sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13793: Notas de leitura (644): "O Mundo em AZERT - cadernos de um repórter”, por Cáceres Monteiro, edições O Jornal e Círculo de Leitores, 1984 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Março de 2014:

Queridos amigos,
É quase certo e seguro que esta reportagem datada não é um acontecimento histórico nem traz elementos novos.
Em termos gráficos, o álbum do jornalista é de uma grande beleza, tem um grafismo muito apurado.
Cáceres Monteiro viaja pela Guiné acompanhado de um gigante da fotografia, Eduardo Gageiro, ele capturou imagens que lhe vieram averbar a celebridade que já tinha, recebeu mais prémios internacionais.

Um abraço do
Mário


O mundo em AZERT: 
Cáceres Monteiro na Guiné, depois do golpe de Nino Vieira

Beja Santos

“O Mundo em AZERT”, por Cáceres Monteiro, edições O Jornal e Círculo de Leitores, 1984, é um álbum soberbo onde participaram para além do repórter Carlos Cáceres Monteiro, então chefe de redação-adjunto de O Jornal, três dos melhores repórteres fotográficos portugueses: Carlos Gil, Eduardo Gageiro e Joaquim Lobo. Cáceres Monteiro justifica assim este livro: “A melhor sensação que um jornalista pode ter é sentir que está a viver, par a par, com a história do seu tempo. Em algumas ocasiões, foi viva a sensação de que era uma testemunha privilegiada da história do nosso planeta. As reportagens que se incluem neste livro foram feitas no Sudeste Asiático, Vietname e Camboja; na América Central, em El Salvador e na Guatemala; em África, onde fui observador atento das turbulentas independências de Angola e do Zimbabué e diz a reportagem do golpe de Estado da Guiné-Bissau e onde tentei entender Moçambique e o seu líder Samora Machel; estive também no Irão, no auge dos fuzilamentos ordenados por Khomeini”.

Cáceres Monteiro acompanha a deslocação do Presidente Eanes até ao Saltinho e descreve a movimentação: “As escavadoras rompem já a floresta para resgarem a nova estrada, num assomo de progresso inusitado. E, quilómetros além, num sítio de cataratas do rio Corubal, atravessado por uma ponte metálica onde persistem inscritos os números mecanográficos e as naturalidades dos soldados da guerra colonial, pode vir a nascer uma grande barragem, com projeto português.
Saltinho, África, mesmo África. Gente saída das cubatas ancestrais vêm saudar o Presidente Eanes – e o nome de Nino Vieira aparece quase apagado nas manifestações cerimoniais dos manifestantes. Foi Eanes que eles vieram ver. Numa nota surreal, uma turma de futebol equipada às riscas azuis e brancas, tal e qual como o Porto, perfila-se na primeira linha da multidão. Futebol Clube de Tombali saúda o presidente Eanes”.

Não sem um assomo de malícia, o repórter aponta a miragem de alguma fartura que acompanhou a visita de Eanes à Guiné-Bissau: “No dia em que Ramalho Eanes chegou à Guiné-Bissau, onde normalmente não se vende qualquer produto importado, passou a haver de tudo: cerveja, água tónica em lata, uísque, gim. Comida. A Guiné-Bissau gastava os últimos dólares da linha de crédito. Depois disso seria a rutura financeira”. Chega Eanes e abre o supermercado, põe à venda Ovomaltine e Nestlé. Se no termo do consulado de Luís Cabral a rutura financeira era um facto, não desapareceu com Nino Vieira o fantasma da bancarrota. Nino Vieira pede uma ajuda de milhões e ameaça que se Portugal não lhe desse resposta o país voltar-se-ia para os vizinhos francófonos.

Estamos em 1982, Eanes é o primeiro Chefe de Estado a visitar a Guiné-Bissau depois do golpe de Nino, Luís Cabral já foi libertado. Cáceres Monteiro orienta o olhar para esse golpe em que, segundo alguns, foi antecipado quando Nino Vieira soube que estava projetado o seu assassinato pelas forças fiéis de Luís Cabral. Em 14 de novembro, o golpe iniciou-se junto à Embaixada portuguesa, com um disparo de rajadas, era o sinal de aviso para as movimentações militares. As tropas fiéis a Nino não encontraram praticamente resistência. As causas próximas do golpe também radicaram na discussão da nova Constituição, nela se previa uma concentração de poderes nas mãos de Luís Cabral, Constituição humilhante para guineenses comparativamente com a Constituição de Cabo Verde. O poder mudou de mãos e logo choveram as acusações de ostentação de privilégios por parte dos comissários do Governo, sempre a viajar para o estrangeiro e a deslocar-se na Guiné em rutilantes Volvos.

