segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12419: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (7): Os macacos vermelhos

ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 7

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65)

“Os macacos vermelhos”

Os elementos da base de Canjambari chamavam-nos “macacos vermelhos”, vim a saber isso mais tarde, por confissão de um desses combatentes do PAIGC, em conversa com um dos nossos, que, finda a guerra, visitou Jumbembem.

Não se sentiam muito seguros connosco por perto, com a nossa actuação eficaz. Temiam-nos, pelo menos, tanto como nós a eles. Mas não desalojavam. O terreno era-lhes propício, com muitos pântanos em volta. Foi nessa estrada que, pouco depois de vir passar férias a casa em Junho de 1964, ver meus pais, irmãos e família, mas também a Lili e família e outros amigos, um pequeno estilhaço, já mortiço, me fez um risco no supercílio direito. Dia 9 de Outubro de 1964. Coisa de nada, sem importância, só um primeiro susto, apagou-se com o tempo. Ainda tive no entanto que me haver com algumas formigas que tinham subido a farda por dentro e já exploravam as partes de um homem. Só sosseguei, quando a refrega terminou e baixei a roupa e toca a caçar e a matar… Nesta mesma emboscada, havia de ser ferido também o capitão da 488, Manuel Correia Arrabaça.

As férias haviam acontecido no mês de Junho, tempo de festas e romarias, nomeadamente a de Santa Luzia, em Nariz, onde fomos de bicicleta, eu e a Lili, e outros amigos. Custosa foi a despedida. Agora, já sabia para onde ia, para a fronteira mais próxima de perigos, alguns letais. Já não tinha a vantagem da inocência do sangue, nem desconhecia nada, já havia experimentado tudo na minha pele, na pele e no sangue dos outros. Lembra-me a Lucília Oliveira que, quando me fui despedir dela, chorei. Talvez as lágrimas também que não convinha mostrasse à Lili. As lágrimas de um coração que andava batendo asas dentro de outro, tão novo e tão cândido.

Em Jumbembem, construiu-se, a partir de um celeiro e de uma casa de habitação de um cabo verdiano que ali montara serração e havia dado de frosques, um dos mais pobres quartéis de toda a Guiné, e até esteve à beira de ir pelos ares. No dia 14 de Dezembro de 1964, um soldado por distracção, carregou um candeeiro com gasolina, em vez de petróleo. Ao acendê-lo, deu-se a explosão e o fogo logo se propagou. Foi o pânico geral. Toda a gente tentou retirar da camarata o que pode. Eu consegui salvar a máquina fotográfica, uma Olimpus Pen, dinheiro, o Diário e alguma poesia. Resultado imediato: fiquei sem calções, farda, uns óculos contra o pó e toda a roupa da cama. Mas o perigo maior estava no fogo a rondar os bidões de gasolina. Todavia, lá conseguimos extinguir o incêndio que poderia ter proporções desastrosas.

Não sei se nesta altura, quando se declarou o incêndio, usava barba, de cor dourada, cobrindo o rosto anguloso, onde sobressaía um nariz aquilino mais disfarçado no seu tamanho ou se apenas bigode normal, sem quaisquer pontas. Também cheguei a andar de cabeça rapada, coberta de iodo que supostamente evitava a queda de cabelo que se prendia naturalmente com a água que corria de bidões guindados numa armação. Sei é que, assentando arraial em Jumbembem, onde, por longe ou perto, volta e meia, rebentavam negros e perigosos arraiais de fogo, diurno e nocturno, conforme a disposição dos guerrilheiros, deu-me, não só para vestir as alvas túnicas dos fulas, gente boa e esperta, como para mudar de visual. Não para me disfarçar perante o inimigo, que, raras vezes via, mas que existia e mexia com os nossos nervos, mas para encobrir, no caso das barbas, alguma calacice e, no caso do bigode, sugerir um rosto diferente para enviar à madrinha de guerra. Divertia-me assim, deste modo e com estes detalhes, sem importância para o que andávamos ali fazendo. Mas uma coisa é certa. Como os caminhos e carreiros eram de terra vermelha, tanto o bigode como a barba depressa ganhavam a cor do barro. E não só, todo o corpo descoberto. Com o farto suor, o corpo era quase um lamaçal.


