1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 5 de Setembro de 2013:
Olá Carlos!
Às vezes tenho saudades tuas e admiro a tua persistência na alimentação do blogue. Mas tenho andado com o inspiramento orientado para a política, sem verter coisa com coisa, terrível situação que os donos do jardim à beira mar plantado aproveitam para incrementar a exploração.
Hoje "naveguei" pelos últimos folhetins da História da 2679, e lancei o repto ao Morais para que desenvolvesse alguma narrativa com manifesto interesse histórico.
Entretanto ocorreu-me esta coisa dos vícios que a malta cultivava, e de que algumas vezes nos machucávamos. Espero que não desagrade.
Um grande abraço para ti e para o tabancal.
JD
HISTÓRIA DA CCAÇ 2679
63 - O jogo do Poker
Putos espigadotes, com 18 ou 19 anos, jogávamos durante as noites de sábado umas pokeradas muito bem esgalhadas, sempre em casa dos amigos Santa (um deles foi alferes no Gabú), cuja mãe tinha uma imensa paciência para nos aturar as madurezas. Havia um ritual: enquanto nos encaminhávamos para o "casino", depois da bica e, eventualmente, da amarelinha pretensamente cognacada, ainda fazíamos uma deriva por um quintal onde houvesse capoeira com aves. E já éramos "experts" nessa arte de pilhar galinhas durante as noites, quando o tempo de reacção dos donos era manifestamente lento para nos atingirem com uma hipotética carga de chumbo.
Uma noite invernosa a coisa não correu bem, e apanhámos uma pomba branca, que aconchegada por baixo da gabardine transmitia um calor muito agradável, e por isso era disputada por todos. O Calapez, alarve, já se babava na expectativa da canjinha, enquanto afagava a bicha para lhe manter o moral elevado, importante condição para a perservação da textura das carnes, mas os restantes, principalmente o Chabert, já se inspiravam que era a verdadeira pomba da paz, e remoíam a ideia do abate, em vez de olharem para ela como a inimiga de que nos tínhamos de livrar.
Chegados a casa, deixámos a pomba na cozinha, com um pedaço de miolo de pão para engordar até à hora do juízo final. A malta abancava em torno da mesa, onde os baralhos mereciam a maior contestação com tantas marcas em evidência. Dos bolsos jorravam as moedas de tostão e dois tostões. Quando um gajo tinha um trio, já era coisa para avançar com três tostões; e com um "fullen", era coisa para sete ou oito tostões, porque exibir prata aplicava-se para alta sequência. Pelas manhãs, havia quem perdesse ou ganhasse dois escudos, e era uma festa.
Voltando à noite da pomba, alguém tinha que se incumbir da matança, mas, contristados, os aspirantes a batoteiros não revelavam a decisão necessária para os grandes golpes. Quando o Chabert entrou na cozinha para saciar a sede, logo a malta acorreu fechando e trancando a porta, que a que dava para a rua já estava armadilhada.
- Chapa, só deves dar sinal depois de matares a pombinha!, gritaram-lhe.
Passados longos momentos, alguém se abeirou a perguntar pela situação, e o coitado do Chabert soletrou alguma coisa como "já está!"
Entreaberta a porta, os olhares curiosos verificaram que a pombinha ainda dava às asas. pendurada de uma corta que a asfixiava pelo pescoço. O Chapa, incapaz de a liquidar com a rapidez e eficácia desejadas, acabou por ser cruel ao admitir que assim custaria menos. Pronto, a dona da casa foi acordada, e pela manhã não faltou a canja reconfortante.
Embarquei para o Funchal com o Zé Tito a bordo do paquete Funchal que fazia uma viagem turística. Ao passarmos a barra, no tombadilho, com os olhos postos na orla costeira que se alongava até à nossa terra, confessámo-nos que estávamos tesos. A noite tinha sido de inflação desvairada. Por junto arranjámos cerca de um conto e trezentos, que logo foi decidido reproduzir no poker, que se jogava em várias mesas. O Tito decidiu que eu abancaria com um conto, enquanto ele foi para o bar encher-se de gins e morder as balzakianas.
Os parceiros eram pessoas simpáticas, mas "traiçoeiros" nas jogadas que consumiam as minhas "caves". Esgotava-se o saldo, quando eu começava a compreender os "mecanismos" da cada um, mas surgiu o Tito a informar-se de como decorria o negócio.
- Estou quase teso - respondi.
Surpreendentemente, passou-me outro conto para a mão, e em menos de uma hora ganhei cerca de seis contos. Pedi licença, e retirei-me satisfeito. No intervalo dos gins ele tinha ganho nos jogos de cavalinhos.