O repórter conta como Vasco Cabral escapou por pouco durante o golpe de Estado, foi ferido, fingiu-se morto e conseguiu escapar. Retrata Nino Vieira como um romântico, uma espécie de pequeno Che Guevara da África Equatorial, porém sem preparação ideológica. Cedo Nino Vieira enreda-se em negócios com Valentim Loureiro e Ferreira Torres. Nino aproveitou bem o descontentamento gerado pelas carências sentidas durante o consolado de Luís Cabral, coligou-se com militares, com Vítor Saúde Maria, Freire Monteiro e Iafai Camará, formam um Conselho da Revolução. As novas autoridades guineenses quiseram imediatamente atribuir a Luís Cabral crimes nefandos, abriram-se valas onde estavam enterrados ex-comandos guineenses e adversários do PAIGC. Na altura, um amigo de Nino, J. Turpin comentou que “Isto foi pior do que o colonialismo português”. Pedro Pires, então primeiro-ministro de Cabo Verde, desdramatizou, atribuiu esses acontecimentos a todos os responsáveis políticos, era impensável que alguém os ignorasse.

Um aspeto curioso é que o novo Conselho da Revolução destituiu Luís Cabral, dissolveu a Assembleia Nacional Popular mas reconduziu praticamente todos os membros do Governo anterior. Alguém comentou: “A lógica deste golpe é analógica”. E a reportagem de Cáceres Monteiro termina assim: “Quando chegámos ao aeroporto de Bissau, logo um guineense de rádio em punho nos veio dizer, cheio de júbilo, que Portugal tinha derrotado a Irlanda do Norte e nas ruas de Bissau, para além de todos os outros vestígios, não faltam as máquinas de registo do Totobola. A imprensa portuguesa é aqui mais conhecida e lida do que em muitos pontos do território nacional…”.

A capa deste álbum é um primor de Rochinha Diogo. As duas fotografias pertencem ao genial Eduardo Gageiro, a mãe com o seu bebé é uma das fotos internacionalmente mais premiadas do fotógrafo, mas é realmente muito impressiva a fotografia dos velhos guerreiros, trata-se de um instantâneo sublime.


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Nota do editor

Último poste da série de 20 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13768: Notas de leitura (643): General Spínola ao Diário de Lisboa, em 9 de setembro de 1972: Não há que temer a autodeterminação (Mário Beja Santos)

8 comentários:

Antº Rosinha disse...

"Saltinho, África, mesmo África. Gente saída das cubatas ancestrais vêm saudar o Presidente Eanes –"

Perto do Saltinho é Vila Formosa (Quebo) onde Eanes esteve como tenente Ramalho Eanes.

A popularidade era tanta que havia uma «boca» que Ramalho Eanes teve um filho naquela região e que o adoptou e o trouxe para Portugal, e isso funcionava que nem psico.

Eanes esteve na Guiné com Luís Cabral e com Nino, e houve para ali tanto perdão de dívidas (TAP, Linhas de CRédito...etc., que aqueles governos tugas têm o paraíso garantido (e Valentim Loureiro, consul, também)

Cáceres Monteiro foi do mais agradável de jornalismo que havia naquele tempo.

Obrigado BS.

Anónimo disse...

Como Tenente no Saltinho? Quando,se 1964 já era Capitão? Creio que em 1970 estava na Guiné.

J.Cabral

Antº Rosinha disse...

J. Cabral, a «boca» do povo, é que o herdeiro era de Vila Formosa, não Saltinho.

Eu é que observo que são perto um local do outro, que na realidade numa das visitas era precisamente para observar o local da «futura» barragem segundo Cáceres Monteiro, e que era na realidade um projecto português, aqui testemunho eu próprio que o projecto era da Empresa de projectos "COBA" que ainda existe.

Aproveito para dar a minha opinião sobre essa «coisa» da barragem, com Luís Cabral, essa barragem ia em frente porque toda a gente «branca» acreditava no irmão de Amílcar Cabra, suecos, americanos, e até Portugal tinham muita fé no Luís Cabral, os guineenses e os vizinhos é que não, feliz ou infelizmente, aqui já não sei.

J. Cabral, este blog não é para contarmos a história tal qualmente?

Eu não mudo nadinha do que via, ouvia, e é essa a minha intenção.

Também punha as minhas reservas, tanto no posto militar, como no adn do herdeiro etc.

Mas também como festejei o aniversário de uma criança manjaca, de pai e mãe, e assumida por um sueco Bjorg, sem pestanejar, porque é que ia dar um espelho ao albino para ver a própria cara com a criança ao colo?

