quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9153: Notas de leitura (309): Guillaume Apollinaire, de George Vergnes (Manuel Joaquim)

1. Mensagem de Manuel Joaquim, ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67, com data de 5 de Dezembro de 2011:

Meus caros camaradas,
Aqui vai um texto do meu dossier de memórias de guerra. Aproveita-se alguma coisa dele? Os excertos transcritos talvez sejam demasiados mas acreditem que me esforcei para limitar o seu número. Fiquei sem coragem para cortar mais. Na altura, até foram sublinhados pelos seus variados leitores para os utilizarem como apoio à escrita de muita cartinha ou aerograma. Respeito e aceito o vosso critério para a sua publicação, com cortes ou sem cortes, ou para a sua não publicação.

Um grande abraço,
Manuel Joaquim


Cartas de guerra

“Aquele que não viu sacolas penduradas no pé de um cadáver que apodrece no parapeito da trincheira, não sabe como a morte é uma coisa simples”.
(Guillaume Apollinaire)

Guillaume Apollinaire (1880-1918), francês de origem polaca, escritor, crítico de arte e um grande ativista do chamado “vanguardismo”, no início do séc. XX. Foi o criador do adjetivo “surrealista” usado, pela primeira vez, para caraterizar a sua peça de teatro “ Les mamelles de Tirésias”.
Participou como voluntário na 1.ª Grande Guerra. Em abril de 1915 partiu para a frente de batalha como furriel do 38.º Reg. Artª. Em agosto foi promovido a 1.º sargento e em novembro aceitou, por convite, a promoção a alferes de infantaria.
Em março de 1916, foi ferido gravemente em combate por “uma granada 105”: um estilhaço furou-lhe o capacete e ficou alojado na cabeça. Foi trepanado, passou tempos maus no hospital mas recuperou o suficiente para, embora fragilizado, voltar à intensa vida intelectual de Paris.

Morre a nove de novembro de 1918, vítima da gripe espanhola que então atingia a Europa.


Um livro na guerra

Dias antes de partir para a Guiné, comprei o livro “Guillaume Apollinaire”, obra de George Vergnes, edição Ulisseia/1965. E assim levei comigo algo mais do que um simples livro biográfico, como se verá a seguir.
Este exemplar também fez a guerra, tendo sobrevivido ao clima tropical e às frequentes manipulações de que foi vítima o seu “corpo”, principalmente as suas partes mais “íntimas”. Está hoje um pouco combalido. “Posou” para a fotografia e, como veem, está apresentável apesar da idade e de, na Guiné, ter sido bem apalpado por muitas mãos. Mãos que nas suas páginas procuravam inspiração para os seus proprietários melhorarem a “expressão escrita” da sua correspondência de guerra.
Que partes íntimas eram? – Eram as mais de trinta cartas escritas por Apollinaire no campo de batalha e dirigidas a Madeleine Pagès, pessoa que conheceu no comboio quando se dirigia para a frente de batalha. As cartas revelam o crescimento de uma relação afetiva. A 1.ª carta é de 5/maio/1915 e a última de 22/dezembro/1915.

Apesar das diferenças, pequenas ou grandes, entre campos de batalha e ações de combate, os sentimentos da maioria dos combatentes serão parecidos quando estes afrontam o perigo e as duras condições de vida do teatro de guerra.
Passei os olhos pelo livro, o seu conteúdo entusiasmou-me, principalmente o das cartas de guerra que contém. Chegado a Bissau, li-o então a sério e percebi que essas cartas, 50 anos depois de terem sido escritas, estavam vivas e capazes de nos ajudar a descrever momentos da nossa vida de combatentes, com algumas adaptações ao cenário de guerra, físico e humano. Se para mim o interesse deste livro ia muito para além de nele figurar essa correspondência, esta foi para alguns outros o único assunto que os atraíu.
Esta espécie de biografia de G. Apollinaire passou de mão em mão e serviu de apoio a alguns de nós, também a mim, na redação das nossas cartas e aerogramas. Abriu muitas portas ao nosso pensamento e à nossa expressão escrita. Foi “bombeiro” a acudir-nos naqueles momentos em que até “o pensar” nos custava, quanto mais ter imaginação!
É possível que tenha acontecido algum tipo de plágio. Estávamos lá nós preocupados com isso! Qual plágio qual quê! “Voa carta, voa-voa, voa lá até Lisboa!”
Com as nossas próprias palavras ou não, o que cada um de nós queria era falar da situação em que estava metido e, ao mesmo tempo, tentar fortalecer relações afetivas cultivando a amizade e o amor. Queríamos compartilhar o sofrimento e as angústias, arranjar forças para vencer as dificuldades e agarrar o futuro com unhas e dentes. Queríamos paz de espírito e sonhar com o mundo que desejávamos encontrar quando tudo aquilo por que estávamos a passar fosse uma recordação. Queríamos manter bem vivo o desejo de ser feliz.

