, antes de se considerar vencido, iria moralizar grandemente os grupos armados.

Quando o assunto foi analisado em Lisboa, alguns foram de opinião de que as negociações propostas escondiam uma armadilha de Amílcar Cabral. Depois de instalado na Guiné, promoveria infiltrações nas tropas negras que nos eram fiéis e, na ocasião mais oportuna, procuraria a vitória por um golpe surpresa.
Eu admitia que tal armadilha não existisse nas intenções de Amílcar Cabral e acreditava no seu desejo de negociar com os portugueses nas condições atrás referidas, que, embora vagas, eram-lhe muito favoráveis. Conhecera-o na Guiné. Era um homem de muito valor, sem preconceitos raciais e muito chegado aos portugueses, entre os quais tinha bons amigos. Sempre pensei que lhe seria muito desagradável a convivência com Sékou Touré. De resto, é possível que, já nessa altura, receasse ser assassinado.

O que não acreditava é que a URSS, só pelo facto de Amílcar Cabral se querer entender com os portugueses desistisse das suas pretensões sobre a Guiné portuguesa, óptima posição estratégica para a expansão russa no Senegal e região onde se situa o melhor porto natural de África ocidental.
Admitia, por isso, que, depois de Amílcar Cabral se unir aos portugueses e abandonar os russos estes, com auxílio de Sékou Touré, o denunciariam como traidor e prosseguiriam a luta com um novo chefe.

As condições geográficas da província, extraordinariamente favoráveis ao desenvolvimento de uma guerra subversiva, não exigiriam muita gente. Algumas centenas de homens seriam suficientes (…) Processar-se-ia, assim, na Guiné, um grave desaire, que, além do mais, teria reflexos imprevisíveis na defesa de Angola e Moçambique.
De qualquer forma, o projecto de negociações, antes de ser abandonado, foi cuidadosamente estudado por chefes políticos e militares, tendo havido, para apreciar a matéria, uma reunião do Conselho Superior da Defesa Nacional, a que estive presente, presidida pelo Almirante Américo Tomás e a que assistiu o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas”.

As observações de Pereira Crespo, como hoje é sabido, enfermam de vários enviesamentos. Primeiro, Cabral nunca foi ouvido sobre as conversações Senghor-Spínola. Segundo, é necessário fazer política numa atmosfera de irrealismo para se visionar Cabral como encarregado de Governo e as tropas do PAIGC a provocar golpes de Estado entre Fulas e Mandingas. Terceiro, a URSS, como se comprovou depois de 1970, em que passou a ter um maior acesso ao porto de Conacri, nunca utilizou o porto de Bissau depois da independência, o espantalho soviético foi mesmo buscado à força. E, goste-se ou não, há que reconhecer que a negativa de Caetano para a continuação de conversações com Senghor fomentaram um descontentamento em Spínola e nos seus colaboradores próximos. Inequivocamente, este o acontecimento que marcou a separação entre Caetano e Spínola.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8304: Notas de leitura (240): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (5) (Mário Beja Santos)

9 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Eu estava a ver se entendia Porque Perdemos a Guerra, título da obra do almirante Crespo, e não vejo nada disso em mais este trabalho do Mário Beja Santos. Isto não tem continuação?

Abraço,

António Graça de Abreu

Torcato Mendonca disse...

“###Porque Perdemos a Guerra” (Edição Abril 1977) constitui o seu depoimento sobre as razões do envolvimento de Portugal e a sua explicação para a derrota.####
em ###copy/paste

Devias sublinhar as contradições do livro e do pensamento nele expresso.
Depois e mais importante;Portugal não foi derrotado.

É polémica esta recensão.
Não concordo e porque discordo? Porque tem que haver sempre uma crítica á obra em questão.

Um abraço Mário desta vez discordamos.
Ab T.

Anónimo disse...

Parece, mais uma vez, tortuoso e desfocado, o comentário do Dr Beja Santos; sem prejuízo de uma interessante aproximação ao assunto, a fazer por outra via.

SNogueira

Anónimo disse...

"Terceiro, a URSS, como se comprovou depois de 1970, em que passou a ter um maior acesso ao porto de Conacri, nunca utilizou o porto de Bissau depois da independência, o espantalho soviético foi mesmo buscado à força".

Beja Santos, é mais um livro que me poupas a ler.

Apenas acho que não te apercebes-te bem do interesse soviético na Guiné Bissau, nessa do "espantalho soviético".

Talvez nas tuas visitas a Bissau, não te tenhas apercebido da construção do edifício desproporcional da embaixada soviética, que mais parecia um quartel,
e talvez não te tenhas apercebido que durante anos havia um avião semanal Tupolev,
e que o porto de Bissau, só era usado em casos muito excepcionais, pois que navegar o canal do Geba para um "UIGE" ou outros da Sogeral, era uma coisa, já para os monstros soviéticos só mesmo quando vinha material de guerra tipo camiões ou carros de combate.

Lembremo-nos do acordo de pesca soviético que durante vários anos com Luis Cabral e Nino, em que havia um presença macissa nas águas de Bissau, com uns navios próprios de pesca e armazenamento, descomunais.

