terça-feira, 13 de setembro de 2011

Guiné 63/74 – P8772: Memórias de Gabú (José Saúde) (1): No declinar da nossa presença em terras guineenses… A despedida!


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.



NO DECLINAR DA NOSSA PRESENÇA EM TERRAS GUINEENSES…
A DESPEDIDA!


Depois da minha primeira opinião subscrita no blogue, ajudando o seu contexto para uma apresentação formal de um homem que viveu de perto as contingências da guerrilha (*), insiro-me, agora, sobre uma outra perspectiva que refere os momentos da nossa despedida. Isto é: os instantes derradeiros vividos ao serviço da CCS do BART 6523 em Nova Lamego – Gabú – com o PAIGC e a “luta” constatada com as milícias que não aceitavam, em parte, a sua eventual subserviência aos futuros tomadores do “trono” guineense. O pessoal estava armado e, a dada altura, deixaram antever que a ocasião passava por pedir meças àqueles que com eles conviviam amiúde. Porém, tudo não passou de “fumaças” uma vez que o entendimento prevaleceu e “a malta”, ordeiramente, retirou-se. Para trás ficaram pedaços de histórias da nossa presença naquele espaço guineense. Já no trono do descanso registei, e ficou escrito nas minhas memórias, o primeiro contacto com um grupo do PAIGC em pleno tempo de reconciliação.



A Revolução dos Cravos – 25 de Abril de 1974 – trouxe à ribalta valores morais a um povo deprimente que orava pelo fim da guerra no Ultramar. E se existia uma elite que defendia, intransigentemente, a manutenção do conflito, do outro lado estava uma população deveras ansiosa que temia a chegada da hora para ver partir o seu ente querido para as terras de além-mar. Todavia, as suas evocações não eram vãs uma vez que no interior do exército português havia, também, quem reclamasse eventuais sinais de justiça. Nesta encruzilhada de opiniões perspectivava-se, então, o pressuposto fim do conflito. É certo que os clamores de revolta vindos da elite dos novos capitães, eram sordidamente sufragados pelos agentes do regime. Assim, no breu de uma noite sem sono os “revoltosos” assumiram o comando das operações e romperam com os velhos estatutos de “idolatrados” senhores de colarinho branco. Seguiu-se então a libertação do povo e subsequentemente das colónias portuguesas. Os militares regressaram com euforia à Pátria de Camões.

Após um período deveras conturbado em toda a zona Leste (Guiné), e o ecoar sistemático de bombardeamentos nocturnos às nossas tropas, a que acresce a onda de confrontos no terreno com o IN que se estendiam entre emboscadas e minas, a que acresce o número de baixas registadas, gozava eu, na altura, umas merecidas férias na metrópole quando rebentou o 25 de Abril. Tinha vindo da Guiné a 10 de Abril de 1974. Neste percurso, e por mera curiosidade, deparei-me com a revolução em território luso. Estava em casa dos meus pais, já falecidos, em Aldeia, hoje Vila, Nova de São Bento. Assisti, assim, in loco à exaltação do povo. Todavia, no dia 9 de Maio, tal como estava programado, regressei a solo guineense deparando-me então com as mais díspares situações de revolta após a minha chegada a Nova Lamego. As milícias, e a população em geral, reclamavam segurança. Direitos anteriormente adquiridos. Estavam armados. Os tumultos eram frequentes. Junto à porta de armas abancavam e caprichosamente faziam exigências. Aliás, a porta do quartel registava diariamente um aglomerado de gente que, em coro, reclamava a sua própria defesa. Compreendia-se!

À parte desses tumultos o pessoal começou a preparar, cuidadosamente, o nosso adeus a Nova Lamego. Lembro a tarefa incansável de rebentar o material explosivo contido no paiol. O Santos, furriel de minas e armadilhas, encarregou-se desse trabalho e contou, também, com a minha ajuda e do Rui, furriel ranger, tal como eu. Passávamos manhãs a efectuar tremendos rebentamentos. Havia ordens e nós cumpríamos.

Por outro lado seguiam-se longas palestras com os chefes de tabanca, população, chefes das milícias e, naturalmente, com aqueles que connosco travaram anos de luta armada.

Por fim o desarmamento das milícias consumou-se sem problemas de maior. Tudo correu pela melhor e prevaleceu o velho entendimento entre homens de coração imenso.

