Vigésimo quarto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.
Glória, Lola, a Ruça (5)
Hoje fomos à praia só para caminhar na areia, dizem
que faz massagens nos pés, o que na nossa idade é
muito bom para a saúde, não vimos a Glória, mas vamos
continuar com a sua história.
Cá vai.
A Glória e o Jorge, já com algum dinheiro economizado,
decidiram comprar uma oficina de gradeamentos em
ferro, que estava à venda, portanto, acertaram o preço e
compraram.
Passado um tempo, a Glória encarregava-se do trabalho
de fora, o Jorge, da contabilidade, contacto com os
clientes e da oficina, às vezes ajudava e orientava a
Glória, que entretanto frequentou uma escola de vocação,
onde aprendeu a usar o maçarico a gás de cortar ferro, a
soldar com diferentes máquinas e diversos materiais, com
alguma segurança, carregava com os portões e
gradeamentos, com a ajuda de alguém que entretanto
contratara, instalava esses portões e gradeamentos. Os
clientes gostavam, era uma coisa nova, portões e
gradeamentos em ferro forjado, com feitios lindos. O
negócio, num abrir e fechar de olhos, estava a progredir,
era uma região de muitas casas grandes, tipo
mansões.
Entretanto a Glória fica grávida e nasce um rapaz.
Só tirou tempo fora do trabalho, praticamente para ir ao
hospital por altura do parto, continuava com a mesma
vontade no trabalho, o bebé cresceu, começou a andar e
a falar na oficina, primeiro num berço, num compartimento
ao lado, a que chamavam escritório, depois por tudo o
que era espaço, acompanhando o pai e a mãe. Fica
grávida de novo, segue o mesmo regime do primeiro,
nasce uma menina, que tal como o menino é criada
praticamente no trabalho.
Todo o trabalho que executavam na oficina era
apreciado, pois era uma novidade, as pessoas para quem
executavam esse trabalho, foram falando, algumas eram
importantes e com alguma influência, cada vez tinham
mais encomendas. Foram crescendoe o espaço tornou-se
pequeno, nos arrabaldes de outra cidade, mais para
norte, nuns terrenos que lhe foram cedidos com um
contrato de 99 anos, onde se comprometeram a não
modificar o ambiente, respeitando os cursos de água e
algumas árvores, fizeram uma grande oficina, com
parque para estaleiro de materiais, onde os camiões
podiam carregar e descarregar.
Os filhos foram estudar. O rapaz, engenheiro, com a
experiência que adquiriu ao longo dos anos,
principalmente com a mãe, começou a trabalhar lá fora, dirigindo pessoal, fazendo projectos,
na instalação dos portões e gradeamentos. A filha,
contabilista, trabalha com o pai na oficina. Todas as
novas urbanizações, que se faziam nas cidades próximas,
já obedeciam à nova configuração dos seus portões e
gradeamentos, que entretanto tinham formas
representando figuras de palmeiras, animais ou outros
motivos, alguns importados do México. Estavam na moda.
O negócio continuava a crescer, já tinham encomendas
de fora do estado, tinham algumas dezenas de
colaboradores, os dois brasileiros, companheiros de
viagem, eram encarregados na nova oficina.
E ela dizia:
- Isto também é vosso, bendita a hora em que nos
encontrámos!
O Jorge faleceu antes dos cinquenta anos de vida, teve
uma doença que na época não tinha cura. A Glória ficou
viúva, dedicou-se aos filhos que entretanto tomaram
conta do negócio. Casaram, o filho deu-lhe dois netos e a
filha deu-lhe um.
Como em criança, não teve oportunidade de brincar,
agora cuida e brinca com os netos, na sua casa na praia,
próximo de onde vivemos. Os filhos, sabendo a mãe que
têm, confiam-lhe as crianças por bastante tempo e a
Glória, a “Lola”, a que alguns chamavam “Ruça”, anda
feliz pela praia com o mais novo ao colo, os outros pela
mão um do outro e, sempre que passa um cão, ou algo de
estranho, vêm a fugir, esconder-se e encostarem-se às
pernas da avó, tal como faziam os seus irmãos quando
vivia na aldeia em Portugal.
Que viva por longos anos.
Tony Borie, Julho de 2015.
____________
Nota do editor
Postes anteriores de:
7 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14710: Libertando-me (Tony Borié) (20): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (1)
14 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14744: Libertando-me (Tony Borié) (21): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (2)
21 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14776: Libertando-me (Tony Borié) (22): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (3)
e
28 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14804: Libertando-me (Tony Borié) (23): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (4)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Tony
Li este relato em episódios, que retratam as vicissitudes de quem tenta ter uma vida melhor e tenta num país diferente, porque no seu não teve oportunidade.
É uma história de vida que retrata a vida de milhares de emigrantes, que labutaram e labutam todos por um El Dourados. Nem todos têm sorte, nem todos conseguem alcançar o bem estar e dar um futuro aos filhos.
O presidente Obama disse, que a América foi construída pelos emigrantes como resposta às leis, que os seus opositores políticos pretendiam implementar e consequente expulsão de milhares de cidadãos que embora trabalhem há muitos anos nos USA, são considerados clandestinos. No entanto os clandestinos que tentem estabelecer-se, têm cada vez mais dificuldade.
Também cá Europa o problema transformou-se em tragédia, com milhares de fugitivos das guerras e da repressão, que assolam os seus países de origem. Milhares de homens, mulheres e crianças, estão em constante marcha por uma vida melhor, milhares morreram e muitos vão morrer, sem que os países ricos que afinal são os beneficiários da exploração das riquezas dos seus países, encontrem uma solução que faça parar de vez a miséria humana, que existe às nossas portas.
Nós sabemos que parte desta tragédia, faz parte de um plano para manterem as coisas sobre controlo, que aparentemente estão descontroladas, porque se assim não fosse já tinham resolvido a situação. Fazem um todo dos vários poderes, das influencias e de uma forma perigosa empurram-se uns aos outros.
Gostei de ler e a estas minhas considerações em nada querem ofuscar a coragem e qualidade de milhares de emigrantes, que ajudaram e ajudam a construir os países que os acolhem na esperança de que também eles tenham direito a bocadinho do paraíso terrestre.
Um abraço
Olá, meu caro Tony.
Não tem havido, da minha parte, "feedback" aos teus escritos aqui publicados. Preciso agora de te dizer que a sua leitura me tem dado muito prazer. Foi o que aconteceu, mais uma vez, com esta "Glória, ...".
Um grande abraço
Manuel Joaquim
Olá companheiros.
Obrigado pelos vossos simpáticos comentários.
Tanto ao Juvenal Amado como ao Manuel Joaquim, de quem aprecio e aprendo com os vossos escritos, fazem-me continuar e, não calculam a vontade que tenho em contar-vos tudo, antes que o tempo desapareça!.
Um abraço e bem hajam companheiros.
Tony Borie.
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