Para se compreender melhor o que está dito atrás, eis alguns excertos dessas cartas, com indicação da data em que foram escritas:

(5/5/1915) “Que extraordinária surpresa me esperava ontem (...) no meio de uma inacreditável chuva de granadas de canhões enfeitada de tiros de espingarda (...) o oficial do correio grita-me: “um embrulho para ti!” E a gentil encomenda (...) lá estava (...). Caixotão encantador carregando granadas deliciosas e pacíficas!
Agora, sentado em cima de um saco de areia, escrevendo sobre um tronco de árvore, revejo-a, pequena viajante (...) de longas pestanas e de rosto expressivo. Algumas horas num comboio! uma recordação maravilhosa e a guerra como cenário, com a chuva enquanto troveja, desesperada e mortalmente,(...).
(...) digo-lho muito francamente, pensei muitas vezes em si. Estou tão longe que posso muito bem dizê-lo sem a chocar. A sua carta levou dez dias a chegar-me às mãos e agora, que tenho a sua amável promessa, não terei resposta senão daqui a 20 dias ou um mês. Por isso escreva-me um pouco mais amiude, eu escrever-lhe-ei também o mais frequentemente possível, se você estiver de acordo.”
(11/5/1915) “Tivemos a mesma ideia, a mesma inquietação, um e outro: não nos deixemos muito tempo sem notícias (...). Escreva-me cartas grandes, pequena aparição encantadora. Não ouso pedir-lhe uma fotografia mas se soubesse o prazer que me dava ter uma (...). Nós estamos aqui como os animais selvagens na floresta, já não se conhecem as conveniências. Mas não se ofenda. (...). Envolverei o seu retrato numa tão grande devoção, tão terna que por mais longínqua que possa ser, ela não deixará de chegar até si, de a tocar.”
(25/5/1915) “Sim, pequena fada tão distante, pobre de mim, (...) você escreveu-me uma carta deliciosa (...) e eu sou um malandro por lhe ter escrito há alguns dias uma carta desiludida, desculpe-me(...). Li e reli essa bonita carta e como desejaria que uma varinha de condão acabasse com estas distâncias. (...) Mas como espero com impaciência, uma impaciência que é quase um desatino, essas fotografias de que me fala! Cresce-me água na boca (...).”
(3/6/1915) “Bom dia, minha senhora, sou eu mais uma vez. Importuno-a? Espero que não, senão você não me teria escrito. Por seu lado, porque se crê ou se diz um empecilho? ... Empecilho, a bonita criatura dos olhos profundos, de nariz esperto, que retrata a fotografia que você teve a gentileza de me enviar! (...) Mande-me mais fotografias suas, não abandono nunca mais a que já tenho. Guardo-a na algibeira do lado esquerdo do casaco.”
(4/6/1915) “Desculpe-me de a ter feito sofrer. Sou eu que sou parvo e às vezes enervado, não quero que esteja triste por minha causa. Estou tão contente por causa de si! (...) Você está sempre comigo na minha barraca, é verdade, e dorme aí mesmo sobre o meu coração, em imagem: a sua fotografia que é o que tenho de mais precioso juntamente com as suas cartas.”
(...)“Tímida e muda!!! Não seja nem uma coisa nem outra ... É a mim que deve sentir, ao longe, tão tímido diante da pequena fada maravilhosa que é você. Ajude-me, (...), a dominar a minha timidez que além de tudo fica mal a um soldado.”
(22/6/1915) “Você é bonita tanto de espírito como de aparência física. É por isso que os meus sentimentos estão mais à mercê dos seus que os seus dos meus. É portanto muito simples que você decida (...). Se não sente nada, isto tem somente uma pequena importância, um coração masculino pode suportar muitos golpes. Mas se sente a mínima hesitação, diga-o (...)”.
(1/7/1915) “ Escrevo-lhe no meio do horrível pavor de milhões de moscas azuis. Caímos num lugar sinistro onde todos os horrores da guerra, o horror do sítio, (...) ,se juntam à falta de árvores, de água, de terra autêntica até. Se ficamos aqui muito tempo pergunto a mim próprio o que nos acontecerá (...). Depois de vários dias de viagem com dormida suportável no chão, eis-nos em buracos de tal maneira que, em lá estando, penso que tenho vontade de vomitar. Com tudo isto, o cansaço (...).”
