quinta-feira, 17 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9915: Lições de artilharia para os infantes (5): Quando o oficial de dia fez um levantamento de rancho... (C. Martins, Cmdt do Pel Art, Gadamael, 1973/74)


[Foto à esquerda, de Lázaro Ferreira, nosso próximo grã-tabanqueiro: malta de Gadamael, 1974].


1.  O C. Martins - nosso leitor e camarada, mais conhecido por ter sido o "último artilheiro de Gadamael" , comandante do Pel Art 23, que acabará por (con)fundir-se com o 15, mas também médico, hoje, no Portugal profundo, -  não faz parte formalmente da nossa Tabanca Grande (TG), por razões alegadamente deontológicas, éticas  e profissionais que eu entendo e respeito. Isto quer dizer que: (i) nunca pediu para aderir à TG; (ii) nunca aceitou o meu convite para ingressar na TG; (iii) nunca se apresentou ao "pessoal da caserna", como mandam as NEP do blogue; (iv) nem nunca enviou as duas fotos da praxe... 

Em contrapartida, é leitor assíduo, fã do nosso blogue, comentador diário dos nossos postes, frequentador dos nossos encontros nacionais, e profundo conhecer da Guiné, amigo das suas gentes... Tem, além disso - e excecionalmente - uma série feita com os seus comentários neste blogue... Ele é um bom contador de histórias, tem sentido de humor, e muitas memórias da tropa, da guerra e da paz, por partilhar... Seria uma pena que esta, que a seguir (re)publicamos, ficasse  escondida (e perdida) na montra traseira (que é a caixa de comentários) do nosso blogue... 

Sem sequer lhe pedir autorização (já foi dada tacitamente), aproveitei esta história, que considero exemplar, para mais um poste da série Lições de artilharia para os infantes... Pode perguntar-se: Foi a tropa uma escola de virtudes ? Quero eu dizer, a tropa do nosso tempo... Aprendia-se lá só coisas de artilharia, infantaria, cavalaria, transmissões ? Mas também valores ?... 

A pergunta não tem uma resposta dicotómica: como de resto tudo na vida, nada  pode ser visto a preto e branco... Depois da história do J.L. Mendes Gomes, a do C. Martins: são duas histórias que têm direito a "mural ao fundo"... Não confundir com "moral"... São histórias que se prestam a que a gente, os grã-tabanqueiros e demais leitores deste blogue, escrevem os seus grafitos na parede (mural), ao fundo... Eu diria que são "contos morais"... Mas ao leitor é que é reservada a última palavra. 

O C. Martins que me perdoe a partida, mas achei que este seu comentário era um pequeno diamante em bruto, que merecia ser lapidado... Podia tentar adivinhar quando e com quem se passou... Seguramente, gente da artilharia, mas para o caso não interessa. Os "contos morais" não têm historicidade, isto é, a espessura e a ganga do tempo e do espaço... (Quanto a mim, limitei-me a fazer o papel do escriba de serviço, neste turno, que foi o de fazer a fixação do texto; os méritos vão inteirinhos para o C. Martins).

Para o J.L. Mendes Gomes vai também o meu apreço pela coragem e frontalidade com que ele partilha, connosco (e com os netos...), uma história que alguns poderiam/poderão achar "politicamente pouco correta"... (LG).


 2. Lições de artilharia para os infantes > Quando o oficial de dia fez uma levantamento de rancho...


por C. Martins

Este tema é muito interessante: Relação entre comandantes e comandados e vice-versa (*).

Atitudes, justiça, injustiça, abuso de poder, capacidade de liderança ou não, coesão ou espírito de corpo.
Todos nós tivemos casos, independentemente da categoria ou posto hierárquico.

A propósito de rancho... Lembro-me de um caso passado num regimento de uma cidade alentejana. O oficial de dia fez um levantamento de rancho !!!!.

Este tinha por hábito não se limitar a provar a comidinha da bandeja, mas verificar as pesagens dos géneros segundo as NEP. Era vitela à jardineira: tanto de ervilhas, cenouras, batatas e a carne da dita.


Iniciado o repasto, que a bem da verdade o pessoal comia com sofreguidão, o dito oficial, olhando de soslaio para pratos e travessas repara que havia ervilhas, cenouras, grande quantidade de batatas e, surpresa,  a carne praticamente tinha-se evaporado!. 
-  NINGUÉM COME MAIS, CAR...!!! - berra o gajo com um galãozito transversal no ombro, e enceta uma corrida frenética até à cozinha onde se depara com grandes nacos de carne sobre a bancada.

Transtornado, enfia uma cabeçada no 1º sargento vago-mestre ou lá o que era:
- Você está preso,  seu f... da p...!. E estão todos presos, seus cabr...f...das p..., bandidos, gatunos! ...

Mais calmo, tenta contactar o comandante que não estava, o 2.º também não... Bem, a alternativa era o contacto com o QG da região militar. Atende o oficial de dia da respectiva:
- ... Fez o quê ?!! Você já desgraçou a sua vida!

Nesse dia almoçou-se só às cinco da tarde. 

O sorja f... da p... tinha por hábito gamar a carne e outros géneros que vendia a talhos e estabelecimentos civis,  com a conivência dum cabo RD... Os outros elementos da cozinha eram ameaçados para se calarem. A justiça militar atuou com penas exemplares... O aspiranteco teve um elogio verbal e foi mobilizado para o CTIG.

