sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8955: Notas de leitura (295): Guiné - Apontamentos Inéditos, por General Henrique Augusto Dias de Carvalho (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Outubro de 2011:

Queridos amigos,
Estes apontamentos inéditos do general Dias de Carvalho que viveu na Guiné no final do século XIX constituem uma retumbante surpresa. O general percorreu o território continental e ilhas de lés a lés e deixou um documento manuscrito extraordinário, pelo pormenor e pela confiança depositada nas potencialidades da terra.
Devia ser lido por todos os guineenses, seguramente que esta leitura iria contribuir para o seu amor pátrio. Viveu ali dois anos a estudar culturas e perspectivas de desenvolvimento, mostrou querer conhecer o homem, os seus usos e costumes, a agricultura a hidrografia e até a etnografia e a etnologia.
Se fosse reeditado, este livro teria certamente farto acolhimento.

Um abraço do
Mário


A Guiné do final do século XIX, segundo o general Dias de Carvalho

Beja Santos

“Guiné, apontamentos inéditos”, de autoria do general Henrique Augusto Dias de Carvalho (edição da Agência Geral das Colónias, 1944) é um relato que não pode deixar insensível seja o investigador seja o amante das coisas guineenses. Este distinto oficial general cumpriu missões a fio por terras do Império.

Nascido em 1843, aparece em Macau em Fevereiro de 1867, encarregado de dirigir duas escolas regimentais e o serviço das obras públicas, e em 1872 foi nomeado condutor-chefe da colónia. Em 1877, foi nomeado para Moçambique, como administrador de concelho. Em 1878 passou para Angola entrando para o serviço das obras públicas de Luanda. Em 1884, organizou uma expedição científica às terras da Lunda, é um período em que se enche de prestígio quer pelos tratados celebrados, quer pela paz que obteve entre os povos da região, o reconhecimento da soberania portuguesa quer pelos estudos de valor científico extraordinário que realizou de colaboração com Luciano Cordeiro, Serpa Pinto, Capelo e Ivens, entre outros. Em 1895 é nomeado governador de um novo distrito e em 1889 escreve um livro fundamental A Lunda, onde demonstrou que aquela região fazia parte do Império português.

Em 1898 foi convidado pelo Marquês de Liveri a organizar com Vitor Cordon a Companhia de Comércio e Exploração da Guiné. Recorde-se que perto do final do século o futuro do desenvolvimento da Guiné era um verdadeiro quebra-cabeças, reabilitou-se a ideia das empresas majestáticas, o comércio guineense era na época liderado por franceses e alemães que se embrenhavam nos rios e rias. O general Dias de Carvalho desentendeu-se com o projecto do Marquês de Liveri, considerou inaceitável uma administração exclusivamente belga em território colonial português. Nesses cerca de dois anos que esteve na Guiné reuniu apontamentos científicos e tomou inúmeras notas que foram dadas à estampa neste livro editado em 1944. O general veio a falecer em 1908 e era possuidor de uma folha de serviços impressionante, tendo sido galardoado como homenagem póstuma, em 1934, com a ordem do Império Colonial.

O primeiro capítulo é dedicado à história da Guiné, não vale a pena determo-nos aqui, basta recordar que Avelino Teixeira da Mota, com o rigor científico que timbrava a sua investigação, escreveu em 1954 uma obra histórica definitiva que não tendo arrumado totalmente com as especulações e inúmeras lacunas (sobretudo ao nível da história anterior à presença colonial portuguesa) deixou esclarecido e arrumado o essencial sobre o descobrimento e história política posterior.

O capítulo seguinte é dedicado às ilhas e aqui o general, bem documentado, fala do sangue, suor e lágrimas que foi construir a fortaleza de Amura em S. José de Bissau. Escreve ele: “Durante a construção foi vitimado um batalhão completo de Cabo Verde com o seu comandante e governador, batalhão que foi substituído por um outro, tendo este e o anterior de combater de dia e de noite durante dois anos. A parte que ocupámos e ainda hoje ocupamos nesta ilha é limitadíssima; reduz-se a uma pequena área de 480 metros de cumprimento por 240 de largura, em que assenta a povoação mal alinhada, com algumas habitações de construção razoável, a maioria de paredes de adobes e também de palhoças”.

