quarta-feira, 24 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11865: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (1): A incorporação na vida militar

1. Iniciamos hoje a publicação das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro no ano de 2005*:


Memórias da Guiné

1 - A Incorporação na Vida Militar

Fernando de Pinho Valente (Magro)(1)
ex-Cap. Milº de Artilharia

Em Agosto de 1968, uns dias antes de partirmos de férias para o Sul de Espanha, a Lena(2) apareceu com os olhos amarelados.
Como se não encontrasse bem de saúde chamei o médico.
Na opinião deste tratava-se de icterícia, o que obrigava a repouso, a uma dieta e à administração de medicamentos que prescreveu.
Sobre as nossas férias, foi de opinião que devíamos desistir da viagem para a Costa do Sol e em seu lugar procurar umas termas onde pudéssemos usufruir de uma estadia calma e fazer uma cura de águas.
Recomendou-nos as Termas de Monte Real.

Resolvemos seguir os conselhos do médico pelo que nos primeiros dias de Setembro dirigimo-nos para a referida estância termal, acompanhados do nosso filho Fernando Manuel, de 7 anos de idade.

Aí, pela manhã de um determinado dia, encontrei no "buvete" um antigo companheiro meu do Curso de Oficiais Milicianos de Artilharia que teve lugar em 1958 na Escola Prática de Vendas Novas. Fiquei admirado por o ver ali, tanto mais que esse meu antigo companheiro, além de saudável, era muito bem constituído fisicamente.
- Tu por aqui, a águas?! - perguntei-lhe admirado.

Explicou-me ele, então, que estava mobilizado para Angola e que resolveu fazer, antes de partir, um tratamento nas Termas, até porque havia realizado, em Lamego, exercícios militares em que a sua alimentação havia sido à base de rações de combate o que lhe tinha provocado uma indisposição gástrica e intestinal.

- Mas o quê, tu ficaste na tropa?- perguntei.

Que não, que não, respondeu-me o meu amigo. Que era economista, mas que havia sido incorporado obrigatoriamente na vida militar com o posto de tenente e havia sido compelido a frequentar um Curso de Capitães na Escola Prática de Infantaria em Mafra.
Que com o posto de capitão iria dentro de alguns dias fazer a guerra em Angola, comandando uma Companhia de Caçadores com cerca de 150 homens. Que eu também devia ser chamado muito em breve, pois dos duzentos e quarenta cadetes do Curso de Oficiais Milicianos de Artilharia de 1958, estava o Exército incorporando grupos de sessenta de cada vez, para a frequência obrigatória do Curso de Capitães.
Eu não queria acreditar...

A minha mulher, que tinha mantido uma conversação ocasional com a esposa deste meu companheiro das lides militares, apercebeu-se das suas últimas palavras e ficou estupefacta.
Não podia ser. Isso não era verdade.

Escola Prática de Artilharia de Vendas Novas
Foto: Carlos Vinhal

Eu tinha cumprido a minha obrigação militar como Cadete em Vendas Novas e como Aspirante a Oficial Miliciano no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 3, em Paramos, Espinho, tendo regressado à vida civil em Fevereiro de 1960 como Alferes Miliciano. Na disponibilidade, fui promovido a Tenente Miliciano.
Depois disso casei-me e coloquei-me como técnico de engenharia na extinta Junta Autónoma de Estradas, em Viseu.

Em Maio de 1961 nasceu o meu filho Fernando Manuel.
Nesse ano de 1961 deu-se a invasão e anexação pelas tropas da União Indiana das nossas possessões de Goa, Damão e Diu, na Índia, e teve início a guerra colonial em Angola.
Na altura ainda receei vir a ser mobilizado. Mas passados sete anos já estava completamente fora da minha expectativa tal acontecimento.