Recordo que após o 25 de Abril a ordem, em geral, determinava que o pessoal deixaria de andar armado. E assim foi. Cumpriu-se a ordenação sendo que, como o racional determinava, nós deduzíssemos que do lado do PAIGC a ordem seria levada à letra. Vivia-se, digamos, uma fase algo tumultuosa. Indecisa. As conversações entre as partes protelavam-se e no terreno impunha-se o cumprimento das ordens emanadas pelos respectivos superiores hierárquicos. Havia disposições que os graduados, já informados, tentavam passar aos seus subordinados. Nunca abdicando de princípios acertados o tempo pós revolução de Abril foi fértil em descobertas que para nós constituíram surpresas imensas. Inolvidáveis. A dada altura, travando conversa com um capitão do PAIGC no bar de sargentos em Nova Lamego, o rapaz, ainda jovem, virou-se para mim e disse que me conhecia: “tu és o furriel Saúde, de Operações Especiais”. É verdade, comentei. Concluí que afinal nós éramos alvos, talvez silhuetas, já conhecidos. Uma guerra, ou guerrilha, tem obviamente consequências sempre inacabadas. Impensáveis.

Um belo dia, já em tempo de reconciliação, fizemos uma coluna a Bafatá. A viagem passou por ir buscar mantimentos para a nossa zona, sendo que anteriormente a coluna fazia-se com a uma escolta do pelotão de chaimites sediado em Bafatá. Carregámos o previamente solicitado e toca a fazermo-nos de novo à estrada. No regresso a Nova Lamego, e ao meio da viagem, surgiu-nos pela frente um grupo do PAIGC que nos mandou parar. Cumprimos religiosamente as suas ordens. Queríamos paz e nada mais. Só que de armas em punho os antigos guerrilheiros pareciam desconfiar da nossa franqueza. Pensei: “estamos lixados”. Tanto mais que a forma de abordagem, na minha opinião, não me pareceu correcta. Perguntava-me o comandante do grupo se trazíamos armas. Disse que não, claro. Relembrei-o das normas já em vigor entre as partes. Porém, alguns dos seus soldados, antes inimigos, agora amigos, nada conformados com a minha justificação de que se tratava, apenas, de uma coluna de abastecimento, toca a revistar minuciosamente o “material”. No final, e já numa fase de plena conversação, prevaleceu o entendimento e o abraço saudável entre dois homens que anteriormente se posicionavam em “esquadrões” adversos.

A noite de 3 para 4 de Setembro de 1974 no quartel de Gabú esteve ao rubro. Foi a entrega das nossas instalações ao PAIGC. O pessoal, em uníssono, deu azo a alegrias nunca imaginadas. O convívio foi bonito, recordo. Às 8 horas do dia 4, como era costume, preparou-se em conjunto o render das respectivas bandeiras. De um lado as nossas tropas, no outro, as forças do PAIGC. Nós hasteámos a nossa bandeira, de seguida retirámo-la do mastro, sendo que de imediato o PAIGC içou a deles. Um acto que colocava ponto final às tréguas sentidas ao longo dos muitos anos de guerra.

Momentos inesquecíveis de quem viveu na Guiné o pós 25 de Abril!

Um abraço,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
Foto: © José Saúde (2011). Direitos reservados.

___________

Nota de M.R.:

(*) Este é o primeiro poste desta série.

Primeiro poste sobre o autor em:

14 comentários:

Anónimo disse...

Caro José Saúde,só um pedido de esclarecimento:

Nós andávamos desarmados e eles armados?
Eles mandavam-nos parar e nós cumpríamos as ordens? Queriam revistar-nos e nós deixávamos?

Um abraço,
Carlos Cordeiro

Torcato Mendonca disse...

José Saúde:eu cá pós o 25 de Abril, no célebre Verão quente, mesmo antes, em viagem andei sempre armado. Era revistado etc. Aí jamais andaria desarmado. Os acordos fazem-se entre homens que os vão cumprir. Esses tipos nunca iriam cumprir nada.

Depois ...depois passaram aos fuzilamentos.

Esses testemunhos vossos são importantes.

OB e Ab do T

José Marcelino Martins disse...

Assim é, camarigos.

TEIAS QUE O IMPÉRIO TECE.

Felizmente já não estava na Guiné e, portanto, a minha memória é muito diferente da daqueles que viveram a entrega (a rendição) aqueles que hoje vandalizam aquele país.

Mas houve premonições:

A 24 de Agosto de 1974, em Canjadude, onde passei o meu tempo de serviço (além de algum tempo, pouco. em Nova Lamego), ao ser içada a bandeira do PAIGC, esta, sob a influência de um sopro de vento, soltou-se e caiu por terra.

Quanto ao andar "livremente" num país que ainda era PORTUGAL, era mentira. Havia "barragens" nas estradas. Vejam as fotos do Fur, Mil Enf João Carvalho (CCaç 5)ou procurem na Wiki (guerra colonial) e a foto está lá. Dois paus ao alto, mal se segurando, e uma corda a atravessar a estrada.