Refere a permanente instabilidade do viver dentro daquela praça-forte, com os Papéis sempre em desacato, a quem o governador Joaquim Correia e Lança apelida de “gentio traiçoeiro, cobarde e atrevido”. A vida fora de Bissau era praticamente impossível: “A população de Bissau quer expandir-se mas não se atreve. Muitos negociantes querem fundar feitorias agrícolas no interior da ilha mas não se arriscam no meio daquelas hortas selvagens. Na minha opinião deve ocupar-se militarmente a ponta do Biombo e o alto do Bandim, construindo-se pequenos fortes de onde a artilharia domine uma vasta extensão”.

É minuciosa a descrição das ilhas, seguramente que o oficial general pretendia fazer um levantamento de todas as potencialidades. O terceiro capítulo é dedicado à população, tem interesse pela observação e ingenuidade, se bem que etnográfica e antropologicamente esteja cheio de erros. Mas é bonito o que escreve, como se exemplifica: “O Fula é de cor, amarelo carregado ou mais propriamente vermelho acobreado, lábios delgados, dentes verticais, cabelos lisos que usam entrançados, com mais ou menos arte, feições inteligentes, extremidades finas, formas de corpo esbeltas e corpulência mediana. As mulheres são verdadeiros tipos de formosura cuja correcção de formas atrai a atenção”. Vai por aí fora, descre os Mandingas, os Beafadas, os Papéis, os Gurmetes, os Banhuns, os Balantas (são os povos mais democratas da Guiné: vivem em diversas povoações independentes entre si; não têm constituição política e nem reconhecem chefes de espécie alguma, cada Balanta é unicamente chefe da sua família), os Nalus e os Bijagós. E depois fala na lenda do Deus Branco. Tudo começara nas margens do Geba, ele viera das regiões do Norte, precedido de grande fama. O Deus Branco era contra o irã, e pregava a sua doutrina: quem tem muito reparte com quem não tem; ninguém pode matar o seu semelhante; as espingardas e pólvora só servem para festejos e defesa contra as feras; todos devem beber da água do Deus Branco, os que sobrevivem são considerados seus filhos. A fama desta entidade chegou a toda a parte. Dispôs-se a visitar os Bijagós mas recearam-se grandes complicações pelo fanatismo do irã e o Deus Branco desapareceu.

Escreve Dias de Carvalho: “Falando sobre este assunto com o Vigário Geral da Guiné, facultou-nos a leitura de um relatório do padre Henrique Lopes Cardoso, pároco do Cacheu, percorreu os diversos grupos de casas e foi recebido com regozijo geral”. É bem provável que se tratasse de um missionário francês proveniente da Senegâmbia, bem preparado para comunicar com a população nativa.

A seguir, o autor lança-se em vegetais conhecidos na Guiné e fica-se com a boca à banda. Ele escreve textualmente: abóboras, agriões e alface; algodão, ananás, arroz, bananeira e beldroegas, cacau, café, caju, couves, feijão, inhame, laranjeiras, mancarra, mandioca, mangueira, milhos, papaia, tabaco, tomateiro. Aparentemente, e segundo o seu relato, muitas das culturas europeias eram possíveis na Guiné. Falando da fauna, refere bois e búfalos, cabras e carneiros, burros e cavalos, elefantes, suínos, gazelas e veados, inúmeras aves, répteis e insectos. Estranhamente, é parcimonioso a falar do peixe: badejo, choco, dourada, garoupa, pargo e sarda. E diz laconicamente: há alguns mariscos e caranguejos. Misturado com o peixe, mas no contexto da fauna, refere a baga-baga como um dos maiores obstáculos aos trabalhos agrícolas.

(Continua)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 24 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8942: Notas de leitura (291): Arquitectura Tradicional da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 27 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8952: Notas de leitura (294): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte III): Cupelom, Pilum, Pilom, Pilão..., um bairro que dava de tudo, fervorosos muçulmanos, bajudas giras, futebolistas talentosos, destacados militantes do PAIGC, bravos comandos africanos... (Luís Graça)

2 comentários:

Adalgisa Cardoso disse...

Por gentileza gostaria que me ajudassem encontrar a bibliografia do meu bisavô bem como fotografias dele nos anos 1889 a 1908. Ainda Guiné Portuguesa foi padre em Cacheu.
Já fiz várias pesquisas e não encontrei. É muito importante para mom neste momento.
Obrigado. Adalgisa Lopes Cardoso

Anónimo disse...

Boa tarde,
Eu tenho este livro para venda.
A quem esteja interessado pode contactar: livros.letrasecompanhia@gmail.com
Muito obrigada,
Susana Almeida