Nessa mesma tarde (do dia em que tive conhecimento da possibilidade de vir a ser incorporado no Exército), depois do almoço, segui com a família para Lisboa no meu próprio automóvel.
Procurei saber na Secção de Oficiais do Ministério do Exército o que me estava reservado. E aí foi-me dito que, efectivamente, fazia parte de um próximo Curso de Capitães, em Mafra.
E que, depois de promovido, teria de, obrigatoriamente, servir como militar em África. Que não tinha outra saída a não ser que me oferecesse como civil para uma comissão de serviço em Angola, Guiné ou Moçambique e, dado que era diplomado em engenharia, talvez viesse a ser atendido.

Ficamos, eu e a Lena, desolados, regressando às Termas de Monte Real num estado de espírito deplorável.
E foi ainda nesse estado de espírito que voltamos para Viseu poucos dias depois, terminado o tratamento nas Termas.

Antes de 1961, ano em que, como referi, se iniciaram as guerras em África, a Academia Militar tinha boa frequência.
Terminado o curso complementar dos Liceus candidatavam-se inúmeros jovens ao ingresso na referida Academia, os quais eram submetidos a um rigoroso processo de selecção.
Isto acontecia porque o oficial do exército tinha um estatuto muito especial. Desfrutava de uma posição social estimulante. O seu emprego era automático e vitalício. Geralmente usufruía de almoço gratuito nos Quartéis e tinha assistência de graça na doença para si e para a sua família.
A vida, desde que não houvesse guerra, desenrolava-se tranquilamente. E havia também, principalmente para os jovens, o incentivo das fardas.

Depois que as guerras de África começaram, as candidaturas de acesso à Academia Militar baixaram drasticamente.
E baixaram porque a situação se alterou. Os oficiais do quadro permanente eram constantemente mobilizados. Deixavam o aconchego da família, permanentemente. Em África faziam a guerra e como tal eram colocados em lugares inóspitos. A sua alimentação era assegurada com dificuldade. Muitas vezes tinham de consumir alimentos enlatados, tipo rações de combate. Corriam riscos. Adoeciam. Eram feridos e alguns até mortos.
Por isso muito poucos jovens em 1968 tinham interesse na carreira de Oficial do Exército.

Segundo me informaram, na altura, as candidaturas reduziram-se drasticamente e aqueles que tentavam a admissão à Academia geralmente não escolhiam as armas: cavalaria, infantaria e artilharia. Quase todos pretendiam os serviços.
O enquadramento dos nossos soldados por oficiais a nível de Capitão começou a ser um problema pelo que o Governo teve de recorrer aos milicianos que, como eu, estavam na disponibilidade com o posto de Tenente.

Escola Prática de Infantaria de Mafra

No dia seguinte ao terramoto que todo o Portugal sentiu (28 de Fevereiro de 1969) chegou o aviso de que tinha de me apresentar na Escola Prática de Infantaria em Mafra para frequentar o Curso de Promoção a Capitão.
Embora fosse um acontecimento esperado por mim, o que é certo é que a notícia me trouxe alguma intranquilidade e tive de começar a resolver rapidamente uma série de assuntos ligados à minha actividade pública e privada.
Também tive de me deslocar aos Armazéns Militares do Porto a fim de adquirir o meu próprio fardamento.
Em Mafra, onde permaneci entre Março e Julho de 1969, encontrei diversos companheiros meus do tempo de Vendas Novas.

Procurei, com paciência, executar os exercícios físicos que me eram impostos, alguns dos quais me foram particularmente penosos como correr com um saco de areia às costas e rastejar alguns metros por baixo de arame farpado.
Nessa altura já contava 33 anos de idade e fisicamente tinha limitações até porque tinha engordado alguns quilos.
Em Mafra foram-me ministrados ensinamentos sobre a guerra de guerrilhas, uma guerra desleal e traiçoeira feita de emboscadas e golpes de mão.
Este curso terminou com 4 dias na Serra de Montejunto, onde dormi ao relento, no chão, debaixo de pinheiros e me alimentei a rações de combate.