Anónimo disse...

EM AGOSTO DE 1974 FUI ENCARREGADO DE COMANDAR UMA COLUNA AUTO DE 22 VIATURAS, DE PAÚNCA PARA BISSAU, COM O NOSSO MATERIAL, E AS ORDENS ERAM SE FOSSEMOS MANDADOS PARAR, OBEDECER E NÃO PEGAR EM ARMAS, O QUE INEVITÁVELMENTE ACONTECEU, UMA QUANTIDADE ENORME DE ELEMENTOS DO PAIGC, MANDOU-NOS PARAR VERIFICARAM AS VIATURAS (ELES ESTAVAM ARMADOS ATÉ AOS DENTES) E MANDARAM-NOS SEGUIR
JOSE CARVALHO
EX FUR MIL OP/ESP

Carlos Vinhal disse...

Caro camarada Saúde
Escreveste de modo claro o ambiente vivido na Guiné depois do 25 de Abril.
Para nós, os mais velhos, que passamos por aquele TO antes de vós, é fácil falar e vir com teorias contrárias ao desarmamento, "submissão" ao IN, etc. Pergunto se o nosso Exército tinha cobertura política nesses tempos conturbados. Em caso de conflito armado quem assumiria a responsabilidade dos mortos e feridos?
Quando da invasão da Índia, as ordens do Salazar eram explícitas: resistir até à morte. No caso da guerra colonial, pós-25A, subentendia-se que resistir até à morte, jamais.
Muito obrigado pelo teu testemunho.
Carlos Vinhal
Leça da Palmeira

Luis Faria disse...

Caros amigos

Julgo que,para aqueles que sofreram a guerra, que andaram aos tiros,que sentiram as perdas e baixas de companheiros e amigos e que posteriormente vieram a ter que fazer uma transição nos moldes apontados,deve ter sido bastante dificil e revoltante de aceitar essa espécie de submissão,ao que percebi unilateralmente ordenada.

Para quem lá chegou já no finais da guerra,com certeza que seria bastante diferente a maneira de sentir situações deste tipo.

Graças a Deus não tive que passar por isso!!

Um abraço
Luis Faria

Anónimo disse...

Em Gadamael não foi assim.
Sempre que vinham ao aquartelamento entregavam as armas que eram devolvidas quando saíam.
Fui a uma base na Guiné-Conakry e fui armado e não entreguei a arma porque não ma pediram.
Nunca notei qualquer subserviência de ambas as partes.
Quando da minha ida à Guiné-Conakry fui interceptado por militares desta,tendo os elementos do paigc dito que éramos convidados deles e se nos quisessem prender que fossem a Gadamael.
Nunca foram.
Termino dizendo que dentro do território da Guiné jamais me deixaria desarmar mesmo recebendo ordens superiores e não permitiria qualquer comportamento menos correcto de qualquer das partes.
Felizmente nunca tal aconteceu.
Naquelas circunstâncias o bom senso devia ser a regra.
Já em Bissau fiz patrulhamentos em conjunto com elementos do paigc e estes colocaram-se voluntariamente sobre o meu comando.
Sei que houve problemas noutros sítios , nomeadamente em Buruntuma,mas como não assisti aos acontecimentos,não comento.

C.Martins

Luís Dias disse...

Caro José Saúde

Estes testemunhos são deveras importantes para percebermos o que se passou após o 25A naquelas terras.
Como diz o camarada Luís Faria: "Graças a Deus que não tive de passar por isso".
E essa da premonição da bandeira do PAIGC que o José Marcelino Martins refere é mesmo interessante.
Um abraço.
Luís Dias

Anónimo disse...

"Já em Bissau fiz patrulhamentos em conjunto com elementos do PAIGC e estes colocaram-se voluntariamente sobre o meu comando."-diz o C Martins.

Para quem viveu em Bissau nesse periodo, era pois esse o ambiente..de "confraternizacao" entre os militares portugueses e a guerrilha !!! Experiencia distinta ter-se-a vivido Angola e Mocambique !

Mas na minha Guine, regra geral foi essa a experiencia...

Mantenhas

Nelson Herbert

Hélder Valério disse...

Caro camarigo José Saúde

Fizeste bem em apresentar a tua experiência, a tua vivência, dos acontecimento de que foste testemunha directa e, em algumas situações, agente das mesmas.

E digo isto apenas porque tem havido uma perigosa tendência para extrapolar para todo o território o que se testemunhou num determinado local.