(10/7/1915) “Há tantos dias que não tenho podido escrever-lhe (...). Este setor é inimigo dos descansos. Amo-a também, Madeleine e amei-a desde que a vi. (...) e este último retrato traduz tão completamente a sua voluptuosa beleza que estremeço ...
(...)Os canhões, as metralhadoras trabalham, é um barulho infernal. As bengalas iluminam a noite.Que deseja saber do meu passado, (...)? (...) quer ter a certeza de que não há nada nas minhas amizades que deva afastar-me de si. E, com efeito, nada a deve afastar de mim. (...) Mas tenho amizades sólidas às quais você não quererá que renuncie quando as conhecer. Tenho amizades femininas muito sérias mas não se deve inquietar por isso ...
Desculpe-me uma carta tão mal alinhavada como esta. Esta noite pôs-me um pouco doido e estou doido por si, Madeleine .”
(20/8/1915) “Minha querida, beijo-a do fundo da alma, apaixonadamente, doidamente, perdidamente... (...) Madeleine, a sua boca é minha e eu beijo-a longamente. Escrevo~lhe deitado no chão debaixo da tenda, no bosque(...)
(25/9/1915) “Tive hoje, meu amor, uma festa extraordinária, uma orgia fantástica, qualquer coisa de verdadeiramente magnífico, cinco cartas tuas e duas encomendas.(...) Adoro-te, sabes. Nunca tinha encontrado uma coisa tão bonita e uma mais perfeita comunhão à distância entre dois amantes seria impossível. A tua querida boca, os teus dentes, a tua saliva saborosa, tudo isso é meu apesar da distância(...).”
(25/9/1915) “Houve tiros de canhão todo o dia. É noite e repouso até à meia-noite e meia- hora para retomar o fogo com a minha peça. Partimos amanhã (...). Estou fatigado esta noite, meu amor,do nosso tiroteio quase incessante. Amanhã ainda vai ser mais terrível.”
(4/10/1915) “A minha vela acaba de cair sobre a carta, desculpa de ir tão suja, meu amor, mas estou tão mal instalado! Renovo os meus beijos nas tuas ancas de pérola, que eu amo e de que te orgulhas, minha adorada. (...). Sim, minha querida, ponho a minha cabeça contra o teu seio esquerdo, tremo de volúpia tocando nele, escuto o teu coração ...”
(7/10/1915) “... Imagino-te nua apertada contra mim. Os teus deliciosos seios penetram-me com os bicos tenros. Aperto a cintura flexível que torna pesado o cálice dilatado das tuas ancas de mel. Os nossos braços enlaçam os nossos corpos como cobras lunares. A tua cabeleira afoga-nos na onda misteriosamente noturna do nosso amor que se alumia a si próprio ...”
(3/11/1915) “Ah Madeleine, que lama, que lama! Tu não imaginas a lama, é preciso tê-la visto aqui, tendo às vezes a consistência do betume, por vezes das natas batidas, às vezes de verniz e escorregando de uma maneira extraordinária! (...).”
(30/11/1915) “(...) nove dias sem me lavar, deitado no chão, sem palha, sobre um chão cheio de vermes, sem uma gota de água senão aquela que serve para vaporizar as máscaras (...) em caso de gases.(...) A trincheira de argila é muito má (...) é preciso a toda a hora consolidá-la com sacos de terra. (...) É fantástico o que se pode suportar(...).”
(2/12/1915) “Meu amor, no horror misterioso, metálico, mudo mas não silencioso por causa dos barulhos dos engenhos que apitam, gemem, estalam formidavelmente, o nosso amor é a única estrela, um anjo perfumado que flutua mais alto que o fumo negro ou amarelo das bombas que explodem.(...) Atemorizante monotonia de uma vida onde a água, mesmo a não-potável, está ausente.”
(...) Fala-me do amor (...) Pensa a que ponto sabe a vida das trincheiras se se está privado de tudo o que a prende ao universo, é-se unicamente um peito que se oferece ao inimigo. Como uma ladeira de carne viva ...”
(9/12/1915) “Se ficar prisioneiro ou dado como desaparecido, espera-me. Se morrer dou-te tudo o que tenho e esta carta é a prova e serve como testamento. Não paro de pensar em ti (...), o teu pensamento me protege, meu amor, e prometo-te não ser voluntário para nenhuma missão perigosa, (...) não devo esconder que o perigo é permanente e excessivamente grave.
(22/12/1915) “Olhei com embriaguez as tuas fotografias. (...) Adoro-te e já não sei muito bem o que escrevo.(...) Meu amor adoro-te doidamente, amo-te. (...) Beijo-te a boca e todo o corpo, que é meu.”