Um dos exercícios foi o assalto a uma aldeia completamente abandonada no cimo da serra. Esta aldeia foi tomada por soldados que comandávamos. Nela estavam abrigados outros soldados da Escola Prática de Infantaria, fazendo de inimigos, que nos receberam com grandes rebentamentos a que nós, naturalmente, respondemos.
Ainda viemos a Lamego, onde estava instalada uma Companhia de Comandos, para assistirmos a diversos "briefings" sobre a guerra que decorria nas três frentes: na Guiné, em Angola e em Moçambique.
Esses "briefings" foram-nos ministrados por oficiais experientes que já haviam cumprido Comissões nesses teatros de guerra.

Em Agosto estava pronto, no entendimento dos meus instrutores, para comandar uma companhia operacional com cerca de 150 homens e fazer frente à guerrilha que era movida em África. Entrei de licença e fiquei à espera da mobilização.
Mas, possivelmente devido aos exercícios físicos a que já há muito não estava habituado, tive uma enorme cólica renal e urinei sangue. Fiz análises e o tratamento recomendado pelo meu médico particular, mas fiquei a ter queixas de cansaço e mal estar na região lombar sempre que me mantinha por algum tempo na posição de pé.
Esse mal estar já eu o havia sentido antes, mas depois da crise porque passei, muitíssimo dolorosa, acentuou-se. Incomodidade essa que, naturalmente, atribuí ao mau funcionamento dos rins.
Tratei-me, repousei e esperei pela mobilização.

(Continua)



in "Memórias da Guiné" de Fernando Magro - Edições Polvo, Ldª - 2005

1 O nome do autor destas Memórias é Fernando de Pinho Valente. Pertence, no entanto, pelo lado paterno, à família dos Magros, uma família portuguesa muito antiga, pelo que decidiu adoptar o nome de Fernando Magro.

2 Diminutivo de Maria Helena, esposa do autor.
____________

Nota do editor

(*) Vd. poste de 27 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11637: Notas de leitura (486): "Memórias da Guiné", por Fernando Magro (Mário Beja Santos)

5 comentários:

Luís Graça disse...

As minhas fraternas e calorosas saudações a um dos nossos "mais velhos" (como se diz em Angola), pessoas a quem são devidos o respeito, a admiração e a deferência dos mais novos... O nosso blogue é contra todas as formas de discriminação, a começar pela da idade (o "idadosmo"). Infelizmente,em África também tudo está a mudar, para pior (em matéria de valores sociais e humanos)...

Foi com particular apreço, atenção e curiosidade que li o 1º poste do nosso "mais velho" Magro... Eu tinha 14 anos quando se iniciou a guerra colonial em Angola (donde acabo de regressar a noite passada). Tive logo o "pressentimento", em março de 1961, de aquela guerra ia ser longa e que também ia sobrar para mim...

Não fui para Angola mas fui para a Guiné, 8 anos mais tarde, em 1969... com 22 anos. Fiz lá os 23 e os 24...

Curiosamente, soube da notícia na véspera do terramoto de 28 de fevereiro de 1969. Estava eu em Castelo Branco a dar instrução... Fiz questão de "comemorar o evento" , e bebi uns copos... Não me lembro do terramoto (que fez estragos na caserna!)...

Agora imagino o que se passa na cabeça de um homem, de 33 anos, casado, pai de 1 filho, a quem é ordenado que, em nome da Pátria, vá comandar 150 homens em armas... na distante e temida Guiné!... A situação não é nova, aconteceu com muitos outros camaradas, e já aqui foi relatada por outras camaradas ex-capitães milicianos... Estou-me a lembrar, por exemplo, do Jorge Picado...

São destes testemunhos, com autenticidade e força, de gente da nossa geração, que o nosso blogue precisa. Eu estou grato ao nosso "mais velho" Magro!... Estás entre a tua gente, camarada!

