por Luís Graça (*)
[para o Eduardo Jorge Ferreira, ex-alf mil, PA, BA 12, Bissalanca, 1973/74, natural do Vimeiro, Lourinhã; e o último descendente dos bravos da batalha do Vimeiro; diz a lenda que os patriotas, portugueses, eram poucos mas bons; todos os demais, de um lado e do outro, eram estrangeiros, franceses, espanhóis, ingleses, mercenários](**)
Casas caiadas paradas,
o
silêncio escorrendo pelas paredes,
nas
águas furtadas
já não
dormem as criadas
e na
praça, ah!, da liberdade,
já não se
ouve o frufru das sedas
roídas
pelo bicho da traça.
“Esquecei
o que vedes”,
diz um aviso ao povo,
diz um aviso ao povo,
apregoado pelo almotacé da cidade,
poeta,
cego, negro, escravo,
enquanto, não longe, em Porto Novo
o mar é de labaredas,
e há turistas, voyeuristas,
espreitando por ruelas e veredas.
enquanto, não longe, em Porto Novo
o mar é de labaredas,
e há turistas, voyeuristas,
espreitando por ruelas e veredas.
Há bonecas de porcelana,
quiçá
das Chinas,
às
janelas,
e os
dedos delas
confundem-se
com as rendas de bilros,
as
teias de aranhas,
as
cortinas,
os
brocados de cetim,
os
deveres e os lavores femininos,
as
máscaras de Arlequim,
as
fantasias de antigos carnavais,
e as façanhas
dos soldadinhos de chumbo imperiais.
e as façanhas
dos soldadinhos de chumbo imperiais.
Dedos
que teceram intrigas e redes,
redes
de pescadores
há
muito perdidos nas colinas
do alto
mar.
Ou
dedos que alimentaram outras redes,
clientelares,
sociais, clandestinas,
sob os
portais,
os corredores e as esquinas
dos paços,
dos passais,das celas conventuais
e dos passos perdidos
das
antecâmaras reais.
O
silêncio não para
ou só
vai parar
a um
metro do chão,
na
barra azul
dos
moinhos de vento
mais a
sul,
entre
pomares e vinhedos,
os búzios
e o cavername
das barcas naufragadas.
os búzios
e o cavername
das barcas naufragadas.
À
entrada.
fora
das muralhas,
o
cemitério,
cofre
forte de segredos.
Aqui
acabam-se todos os medos,
e os heróis da última das batalhas
não têm sequer honras de mortalhas.
Valhe-te a brisa do mar
e os heróis da última das batalhas
não têm sequer honras de mortalhas.
Valhe-te a brisa do mar
que te
faz algum refrigério
na
canícula do fim de estação
da tua
civilização.
Casas
paradas caiadas
com a
mesma cal viva
das
valas comuns,
pelos claustros
do convento,
entre
suspiros, sussurros e zunzuns,
esquivam-se
furtivos noctívagos
trânsfugas,
pecadores,
esbirros,
hereges,
iluministas e iluminados,
iluministas e iluminados,
proscritos
desertores,
jacobinos e ultramontanos
jacobinos e ultramontanos
penitentes,
mouros, judeus e ciganos,
mouros, judeus e ciganos,
almas
penadas,
poetas
malditos,
almocreves,
almoxarifes,
santos inquisidores,
quiçá bruxas e duendes.
almocreves,
almoxarifes,
santos inquisidores,
quiçá bruxas e duendes.
A
calçada, outrora portuguesa,
gasta
pelos cascos dos cavalos
dos
invasores,
picam-se
os brasões dos solares
da mui
antiga nobreza,
corta-se cerce
a árvore
genealógica
dos
velhos senhores
e
salgados são,
até à ponta do mais fundo alicerce,
até à ponta do mais fundo alicerce,
os seus
doces lares.
Um
estranho odor
a
incenso, mirra, maresia
e pólvora dos fuzis,
e pólvora dos fuzis,
sobe
pelos ares.
Violadas
as filhas,
raptadas
as servas,
acorrentados ao pelourinho os criados,
acorrentados ao pelourinho os criados,
passados
a fio de espada
os
primogénitos,
fundido
o ouro e a prata dos brasis,
postos
os novos deuses nos altares,
pergunta a jovem guia do centro interpretativo
o que é
pior,
se a triste
e vil desonra do presente
ou se o
silêncio premonitório do futuro.
Por ti,
nada de bom auguras,
não
sabes que lugar é este
sem
memória
nem
glória,
à beira
da estrada
do
Atlântico oeste
da tua
infância revisitada,
o mar
do Cerro em frente.
Não há
mais quem cante o cante
dos
poetas,
a doce cantilena
das Naus Catrinetas,
o fero
cântico dos últimos guerreiros
do
Império,
ou até a
última oração,
de raiva, lamento e impropério,
em
canto chão,
que é
devida
aos
bravos
que
pela pátria deram a vida.
"Ninguém morre pela pátria, minha querida,
morres pelos teus,
que te estão mais próximos,
a família, os vizinhos, os amigos, os camaradas".
"Ninguém morre pela pátria, minha querida,
morres pelos teus,
que te estão mais próximos,
a família, os vizinhos, os amigos, os camaradas".
Fora de
portas,
num
atalho ou trilho
que
leva ao monte das forcas,
compras
o último pão de centeio
e a
última boroa de milho
à
última padeira de Aljubarrota
que
ainda estava viva,
à hora
do pôr do sol.
Padeira,
viandeira,
mãe coragem,
altiva,
que nem
sempre o que parece é,
a
vitória ou a derrota,
medindo
forças no tribunal da história.
Águas paradas
do rio Alcabrichel,
tingidas
de verdete e de sangue,
no fim
de tarde de todas as batalhas.
"Pour Monsieur Junot,
c' était encore trop tôt!",
manda dizer o ajudante de campo,
enquanto sobe para a carruagem.
Saqueada a cidade,
manda dizer o ajudante de campo,
enquanto sobe para a carruagem.
Saqueada a cidade,
enchem-se
as tulhas,
despejam-se as talhas,
despejam-se as talhas,
ainda a
guerra é uma criança,
e quem não viu não vê,
acrescenta o enviado especial da TV
em apontamento de reportagem.
e quem não viu não vê,
acrescenta o enviado especial da TV
em apontamento de reportagem.
O
último terno de cornetins
da fanfarra
do exército dizimado
toca a
silêncio,
enquanto
te despedes
na
parada, em ruínas, do quartel.
Em boa verdade,
a música do silêncio
é a única linguagem universal
que tu conheces
na Torre de Babel.
Em boa verdade,
a música do silêncio
é a única linguagem universal
que tu conheces
na Torre de Babel.
Luís Graça
v19, revisto, 6/7/2015.
___________
Notas do editor:
(*) Último poste da série > 5 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14836: Manuscrito(s) (Luís Graça) (60): Se todos os pescadores do mundo...
(**) Vd. poste de 7 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14842: Agenda cultural (413): Vimeiro, Lourinhã, 17 a 19 de julho: recriação histórica da batalha do Vimeiro (1808) e mercado oitocentista... Com apoio da, entre outros parceiros, Associação para a Memória da Batalha do Vimeiro (AMBV) (Eduardo Jorge Ferreira, ex-alf mil, PA, BA 12, Bissalanca, 1973/74)
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