Qualquer coincidência com a realidade não foi mera ficção.

C.Martins (**)
_______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9910: Cartas do meu avô (4): Segunda Carta: Em Catió (Parte III) (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66).



(**) Último poste da série > 4 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9852: Lições de artilharia para os infantes (4): O que era uma bateria (ou bataria)... (C. Martins, Cmdt do Pel Art, Gadamael, 1973/74)

6 comentários:

Luís Graça disse...

Concordo que não era fácil, ontem como hoje, para qualquer miliciano, cabo ou aspirante, assumir publicamente a defesa dos mais fracos...

O nosso "aspirantezeco" tinha que "tê-los no sítio"...

Como dizem os sociólogos, o exército por muito que se "moderniza" continua a ser uma "total institution"... com três camaradas espessas de arame farpado à sua volta, "físicas, simbólicas e culturais"...

Luís Graça disse...

Concordo que não era fácil, ontem como hoje, para qualquer miliciano, cabo ou aspirante, assumir publicamente a defesa dos mais fracos... Aqui e no ultramar...

O nosso "aspirantezeco" tinha que "tê-los no sítio"...

Como dizem os sociólogos, o exército (...e outras instituições do género, das prisões às casas pias, dos internatos à marinha mercante, dos hospitais aos hospícios...) por muito que se "modernize" continua a ser uma "total institution", escapando em grande parte ao controlo dos "leigos", dos "paisanos", dos "de fora"...

São instituições com três camaradas espessas de "arame farpado" à sua volta, "físicas, simbólicas e culturais"...

Anónimo disse...

Tenho que esclarecer
Esclarecerei...

A foto não é da malta de artilharia.
Parece-me ser da Ccaç..o único que reconheço julgo ser o Zé Gonçalves..deve ser da PDI.
Esta "estória" foi muito mais complexa com contornos maquiavélicos.
O "aspiranteco" era um "justiceiro fundamentalista".
Cometeu duas infracções graves,segundo o RDM,interrompeu a refeição,sem haver razão para tal,porque ninguém reclamou, e agrediu um militar graduado e à frente de subordinados.
Só não levou uma "porrada" a condizer porque o Comandante intercedeu.
Devia ter deixado prosseguir a refeição,detido o "sorja"e ter feito a respectiva participação.

C.Martins

Hélder Valério disse...

Caros camarigos

Mais importante que especular sobre quem teria sido o Aspirante é de facto reflectirmos sobre o modo de raciocínio para actuação da cadeia de comando, nesse tempo, e compararmos com o que se passa hoje para nos apercebermos se há alterações.
Vá lá saber-se porquê, dava-se como castigo o 'ir para a Guiné'... hoje em dia não consigo compreender, até por causa de 'só faltar um bocadinho assim...' ou seja uma coisinha pouca para 'quase'... vocês sabem do que estou a falar!.. como diria o boneco do 'Octávio Malvado'...

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Ah Ganda C. Martins, meu Distinto Camarigo.
Penso eu de que, para além das posições em termos políticos que já assumias, esta tua actuação se prendeu já e também, com os "ensinamentos" recebidos na EPA, dos então tenentes e presentemente coronéis de Art.ª na reforma: Andrade Silva, Duarte Mendes, Víctor Barata, Brandão, Mira Monteiro, Sales Grade e do capitão José Luís Cardoso etc.
O Comandante do RAL 3 que "pôs água na fervura", deveria ser, à época, o Sr. Coronel Art.ª Marinho Falcão, seria ?.

Um grande abraço para ti meu estimado Camarigo da EPA e de Gadamael.

Joaquim Sabido
Évora

Anónimo disse...

Caro camarada J.Sabido

Porra pá..vens para aqui descobrir "carecas".
Não, meu caro,os valores que tinha e julgo ter ainda,foram-me incutidos pelo meu saudoso Pai,com todo o respeito pelos personagens que referes.
O ilustre Coronel, comandante do Ral 3, era uma espécie de bombeiro, apagando os fogos que eu ateava.
Lembro-me nomeadamente de um litígio com um tenente da GNR, e um desentendimento com um tenente-coronel inspector da arma de artilharia, que resolveu em plena parada "achincalhar" um cabo-miliciano.
Mas a mais caricata e divertida foi que durante um mês o Regimento não recebeu qualquer participação por parte da PM.
Chamado pelo Comandante, este meio sério meio divertido,e após me transmitir o sucedido, diz : "umm, isto deve ser da sua lavra,ora conte lá"..
Contei-lhe tudo incluindo a infracção às NEP, cometida por mim.
No fim deu uma sonora gargalhada,após a qual e já com ar sério de comandante remata:"você tem sorte em ter um comandante como eu, porque senão já há muito tempo que tinha desgraçado a sua vida,com o seu feitio e forma de estar".
"Eu sei, eu sei meu Comandante, foi por isso que lhe contei tudo.
O maior louvor que recebi dele foi ir à parada, e em frente de muita gente,despedir-se de mim quando fui mobilizado.
Confirmo que era Sexa o Sr.Coronel Falcão.

Um alfa bravo

C.Martins