Venha o resto das venturas e desventuras... Luís Graça

Anónimo disse...

Pois como escreve o Cmdt Luís, estás bem acompanhado.

O teu CPC foi precisamente o anterior ao meu, que começou num "fatídico" dia 25 de Agosto de 1969, com os restantes teus camaradas do COM, pois eu fui, segundo creio, o primeiro e julgo que único do meu COM (também de Artilharia, mas de 1959) nesse 2.º CPC de 1969.

Abraços

JPicado

Anónimo disse...

Sacrifícios que o "império" teceu...

Fomos todos sacrificados no "altar" do império..só que uns mais do que outros..

Foi de uma violência extrema para quem já tinha cumprido a sua obrigação(SMO),já trintão,vida profissional estabilizada,obrigações familiares, etc..ter que voltar ao serviço militar e com responsabilidades acrescidas,muitos completamente desmotivados, e até alguns apesar de terem feito o SMO sem qualquer vocação para o comando de tropas..

Julgo ser caso único a nível mundial,as outras potências coloniais,devido às suas capacidades militares nunca recorreram a oficiais ditos "milicianos"..e mesmo assim demos mais ou menos "conta do recado" e logo em três frentes distantes da antiga metrópole..foi "obra".."case study"..dirão alguns...

Sempre fomos pequenos em dimensão,mas fomos pioneiros na globalização,tão em moda na actualidade, e logo com 200 anos de avanço...porra, é por isto que nos devemos sentir orgulhosos de ser "tugas".

C.Martins

Luís Graça disse...

Servir duas vezes a pátria... Ainda ontem, às 6 da manhã, ia eu a conversar com o motorista que me leva habitualmente ao aeroporto, quando vou á Ilha de Luanda em serviço... Já o conheço há uns anos...

Estava de férias, mas levantou-se para me conduzir, a tempo e horas, até ao aeroporto. Mora na ilha de Luanda, perto da clínica aonde fui dar formaçãoe e onde ele trabalha, como motorista de ambulâncias... (Trabalho que, diga-se de passagem, não é pera doce: há uns largos anos atrás a sua ambulância foi metralhadfa num musseque, quando um grupo de bandidos tentava asslatar a casa de um fulano ricaço... Os bandidos, que não sabem ler, confundiram o ti-no-ni da ambulãncia com o carro da polícia... Houve feridos graves; mas, mesmo com os pneus todos furados, ele lá conseguiu safar-se, com o assento todo crivado de balas)...

Tem 59 anos e muitas histórias para (e por) contar. É natural do Huambo. Fez a guerra colonial, do lado português, com "muita honra". Era furriel. Quando os sul-africanos invadem Angola, sua terra, as FAPLAS convocam-no para as suas fileira. Foi tenente de infantaria, comandando cerca de 70 homens. Participou em várias batalhas. E lá ficou na tropa e na guerra até à desmobilização, em finais de 1980, se não erro...

A cena mais dramática da guerra para ele não foram os bombardeamentos massiços da artilharia e aviação dos sul-africanos mas uma emboscada às portas de Luanda (c. 100 km), a um coluna de várias viaturas guarnecidas por um grupo de combate...

As viaturas foram todas destruídas, as FAPLAS tiveram cerca de 2/3 de baixas mortais, incluindo 7 cubanos... O meu motorista, na altura tenente, nunca mais se esqueceu desse dia pavoroso...

Hélder Valério disse...

Caro camarada Fernando Valente

É só para saudar a tua coragem e decisão de contares a tua 'história de vida', partilhando-a connosco.

Posso dizer que 'imagino' a vossa angústia ao aperceberem-se que a vossa vida, organizada em função da vossa realidade, iria ficar toda desorganizada. Posso dizer, de facto, mas cada um é que sabe realmente das suas vivências.

Vou acompanhar o seguimento.

Abraço
Hélder S.