Beja Santos, na Guiné, em Angola e penso que em Moçambique, foi exorbitante a presença soviética.

Beja Santos é a primeira observação que não concordo contigo.

Antº Rosinha

Anónimo disse...

António Rosinha.Os Soviéticos em Mo_
çambique e não só.Os Chineses tam_
bém.Logo ali ao lado construíram um
caminho de ferro Tanzânia-Zâmbia,com
pessoal Chinês no material rolante,
para darem saída ao cobre da Zâmbia,
afim de este não ter que pagar portes
no porto da Beira.Falava-se até que
nas "horas vagas"aqueles técnicos,
davam "aulas" de guerrilha à FRELIMO
e iam fazer exercicíos de fogo real,
saltando para o meio da picada,"afinfando"umas valentes Ro_
ketadas nas viaturas do E.P.
Carlos Nabeiro

Mário Beja Santos disse...

Meu caro Torcato, As minhas recensões, neste blogue, sempre se pautaram por falar exclusivamente da Guiné, procuro fazer o levantamento das diferentes matérias referentes à guerra ou à História, com ou sem literatura. Foi o almirante Pereira Crespo quem intitulou o seu escrito, as contradições são sobejamente conhecidas, vêm na sequência de uma orientação ideológica que procura provar e comprovar que a guerra era justa e fomos derrotados pelo inimigo interno. Não se podem, por sistema, criticar as obras que são alvo da recensão, só algumas ideias-chave, já tomei posição sobre estes dislates entre a coerência política (neste caso de um servidor de Marcelo Caetano) e o conhecido cenário da perda de credibilidade internacional do nosso processo colonial e da perda de vontade interna, em várias frentes. Querer repetir este enunciado no contexto deste tipo de recensões é atear falsas discussões, recensão é recensão, inventário é inventário, não são altares de vaidades e nós estamos aqui para convencer os convencidos. Recebe um abraço do Mário

AQUILES disse...

Não vou aqui concordar nem discordar. Continuo a dizer que a história só se escreve 50 anos após a morte do último interveniente nos factos que se avaliam. Livre das, embora justas, emoções dos intervenientes. Porque aplicando emoções não há clareza nas avaliações. É assim e paciência. Nenhum de nós terá acesso à história dessa guerra, que só se iniciará para lá de 2040.
O que se deixa são testemunhos para depois os historiadores analisarem. As nossas opiniões, por muito válidas e respeitáveis que são, estarão sempre nubladas pela jugo do juízo da emoção.

José Grave

Torcato Mendonca disse...

Eu compreendo, eu compreendo-te Caro Mário. Oxalá outros, a quem essas tuas palavras mais se dirigem, o entendem.

O Portugal derrotado arrepia-me.
É outro assunto. Para um dia se te não importas. Não consigo esquecer e perdoar? Porquê? Sabes Mário, eu não sinto o que outros sentem em relação a determinados complexos.
Em conversa disso falaremos.Obrigado pelas palavras que me fizeram sorrir. É pois É!
E continua nas tuas recensões. Aborrecidas? Talvez para alguns o sejam. Eu gosto e se não gosto não continuo a ler. Não acontece.Até tinha uma pasta com elas,. a tua estadia na Guiné e etecetera...
Abraço do Torcato

Jorge Narciso disse...

Caro Mario

Finalmente reagiste, e com isso me congratulo sinceramente. Paso a explicar.
Lido, ontem, este Post e os comentários entretanto aduzidos, foi-me escorrendo dos dedos, com intenção de o publicar, um texto, do qual aqui simplesmente respigo o enunciado/"refrão":

O Ministro da Marinha de Portugal entre 1968 e 1974, homem com fortes ligações à Guiné desde os anos 40, logo muitos anos antes do conflito que vivenciámos (muitos outros anteriores, como bem sabemos, opuseram Portugal aos naturais) traduziu em letra de forma e logo como titulo de livro, a assunção e afirmação de um facto:
PORQUE PERDEMOS A GUERRA.

Só que, a determinado momento assustei-me, o texto já ia nos 6 mil e tal caracteres (apesar de tudo guardei-o mesmo inacabado) e como em anteriores situações semelhantes - alguns causticos e desajustados comentários a recensões que produziste - resolvi desistir.

Motivo : a tua admiravel e consistente resitencia, traduzida na forma como, independentemente de tentativas de condicionamento, continuaste sempre a tocar para a frente a "caravana".
Assim me Inibi assim de fazer algo que sei bem dispensas: que outros te defendam.

Mas, repito, desta vez fiquei aliviado com o inquestionavel exercicio dos teus direitos, desde logo à justa indignação e ao de poderes exprimir opinião própria agora, e não só a partir de 2040, data a que, e pela ordem natural das coisas, muitos de nós dificilmente chegarão.

Por aqui me fico, não vá de novo isto ficar grande de mais e me desencorajar de carregar no "Publicar", mas não sem que te apele a que continues com as tuas apaixonadas leituras e nos vás continuando a dar o prazer de as relatares.

Cá vai então (sem revisão) com um forte Abraço

Jorge Narciso