J. Cabral, a imagem de Eanes em Bissau, naquele povo simples foi marcada por uma empatia extraordinária, ao ponto de ter que haver alguns discursos a esfriar o entusiasmo.

Já não aconteceu o mesmo entusiasmo com a visita de Mário Soares, antes pelo contrário.

E, j Cabral, como temos que transmitir tudo ao natural, olha só esta de um Balanta:

?Então esse Mário Soares, em vez de nos agradecer aos guineenses, o facto de hoje ser presidente de Portugal, ainda quer mandar em nós?

De facto Soares não concordava que Nino matasse pessoas.

J. Cabral, o povo «disse-o, disse-o»

Cumprimentos.

paulo santiago disse...

Aldeia Formosa não Vila Formosa

Santiago

Cherno Balde disse...

Caro amigo Rosinha,

Apesar do entusiasmo do povo e das simpatias que uma figura importante como o Gen. Ramalho Eanes mereceu em solo guineense durante a sua visita como primeiro chefe de estado Portugues eleito apos o 25ABRIL, as relacoes entre Portugal e a sua ex-colonia nunca foram sinceras porque "quem abandona os seus amigos e aliados numa situacao dificil, em nenhum caso poderia beneficiar da confianca dos seus ex-inimigos".

Segundo consta, o Ramalho Eanes fez a comissao militar no Norte da Guine (Chao manjaco) entao com a patente de capitao.

Um abraco amigo,

Cherno Balde

Antº Rosinha disse...

Ó amigo Cherno, quanto à sinceridade, referes-te à sinceridade de quem? dos militares metropolitanos que abandonaram os seus fieis comandos africanos?

Dos cooperantes, muitos professores, outros médicos que iam do Alentejo ou do Minho "ajudar" esse "pobre" povo, assistindo como mirones àquela fome das formas para o pão, para as pilhas, para o sabão, para o arroz, que esgotava sempre pela porta dos fundos?

E achavam aquela fome tudo normal?

Infelizmente Cherno, tudo é política, e em política não há mesmo sinceridade nenhuma.

E as independências africanas, mais do que pelas armas, foi a política que resolveu.

Portanto não há mesmo qualquer sinceridade.

Até as matanças e genocídios, quer na Europa ou África, não passa de política.

E no caso de África, a Guiné Bissau, comparando com certos países que nem vale a pena mencionar, até é um país de muita paz.

O povo pelo menos respeita-se, os intriguistas governantes é que são semelhantes a outros países.

Se continuar assim, já não é totalmente mau, que se matem uns aos outros, e que deixem o povo em paz.

Conheci cooperantes do mundo inteiro nesse pequeno território, e todos ficavam admirados porque vocês guineenses "ainda falavam" com os nazis tugas, assassinos, criminosos, fascistas e colonialistas.

Talvez os homens da idade do teu pai e da minha idade soubessem explicar a esses cooperantes, principalmente suecos, porque os guineenses falavam ao colon tuga.

Sabes quem foi a maior testemunha dos genocídios terríveis, com máquina a tiracolo e televisão e jornais no ex-Congo Belga e Ruanda?

Não foi o colon Belga, foram os cooperantes Suecos (de Harmaskjoeld) da ONU.

Também aí na Guiné, os Suecos quando viam aquela fome de Luís Cabral e de Nino e respectivas bichas para o pão, enviavam em socorro imediatamente um Volvo para cada ministro.

Embora também pagassem os salários aos professores guineenses, mais laxismo e desobrigações e vícios estragavam o caracter daqueles ministros "bem intencionados".

Sabes Cherno, estou cada vez mais reaccionário, então com aquilo que vejo aqui na minha terra fico mesmo em ponto.

Cumprimentos.

PS: Pois é Santiago já promovi a Aldeia a Vila.

Passei muitas vezes à beira daquele arame do Quartel que ainda funcionava em 1994, e dava-me uma claustrofobia, só de olhar de soslaio!







antonio graça de abreu disse...

Ramalho Eanes esteve no meu CAOP 1, em Teixeira Pinto, em 1970. Era capitão, depois promovido a major e chegou de Bissau em substituição dos três majores do CAOP 1, traçoeira e barbaramente assassinados pelo PAIGC.

Abraço,

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Em 1963 o meu cunhado( já falecido) foi mobilizado para Macau sob o comando do Cap.Ramalho Eanes). Em 1970, fui visitado em Fá, pelo Major Ramalho Eanes, que aliás me deu uma valente "piçada" pelo estado da escola...

Não sei se cumpriu outra comissão na Guiné,mas de certeza não foi como Tenente...

ABRAÇO. J.Cabral