quarta-feira, 24 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11864: Questões politicamente (in)correctas (45): Os dois príncipes: o filho de Kate Middleton e o filho da Fatwa de Catió... (Luís Mourato Oliveira, o último comandante do Pel Caç Nat 52)

1. Mensagem de Luís Mourato Oliveira, ex-alf mil, úlltimo comandante do Pel Caç Nat 52 (1972/74):

 Data: 23 de Julho de 2013 às 16:30

Assunto: Os dois principes

Caros camaradas, estive ao serviço entre 1972 e 1974 na Guiné. Primeiro na CCAÇ. 4740 e depois no Pel Caç Nat 52 que desmobilizei e onde terminei a comissão já após o 25 de Abril.

Sou habitual visitante do blogue. Conheci pessoalmente o camarada Luis Graça no almoço de 2012 em Monte Real embora sejamos originários da região Oeste, ele da Lourinhã, eu da Marteleira.

Nunca escrevo sobre a Guiné porque não acho suficientemente relevantes os factos que ocorreram e dos quais fui testemunha e actor, não por falsa modéstia ou qualquer outra razão, mas porque não os considero interessantes para a comunidade que frequenta o blogue, mas guardo com enorme carinho e saudade aquela terra e aquele povo com quem tive o privilégio de servir e que quanto mais tempo passa e mais a tecnologia nos inunda e consome, mais apreço tenho pela sua cultura e tradições, sobretudo no que concerne ao respeito pelos homens grandes, pelas crianças e pelos seus mortos e história.

Hoje entro em contacto convosco porque perante o espectáculo mediático do nascimento real em Inglaterra me vieram imediatamente à memória as crianças da Guiné que cresciam sem os mais elementares cuidados de saúde, sem escola, sem nada a não ser o carinho das mães que estavam sempre presentes e mesmo quando se atiravam ao pilão para moer o arroz, ou na bolanha para lavar a roupa, os seus bebés estavam colados ao corpo na mochila dos seus panos. Por isso escrevi um pequeno texto de saudade e lamento por aquela terra e suas gentes que vos envio e que ponho à vossa disposição para que possa ser ou não publicado.


Um abraço, Luís Oliveira

2. Os dois príncipes
por Luís Oliveira

Em Londres, milhares de pessoas aguardaram à porta do Hospital de St Mary e posteriormente junto ao palácio de Buckingham pelo anúncio do nascimento do primeiro filho de Kate Middleton e William. A expectativa foi criada e alimentada por jornais e televisões de todo o mundo que ocuparam horas de transmissão e páginas de jornais, para além das empresas de apostas que irão ganhar milhões com o evento.

O neófito de 3,8 Kg e a mãe foram assistidos por um ginecologista, um obstetra e ainda um consultor neonatalogista e felizmente tudo correu muito bem apesar dos cuidados que o início da gravidez exigiu.

Felizmente esta criança irá ter sem qualquer restrição todos os cuidados de saúde, terá acesso às melhores escolas que oferecerão uma educação reservada aos eleitos e tem no futuro o sucesso garantido, mesmo que, com tudo o que lhe é oferecido se venha a revelar um homem limitado ou mesmo um imbecil.

Em Catió, Fatwa que pilava a vianda foi abrigada a suspender os seu trabalho pelas dores de parto, o bebé estava mesmo a chegar. As vizinhas Cadija e Binta correram a ajudar e Aliu nos seus 2,1 Kg, soltou o seu primeiro choro perante o desconforto do mundo em que terá de viver. 

Obama não mandou as felicitações para Fatwa e talvez Aliu não venha e ter fome, talvez venha a frequentar uma escola e aprender a ler e se tiver saúde nunca irá necessitar de médicos ou hospitais. Terá futuro na bolanha a cultivar arroz, ou com uma HK 47 ao serviço dos senhores da guerra e agentes do tráfico ou com muita sorte em Portugal num clube de futebol profissional. Será este o seu futuro mesmo que dotado um mente brilhante e inteligência superior.

O seu destino está traçado, mas mesmo com a ausência dos jornais, do público e das apostas nunca deixará de ser um príncipe porque mais que tudo é uma criança e mais um ser humano que os seus semelhantes ignoram.

