quarta-feira, 8 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14846: Manuscrito(s) (Luís Graça) (61): Poema interpretativo da batalha do Vimeiro (, dedicado ao Eduardo Jorge Ferreira)

Poema interpretativo da batalha do Vimeiro

por Luís Graça (*)


[para o Eduardo Jorge Ferreiraex-alf mil, PA, BA 12, Bissalanca, 1973/74, natural do Vimeiro, Lourinhã; e o último descendente dos bravos da batalha do Vimeiro;  diz a lenda que os patriotas, portugueses, eram poucos mas bons; todos os demais, de um lado e do outro,  eram estrangeiros, franceses, espanhóis, ingleses, mercenários](**)


Casas caiadas paradas,
o silêncio escorrendo pelas paredes,
nas águas furtadas
já não dormem as criadas
e na praça, ah!, da liberdade,
já não se ouve o frufru das sedas
roídas pelo bicho da traça.
“Esquecei o que vedes”,
diz um aviso ao povo, 
apregoado pelo almotacé da cidade,
poeta, cego, negro, escravo,
enquanto, não longe,  em Porto Novo
o mar é de labaredas,
e há turistas, voyeuristas,
espreitando por ruelas e veredas.

Há bonecas de porcelana,
quiçá das Chinas,
às janelas,
e os dedos delas
confundem-se com as rendas de bilros,
as teias de aranhas,
as cortinas,
os brocados de cetim,
os deveres e os lavores femininos,
as máscaras de Arlequim,
as fantasias de antigos carnavais,
e as façanhas
dos soldadinhos de chumbo imperiais.

Dedos que teceram intrigas e redes,
redes de pescadores
há muito perdidos nas colinas
do alto mar.
Ou dedos que alimentaram outras redes,
clientelares, sociais, clandestinas,
sob os portais,
os corredores e as esquinas  
dos paços,
dos passais,
das celas conventuais
e dos passos perdidos
das antecâmaras reais.

O silêncio não para
ou só vai parar
a um metro do chão,
na barra azul
dos moinhos de vento
mais a sul,
entre pomares e vinhedos,
os búzios 
e o  cavername
das  barcas naufragadas.
À entrada.
fora das muralhas,
o cemitério,
cofre forte de segredos.
Aqui acabam-se todos os medos,
e os heróis da última das batalhas
não têm sequer honras de mortalhas.


Valhe-te a brisa do mar
que te faz algum refrigério
na canícula do fim de estação
da tua civilização.
Casas paradas caiadas
com a mesma cal viva
das valas comuns,
pelos claustros do convento,
entre suspiros, sussurros e zunzuns,
esquivam-se furtivos noctívagos
trânsfugas,
pecadores,
esbirros,
hereges,
iluministas e iluminados,
proscritos
desertores,
jacobinos e ultramontanos  
penitentes,
mouros, judeus e ciganos,
almas penadas,
poetas malditos,
almocreves,
almoxarifes,
santos inquisidores,
quiçá bruxas e duendes.

A calçada, outrora portuguesa,
gasta pelos cascos dos cavalos
dos invasores,
picam-se os brasões dos solares
da mui antiga nobreza,
corta-se cerce
a árvore genealógica
dos velhos senhores
e salgados são,  
até à ponta do mais fundo alicerce, 
os seus doces lares.

Um estranho odor
a incenso, mirra, maresia
e pólvora dos fuzis,
sobe pelos ares.
Violadas as filhas,
raptadas as servas,
acorrentados ao pelourinho os criados,
passados a fio de espada 
os primogénitos,
fundido o ouro e a prata dos brasis,
postos os novos deuses nos altares,
pergunta a jovem guia do centro interpretativo
o que é pior,
se a triste e vil desonra do presente
ou se o silêncio premonitório do futuro.

Por ti, nada de bom auguras,
não sabes que lugar é este
sem memória
nem glória,
à beira da estrada
do Atlântico oeste
da tua infância revisitada,
o mar do Cerro em frente.

Não há mais quem cante o cante
dos poetas,
a doce cantilena das Naus Catrinetas,
o fero cântico dos últimos guerreiros
do Império,
ou até a última oração,
de raiva, lamento e impropério,
em canto chão,
que é devida
aos bravos
que pela pátria deram a vida.
"Ninguém morre pela pátria, minha querida,
morres pelos teus,
que te estão mais próximos, 
a família, os vizinhos, os amigos, os camaradas".


Fora de portas,
num atalho ou trilho
que leva ao monte das forcas,
compras o último pão de centeio
e a última boroa de milho
à última padeira de Aljubarrota
que ainda estava viva,
à hora do pôr do sol.
Padeira, 
viandeira, 
mãe coragem, 
altiva,
que nem sempre o que parece é,
a vitória ou a derrota,
medindo forças no tribunal da história.

Águas paradas do rio Alcabrichel,
tingidas de verdete e de sangue,
no fim de tarde de todas as batalhas.
"Pour Monsieur Junot,
c' était encore trop tôt!",
manda dizer o ajudante de campo, 
enquanto sobe para a carruagem.
Saqueada a  cidade,
enchem-se as tulhas,
despejam-se as talhas,
ainda a guerra é uma criança,
e quem não viu não vê,
acrescenta o enviado especial da TV
em apontamento de reportagem.

O último terno de cornetins
da fanfarra do exército dizimado
toca a silêncio,
enquanto te despedes
na parada, em ruínas,  do quartel.
Em boa verdade, 
a música do silêncio 
é a única linguagem universal 
que tu conheces 
na Torre de Babel.

Luís Graça
Lourinhã, Vimeiro, fim de verão, 2014. Versão anterior: Extremadura(s)
v19, revisto, 6/7/2015.

___________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 5 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14836: Manuscrito(s) (Luís Graça) (60): Se todos os pescadores do mundo...

(**)  Vd. poste de 7 de julho de  2015 > Guiné 63/74 - P14842: Agenda cultural (413): Vimeiro, Lourinhã, 17 a 19 de julho: recriação histórica da batalha do Vimeiro (1808) e mercado oitocentista... Com apoio da, entre outros parceiros, Associação para a Memória da Batalha do Vimeiro (AMBV) (Eduardo Jorge Ferreira, ex-alf mil, PA, BA 12, Bissalanca, 1973/74)

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