As barbas havia-as de rapar, quando consegui ir até Bissau para um tratamento ao estômago. Ao fim de não sei quantas tentativas e previsões, transcorrendo nisto vários meses. Diga-se que a proposta para a consulta externa fora feita em 27 de Dezembro de 1964 e previa que tal viesse a acontecer no princípio do próximo ano. Mas até que chegasse assinada… Tinha bastante tempo de mato e era natural que a luta e o desgaste tivessem causado alguns danos a nível do sistema nervoso que logo se repercutia no estômago. Não é que estivesse realmente muito doente, mas era o verdadeiro pretexto para para passar alguns dias no remanso de Bissau. De Março fiquei para o mês de Abril. Escrevia à Lili já no dia 1 de Abril, dia das mentiras, mas era a verdade mais desejada como aos muçulmanos a leitura do Alcorão. No entanto, o estômago não andava, de verdade, muito bom. Iria aproveitar para tirar radiografias, fazer análises ao sangue, também às fezes. A radiografia ao estôamgo estava marcada para o dia 2 de Abril

Jumbembem, 1964 - Um refeitório improvisado

Em Bissau me encontrei com o alferes Manuel Pires de Oliveira, de Oiã, e o furriel Victor Manuel Dias Santos, da Silveira, gravemente ferido em combate em 17 de Janeiro de 1964 na guerra do Como. Ambos estão já na terra da verdade. E foi aqui que quebrei o jejum do vinho, que se arrastava há sete meses. Bebi vinho verde, que acompanhava uma encomenda, destinada a um furriel do meu pelotão, que ia de vez para a metrópole, a fim de sujeitar-se a uma cirurgia que consistia na extracção de um estilhaço que lhe restava de uma última operação, feita há mais de um ano, na Ilha do Como, precisamente no dia 16 de Fevereiro, quando o nosso pelotão tinha a (má) intenção de envenenar a água de um poço. O capitão Arrabaça estava a fazer a cobertura com a Breda… e uma bala de “fogo amigo” atingiu-o. Era o afilhado da Professora Fátima Moreira, do Silveiro, o furriel Albano Jorge de Oliveira, de Braga.

Foi uma bela patuscada. Onde havia presunto e queijo, entre outros mimos do Minho. A mim cabia-me pedir-lhe desculpa e dizer-lhe que tudo estava muito bom.

Em Bissau, graças ao furriel Victor Seabra, do Troviscal, vagomestre, que tinha a trabalhar na rádio de Bissau a namorada, bela rapariga libanesa, com quem veio a casar mais tarde, tive oportunidade de ser entrevistado nos meados de Março, falar da escrita, sobretudo de poesia, e dizer algumas produzidas na Guiné, nomeadamente uma de amor, dedicada à Lili. Quem conduziu a entrevista foi o jornalista Carlos Barra.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12397: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (6): O casamento do Jaime e da Manuela, A macaca ciumenta e O dia de santo avião

2 comentários:

Luís Graça disse...

Camarada, prosa da boa e castiça, que dá gosto ler!...E que memória fotográfica a tua!... É um privilégio pdoer ler, aqui, as tuas "últimas memórias da Guiné"... Luis Graça

Manuel Luí Lomba disse...

Olá, prezado camarada Armor Pires Mota. Lembro-me da tua entrevista à Emissora Provincial da Guiné-Portuguesa, creio logo após o nosso regresso da nomadização em Cufar. Lembro-me do Seabra e da locutora Paula Dieb, filha de libaneses estabelecidos perto do café Rui da Amura - uma versão menos cosmopolita do Café Bento- e tal amor em "tempo de guerra" era objecto de considerações variadas e da maior inveja. Em 1982 fui hospedado num anexo do Grande Hotel e a senhora Paula Dieb reconheceu-me logo. O Carlos Barra, que já não está no meio de nós, era furriel sapador e nosso camarada da CCS do BCav 705, fazia o Programa das Forças Armadas e a leitura dos noticiários. Um grande abraço e votos de um Ano Novo pleno de saúde e prsperidade.