Luís Oliveira

(Foto: Carlos Vinhal)

3. Comentário de L.G.:

Meu caro acamarada e conterrâneo Luís Oliveira:

Acabo de regressar de Luanda, depois de um dia cansativo: levantei-me às 5h30, cheguei ao ao aeroporto às 7h00 e... embarquei no Airbus 340, do TP 288, às 13h00... Coisa rara, hoje (ou melhor, ontem, 23,) o  cacimbo afectou o tráfego aéreo, atrasando os voos que levariam a casa umas largas centenas de desvairadas gentes que por aqui andam na labuta da vida ou que muito simplesmente vieram á FILDA 2013, a cada vez mais anaimada Feira Internacional de Luanda:: portugueses ("tugas"), chineses, cubanos, brasileiros...

Durante uma semana, de 17 até 23 do corrente,  não vi nem editei o nosso blogue. O Carlos Vinhal segurou a barra. 

Tudo para te dizer que fiquei sensibilizado e feliz pelo teu mail que acabo de ler e que me apresso a publicar, pela sua atualidade e oportunidade... Se me permites um comentário, veio-me à memória o provérbio ou ditado popular alentejano: "A rica teve um menino, a pobre pariu um moço"... Isto diz tudo sobre a distância, não apenas física como simbólica e cultural, que existe entre Londres e Catió, entre a Kate e a Fatwa... O menino nasce com 3,8 kg, o moço com 2,1 kg...Os dois são príncipes, mas o Aliu será, com todas as probabilidades, um "príncipe do nada", se conseguir ultrapassar a terrível barreira dos 5 anos...

Faço questão de, mais uma vez, te pedir que aceites o meu convite para te juntares à  grande fanília da Tabanca Grande, passando a seres o membro  nº 625 do blogue.  Permito-me discordar da tua opinião segundo  a qual as tuas memórias pessoais da Guiné seriam irrelevantes para a historiografia da guerra colonial...  Não são, pelo menos não são para mim e para todos aqueles que passaram por Bambadinca e tiveram o privilégio de conhecer os bravos do Pel Caç Nat 52... Ora, tu foste muito simplesmente o último comandante desta subunidade, composta por camaradas guineenses... E do Pel Caç Nat 52 estão cá, na nossa Tabanca Grande, não só o seu primeiro comandante, o Henrique Matos,  como também outros que se lhe seguiram, o Beja Santos e o Joaquim Mexia Alves...

Estou demasiado cansado para a esta hora fazer o teu poste de apresentadação. Mas estou seguro que  nos vai honrar com a tua presença. De resto, já cumpriste as nossas regras básicas, que é o envio de 2 fotos + 1 texto ou história,

Um abraço. Espero poder encontar-te em agosto na Praia da Areia Branca, na Marteleira ou na Lourinhã. LG

PS1 -  Vejo que também estás no Facebook.

PS 2 - Na Ilha de Luanda, e sempre que lá estou, não posso deixar de pensar nos meninos angolanos (e de toda a África, em particular da África lusófona) que aprenderam a fintar a morte...Vejam-se aqui dois poemas meus, já antigos, de outras viagens:

Os meninos da ilha de Luanda

Luanda (re)visitada

(...) Na praia dos pescadores
Há meninos, brancos e pretos,
Pé descalço e calças rotas,
A chutar a bola às balizas da sorte.
Poderão não vir a ser uns senhores,
E sorrir como o Mantorras,
O rosto espalhado em outdoors pela cidade.
Mas contarão, decerto, aos seus netos
Como souberam fintar a morte
Desde a mais tenra idade. (...)

_______________

Nota do editor:

Último poset da série > 7 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11538: Questões politicamente (in)correctas (44): Há um provérbio fula que diz: "Quando se fala dos maus, os bons sentem-se ofendidos" (Cherno Baldé)

14 comentários:

Anónimo disse...

Para o Luis Mourato Oliveira

Gostei muito destas duas linhas paralelas, que nunca se encontrarão.

Para o Luis

Em Luanda "abundam" os brasileirismos mais que aqui na nossa terra; daí o "na barra".
Acho que a canção (dos Trovante?) se "apropriou" da quadra do António Aleixo (?):
"A rica tem nome fino
a pobre tem nome grosso
A rica teve um menino
A pobre pariu um moço" (também poderia ser "osso", porque, além do mais, rimava).

Abraços
Alberto Branquinho


Luís Graça disse...

Tens razão, Alberto, são dois versos de uma quadra do grande, poeta popular, cauteleiro e guardador de rebanhos, que mal sabe lere e escrever, algarvio... Estamos a falar do António Aleixo (1899-1944), morto precocemente devido à pobreza e à tuberculose...

A rica tem nome fino,
A pobre tem nome grosso;
A rica teve um menino,
A pobre pariu um moço!