Paris, cemitério de Père Lachaise: visita ao túmulo de G. Apollinaire: senti-me muito bem e recordei com ele os “nossos” tempos passados na Guiné. Este túmulo foi concebido por Pablo Picasso e financiado com a venda em leilão de uma obra sua e uma outra de Matisse, em 21/6/1924.


Nota final: Se aparecer por aqui alguém que se tenha correspondido com militares da CCaç 1419, nomeadamente furrieis, e venha a descobrir agora que o vosso correspondente também foi um daqueles que passeou pelas páginas deste livro e delas se serviu, não leve a mal se algumas frases lembrarem algum tipo de plágio.
No meu caso há alguém que se habituou a ler, no final das minhas cartas que da Guiné recebia, esta doçura “Beijo-te a boca e todo o teu corpo, que é meu”. Já fui a Paris pedir desculpa ao seu autor e ele até me “deixou” sentar no seu túmulo para confirmar que me tinha perdoado. Esse alguém foi comigo mas não percebeu nada da cena (!!!) para além de ficar a saber que eu gosto muito de Apollinaire e que adoro os seus “Caligrammes”.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9093: O Nosso Blogue em Números (24): A propósito da sondagem dos 3 milhões: Para mim o blogue está bem e recomenda-se (Manuel Joaquim)

Vd. último poste da série de 5 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9137: Notas de leitura (308): De Campo em Campo, de Norberto Tavares de Carvalho (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Manuel Joaquim disse...

Só os poetas são capazes de explicar assim
o prazer:
"os teus deliciosos seios penetram-me com os bicos tenros"

e a angústia da "redução" do ser humano:
"...é-se unicamente um peito que se oferece ao inimigo. Como uma ladeira de carne viva ..."

Hélder Valério disse...

Caro Manuel Joaquim

Caro amigo, só posso aplaudir esta tua partilha destas recordações. Fizeste bem.

Pode acontecer que passem despercebidas a muitos dos nossos seguidores mas realmente ilustra muito bem como a cultura, o conhecimento, a literatura, podem fazer a diferença.

Não vou entrar por outras considerações, apenas dizer que a tua 'homenagem' no cemitério de Paris é comovente... Também já lá estive nesse cemitério.

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

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