Depois, temos que é perfeitamente possível haver sensibilidades diferentes, visões diferentes, posturas diferentes, situações diferentes, o que é normal acontecer para casos como aqueles que se viveram no 'fechar da guerra'.
Não me parece justo que HOJE se procure 'julgar' situações passadas com a ligeireza com que tenho apreciado por aí e por aqui também.
É preciso saber ouvir os relatos e procurar enquadrar-se no tempo e no lugar.
Entretanto, a guerra, 'aquela', acabou.

Abraço
Hélder S.

Manuel Reis disse...

Caro José Saúde:

Gostei de ler o teu depoimento do final da guerra que antecede a descoloninação. Tema já aqui abordado várias vezes, não deixa de ser uma narrativa interessante, pois todas têm um enquadramento diferente e as reacções são as mais diversificadas.
Compreendo que quem não teve de passar por estes momentos os analise de outros ângulos e não entenda determinado tipo de procedimentos.
Havia ordem superior para se criasse um bom relacionamento entre as forças em confronto e assim facilitar a passagem do testemunho, isto enquanto as negociações em Londres, sobre a descolonização, não avançava. A lei do bom senso também nos obrigava a proceder com precaução.
Neste contexto cada situação era um caso e o relacionamento com o PAIGC dependia de modo como considerássemos mais útil e aconselhável.
Já aqui relatei o relacionamento da minha companhia com o PAIGC (em Cumbijã) sobre este tema.
Não houve o mínimo problema e era notório em todos um sentimento de satisfação pelo conhecimento mútuo e pelo relato de alguns contatos no mato. Não havia manifestações de glória, nem de desagrado por feitos ocorridos, sinceridade não correspondida pelas chefias militares.
Acrescento apenas que estes encontros eram efectuadaos nas imediações do aquartelamento, em que eles estavam armados e nós desarmados.
Não lhes era permitida a entrada no aquartelamento, estando esta reservada apenas aos Comissários Políticos, devidamente identificados,quando pretendiam efectuar secções de esclarecimento.
Um abraço.
Manuel Reis

Antº Rosinha disse...

Os comandantes militares portugueses, quando o conflito começou em 1961 e depois em 1974, demonstraram uma falta de profissionalismo e portuguesismo e até de cultura política, que ficará para a história como um exemplo a não seguir por qualquer exército.

O mesmo não se poderá generalizar os anos de luta, antes pelo contrário, há testemunhos de reconhecimento internacional e nacional do esforço e valor da intervenção desses chefes.

Anónimo disse...

Camaradas, é válida a opinião de todos e cada um terá tido a sua vivência!

Se aqui entro é apenas e só porque se fala no Cumbijã!

O Cumbijã, sim, também conheço!

Nunca a C.Cav. 8351 que tive a honra de comandar andou desarmada!

A minha Companhia saiu do Cumbijã a 25 e 26 de Junho de 1974 para Buba de onde embarcou na L.D.G. Bombarda com destino a Bissau.

Em Maio o milícia nº79173 Selo Baldé pisou uma mina na região de Nhacobá e a minha Companhia 8351 fazia diariamente a coluna Cumbijã-Aldeia Formosa-Cumbijã.
Segundo o escrito pelo alferes encarregado de registar a "história" da minha Companhia em Junho e passo a citar" A actividade foi bastante reduzida...no entanto foram efectuadas todas as patrulhas que vinham sendo feitas do antecedente, muito embora não se realizassem contra-penetrações" e mais à frente " vários grupos In, andaram nas proximidades da estrada...tendo as nossas colunas de reabastecimento, por duas vezes, avistado elementos do P.A.I.G.C., que acenavam amigavelmente para as nossas tropas"
Nunca o Batalhão de Aldeia Formosa me deu qualquer ordem para desarmar os meus homens ou contactar com o ex-IN e nunca nenhum elemento do P.A.I.G.C. entrou no arame farpado do Cumbijã até ao dia 26 de Junho de 1974! (ou pediu para entrar)!
Cada um penou o que penou!
Agora fazer colunas diárias do Cumbijã a Aldeia desarmado, onde embrulhei tantas vezes,olhem não era capaz, ou se preferirem, não tinha coragem!

Referir que procedemos ao levantamento das nossas minas em Maio e parte de Junho em Nhacobá,Lenguel,Galo Cumbijã e rio Habi, cumprindo ordens.

Um abraço para todos
Vasco A. R. da Gama

Anónimo disse...

gosrei tudo do que li,mas eu estive lá numa época diferente.mas me tirarem a arma ia ser muito dificil eles sim eram maus para o povo e o sao até hoje eles lá respeitam alguém os nossos soldados negros os fuzilaram os que consiguiram ir para portugal,os prenderam mas respeito a todos mas que o 25 nao foi bem conduzido?nao abraços.