Já agora fica aqui uma mão cheia de qadras relacionada com o tema da equidade social:

Tu és feliz, vives na alta,
E eu de rastos como a cobra.
Porquê? Porque tens de sobra
O pão que a tantos faz falta.

Vim ao mundo sem saber
Que vinha a ser o que sou;
Agora morro sem querer
E sem saber para onde vou.

Tu que vives na grandeza,
Se calçasses e vestisses
Daquilo que produzisses,
Andavas nu, com certeza.

Numa ambição desmedida
A gente grande quer ter
Dois céus: - um cá nesta vida,
Outro depois de morrer.

Há tantos burros mandando
Em homens de inteligência,
Que às vezes fico pensando
Que a burrice é uma ciência!

A pedra branca, polida,
Que mói o trigo, indiferente,
É como a roda da vida
Que mói a vida da gente

Fonte: José Maria Alves - António Aleixo: antologia poética, 31 pp.

http://www.homeoesp.org/livros_online/antonioaleixo_antologiapoetica.pdf

Quarta-feira, Julho 24, 2013 12:45:00 PM Eliminar

Luís Graça disse...

Muita saúde e longa vida ao novo herdeiro da coroa britânica... Trata-se de resto de um povo a que nos ligam laços históricos e afetivos, de muitos séculos, mesmo com muitas "makas" (em angolês...) pelo meio...

Ao Aliu, de Catió, filho de Fátima, só podemos desejar que que não tenha a mesma sorte cruel do Nuninho da Cadi, que morreu aos 4 meses de paludismo e de abandono... Nem da Cadi, mãe do Nuninho... A Cadi morreu antes de completar os 30 anos!... E deixou órfã a Alicinha do Cantanhez...

Lembram-se ? Deixei, na altura, um epitáfio poético para a colocar, sob a forma de lápide, virtual, em cima da terra que cobriu, na cidade grande e anónima de Bissau, o corpo mirrado do Nuninho... (LG)

(...) Do outro lado da linha,
O desalento, a tristeza, a desolação.
O Nuninho morreu, aos quatro meses.
De paludismo.
Sem assistência médica.
Sem esperança.
Sem salvação.
Como um cão vadio,
Que morre na beira da estrada,
No meio do capim,
Na lixeira do bairro.
E A Cadi também esteve às portas da morte.
Por paludismo.
O Nuno [Rubim] e a Júlia providenciaram, a tempo,
O recurso a uma clínica privada.
Em Bissau.
E a Cadi salvou-se.
Porque gente amiga e solidária
Proporcionou os cuidados de saúde decentes
Que o dinheiro pode comprar.
Cadi perdeu o seu menino,
Espero que não tenha perdido
A fé e a esperança nos seres humanos,
Mesmo naqueles
Que assobiam para o lado,
Enquanto as crianças da Guiné morrem
Como os cães à beira da picada e do capim.
De paludismo.
De pneumonia.
De diarreia.
De má nutrição.
De SIDA.
De abandono.
De indiferença.
De falta de médico
(Que não volta
E fica a ganhar bom dinheiro em Lisboa,
Tabanca grande,
Chão dos tugas).
E de falta de medicamentos.
E de meios de prevenção e tratamento.
E das coisas mais elementares e essenciais da vida,
Como a água potável.
Ou um mosquiteiro impregnado. (...)


http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2008/09/guin-6374-p3167-ser-solidrio-19-morreu.html

Anónimo disse...

Grande Luis!
Finalmente, depois de muitos anos de regular leitor do blogue, vejo-te entrar mais a sério! E venham de lá essas histórias! Tens muito mais! Sobretudo de meninos pobres! Conta aquela do gajo que te mandou peixe de Cacine, coisa que há muito não comias!
Grande abraço.
Juvenal Candeias

manuel maia disse...

Caro Luis Oliveira,


São estes contrastes que mais chocam...
Abraço
mm

Anónimo disse...

E infelizmente estes contrastes cada vez se propagam mais neste Mundo Cão em que vivemos, em lugar de diminuirem, como nos prometiam, uma vez conseguidos os avanços cientificos e tecnológicos que se prespectivavam e que tem sido alcançados.
Afinal só servem para alguns! ou melhor, sempre para os mesmos...

Abraço
Jpicado

antonio graça de abreu disse...

Meu caro Luís Oliveira

Que bom ler um texto teu, meu caro amigo dos tempos de Cufar...
E tens muito que contar, é só abrir o livro.

O primeiro parágrafo da Declaração Universal dos Direitos do Homem diz:

"Todos os homens nascem iguais em dignidade e em direitos."