Quando desembarcàmos, seria sexta ou sábado, apanhámos um táxi para o Savoy. Na segunda apresentámo-nos e pedimos um abono ao Comandante, pois tivémos que alugar alojamento no Beco de Sta Emília, e fazer face às despesas de instalação e jantares. A vida correra-nos muito mal durante o fim-de-semana, com muita festa e o hotel de luxo para pagar. Estávamos novamente tesos.
Em Piche eu levava uma vida de alta competição, com uma constância quase imparável de patrulhamentos, colunas, operações e emboscadas noturnas metade das noites semanais.
Quando dormia na cama, era para levantar cedo e abalar numa qualquer missão.
Uma noite, já eu pegara no sono, bebido, quando fui abanado. Reagi mal, como seria de esperar, e perguntei ao filho da puta o que queria. Já com os olhos abertos, deparei com a simpática carinha do nosso capelão, que me informava estar ali perto uma mesa muito simpática com malta para jogar o poker.
- Desculpe sô padre, não era para ofender. Vamos lá então durante um bocadinho.
Ganhei umas coroas, e voltei para a cama.
A cena repetiu-se por muitas vezes e, francamente, enquanto eu ganhava sempre, dei-me conta do milagre da multiplicação, pois o padre encavava todas as noites algumas notas de cem, sem retorno, e não tinha o ordenado de general. Mas se Deus escreve direito por linhas tortas, provavelmente estava ali para proteger o seu representante na terra, no sentido de não prejudicar a diplomacia necessária ao munus que ele exercia.
A minha última vez, aconteceu depois de eu sempre ter ganho.
Uma ocasião, os parceiros, com excepção do Zé Tito, tinham-se retirado da jogada. Na mesa, em disputa, estariam cerca de cinco contos, um dinheirão. Eu tinha ases por reis. O Zé apostou cem paus, e eu dupliquei. Ainda acrescentámos algumas notas ao monte que estava na mesa, e eu já me deliciava a imaginar o gajo em cuecas, teso como um carapau, esquecido pela alienação da nossa amizade
O Zé pagou para ver. Aí, exuberante e glorioso, atirei com as cartas para que todos vissem o mais mavioso dos "fullen" - full hand.
Quando me preparava para arrebanhar a massa, verifiquei que o Tito confrontava o seu jogo, e por cima dos óculos pousava o olhar nas minhas cartas.
Parecia desconfiado. Timidamente, ele demorava a dizer qualquer coisa, parecia que estava a mastigar alguma frase. E eu ampliava o gozo da minha vitória. Até que, numa posição de coluna curvada e quase prostração, o Tito balbuciou umas palavras que continham "sequência".
- O quê? - gritei ferido de morte.
Tomei consciência da vertigem e fiquei tão envergonhado que nunca mais voltei a jogar.
___________
Nota do editor
Último poste da série de 3 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11798: História da CCAÇ 2679 (62): Invasão em Bajocunda (José Manuel Matos Dinis)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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4 comentários:
Amigo José Dinis
Pois,lerpas,pokers ...ajudavam a passar e a desopilar e se não corresse mal até ajudava noutras distraçoes de espirito!Se mal...a conta ficava no bar!!!!
Em Binar...começavamos após a janta,,,até ao içar da Bandeira (já referenciado aqui).
Gostei de ler,como sempre
Abraço
Luis Faria
Camarada Dinis.
Presumo que não foste tu a escolher as cartas para a ilustração.
Uma máxima de cor em paus, com o ás e o rei, do mesmo naipe, dentro do fullen, era coisa para saltar a mesa a tiros de metralhadora.
Mas enfim, tu és homem para tudo.
Digo eu, sei lá.
Um abraço aqui, já que na Tabanca da Linha acho que nunca mais.
(gostaste desta piada?)
armando pires
Acontece, Zé Dinis acontece.
Há quase 50 anos que não jogo cartas, menos, sei lá aí quarenta e muitos.
Ainda hoje ponho os dedos em certas posições. Acontece...
AB, T
Olá José Dinis.
A guerra não foi só medo, tiros, emboscadas, feridos e mortos.
Também teve esses momentos que descreves, que ficaram na tua, e na memória de milhares de companheiros, o jogo de cartas, o cigarro, e um copito, fazia parte do nosso dia a dia, por acaso no meu tempo, era "sueca", "bisca", "montinho" e no princípio do mês "lerpa".
Eu, até andei mais de um ano a jogar a bisca, sempre a perder, até começar a aprender algumas "malandrices", e quando ganhei o primeiro jogo, o meu companheiro disse que já não jogava mais comigo, pois já sabia mais do que ele!.
Olha, gostei muito das tuas recordações, pois como antes disse, são nossas recordações.
Um abraço,
Tony Borie.
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