Este mundo pleno de utopias em que vivemos! Perigosas, injustas, ridículas como igualizar um príncipe inglês com o Nuninho da Cadi que morreu bebé por falta de dos mais elementares direitos à saúde que todos os bebés do mundo e todos os homens deviam merecer.

Todos os homens nascem iguais...
Mentira, mentira.
Tão desiguais, logo à nascença.

Um abraço,

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Uns nascem com o cú virado para a lua..outros para o chão...

O principezinho tem o futuro garantido,não tem que se preocupar em estudar,trabalhar..fazer-se à vida..será sempre príncipe..

É também mas não só por causa destas "merdisses" que sou republicano.

Declaro que não pretendo ofender quem quer que seja..muito menos os monárquicos.

C.Martins

Antº Rosinha disse...

Diz o 1º Ministro britânico que toda a Comonwelth ficou feliz com o nascimento do príncipe.

Bissau não pertence à comonwelt, mas Moçamique sim, logo também estão felizes.

Os vizinhos de Bissau, os gambianos também estarão contentes,portanto.

A criança não tem culpa, e até já sondaram que pode ter a tendência sexual que entenda que será rei daquela gente toda.

Como o pai esteve no Afeganistão talvez este principe também venha a ser um heroi.

Luís Mourato Oliveira disse...

Caros camaradas do Bogue, devo dizer-vos que o Aliu no texto é pura ficção, mas na Guiné é infelizmente uma realidade que todos lamentamos sobretudo porque ficámos ligados indelevelmente aquele povo. Queria deixar uma grande abraço para os camaradas que deixaram os seus comentários em especial para aqueles com quem convivi e fiz amizade, Juvenal que me mandou peixe de Cacine e nem sequer nos conhecíamos e António Graça Abreu, grande companheiro em Cufar.

José Botelho Colaço disse...

Luís o ex-alferes miliciano Jorge Rosales membro da Tabanca grande segundo informações que me parece credíveis foi um dos primeiros comandantes do pelotão Caç.Nat.52.

Um alfa bravo.
Colaço.

Luís Graça disse...

José Colaço: Esse é um ponto a esclarecer pelo Jorge Rosales, se chegou ou não a comandar o Pel Caç Nat 52... Para mim, o 1º comandante foi sempre, até prova em contrário, o Henrique de Matos...

De qualquer modo, obrigado pelo teu reparo ou chamada de atenção... Se o Jorge e o Henrique nos estiverem a ler, podem (e vão, seguramente,) esclarecer este ponto...

Vd. poste de 9 de junho de 2009
Guiné 63/74 - P4488: Tabanca Grande (151): Jorge Rosales, ex-Alf Mil, Porto Gole, 1964/66, grande amigo do Cap 2ª linha Abna Na Onça

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2009/06/guine-6374-p4488-tabanca-grande-151.html

(...) "O Jorge Rosales pertencia à 1ª Companhia de Caçadores Indígena, com sede em Farim (Havia mais duas, uma Bedanda e outra em Nova Lamego, acrescenta ele). Ficou lá pouco tempo, em Farim, tavez uma semana.

"A companhia estava dispersa. Foi destacado para Porto Gole, com duas secções (da CCAÇ 556, do Enxalé) e outra secção, sua, de africanos. Tinha um guarda-costas bijagó. Parte dos soldados eram balantas. Possuíam apenas 1 morteiro (60) e 1 bazuca. A farda ainda era amarela. Ficou 18 meses em Porto Gole.

"Ia a Bambadinca jogar à bola com os de Fá. Foi uma vez a Bafatá, apanhar o NordAtlas. Lembra-se da piscina." (...)

Hélder Valério disse...

Caro Luís Oliveira

Gostei desta tua comparticipação.
Coloca em contraste aquilo que todos 'sabemos', que todos falamos mas, que às vezes é necessário referir ao jeito de "o rei vai nu" para que se perceba melhor as contradições e circunstâncias da vida.

E a 'comparação' entre o "bebé real" britânico e o "real (fictício) bebé" guineense não é demagógica, como algumas 'boas almas' podem 'querer' ver, é uma boa forma de evidenciar essas circunstâncias da vida.

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Esclarecendo...
O Jorge Rosales foi instrutor em Bolama de uma companhia de guineenses de onde sairam os primeiros Pelotões Independentes de Caçadores Nativos: 51, 52, 53 e 54. Era ssim que se chamavam e desconheço os motivos desta numeração. Eu fui receber o 52 (virgem) em Bolama nos finais de Agosto/66.
Abraço a todos
Henrique Matos