terça-feira, 4 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16559: Inquérito 'on line' (70): Ricos e pobres, a tropa e a guerra... O caso de um camarada meu do 4º turno de 1971, no CISMI, Tavira , que era alegadamente filho de um grande acionista da Tabaqueira (Henrique Cerqueira , ex-fur mil, 3.ª CCAÇ / BCAÇ 4610/72, e CCAÇ 13, Biambe e Bissorã, 1972/74)



Tavira, 1 de fevereiro de 2014 > Quartel da Atalaia > Antigo CISMI, hoje Regimento de Infantaria nº 1 (desde 2008)


Foto: © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados


1. Comentário de Henrique Cerqueira [,  ex-fur mil,  3.ª CCAÇ/BCAÇ 4610/72, e CCAÇ 13, BiambeBissorã, 1972/74; vive no Porto]:

De princípio não achei lá muito interesse neste tema. No entanto e por força das visualizações do poste acabei por me lembrar de um caso relacionado que se passou no ano de 1971 em Tavira.

Então era o seguinte: quando estávamos no curso de sargentos em Tavira no 4º turno de 1971 e como quem lá passou se lembrará que era mais que frequente os instruendos serem praxados com várias idas às salinas para fazerem exercícios de ordem unida e outros, para belo prazer dos instrutores. Sim, porque de instrução não se tratava.

Mas o maior prazer dos instrutores era gozarem com o pessoal nas formaturas de almoço pois que eram tantas as idas às salinas que não havia fardamento que chegasse para estarmos em ordem nessas formaturas e daí era constante os castigos por falta de atavio.

É então que determinado dia um dos nossos camaradas de instrução, que por sinal se dizia ser filho de gente rica e que o seu pai era o dono da Tabaqueira, resolveu ir para a formatura de almoço completamente cheio de lama mal cheirosa ao ponto de mais parecer uma estátua de barro.

Não sei se era por ser rico ou não, o que é certo é que nesse dia a malta teve direito a mais um tempinho para se limpar.

Lembro-me perfeitamente que esse camarada, do qual não me lembro do seu nome, era muito irreverente já para a época, inclusivamente vivia em Tavira com sua mulher e filho e esta era de igual modo irreverente ao ponto de tanto o nosso camarada (filho de rico) como a mulher raparem o cabelo e assim ele já evitava as carecadas e ela por sua vez se solidarizava com o marido,  criando ao mesmo tempo um certo estilo de revoltosos com o sistema, o que para a época era já preciso ter muita coragem.

Na altura eu admirei este casal e em especial o nosso camarada que devia ser mesmo filho de pai rico, mas isso só nos trouxe vantagem.

Espero que este camarada esteja bem e que se ainda for rico tanto melhor para ele e que saiba que foi bom estar com ele na tropa em Tavira.

Esta estória vale o que vale assim como o tema em questão.

Um abraço a todos.
Henrique Cerqueira


2.  Comentário do editor:

Henrique, obrigado pelo teu contributo!... Afinal são histórias como esta que acabas de contar, que justificam o aparecimento deste tema, objeto do inquérito que está a decorrer até 4ª feira... Não há estudos sérios, académicos, sobre esta matéria, de modo a podermos responder à pergunta (legítima): os mancebos portugueses da nossa geração eram todos iguais face à obrigação de cumprir o serviço militar e, em caso de guerra, de defender a Pátria?

Tens boa memória em relação à tua passagem pelo CISMI,  em Tavira. Tu és do 4º turno de 1971, eu passei por lá no 4º trimestre de 1968... Mas as praxes eram as mesmas e havia alguns instrutores que usavam e abusavam do seu poder... Era natural que houvesse irreverência, resistência e até contestação (, dentro dos limites do RDM...) em relação a algumas práticas mais violentas, ou de violência gratuita...

Simplesmente não é irreverente, contestatário e resistente (ativo) só quem quer, mas também quem quer e pode... A liberdade tem um preço e os portugueses sabem disso, ao longo dos séculos e dos diversos regimes políticos. Alguns pagaram um preço bem alto pelo exercício da liberdade: prisão, tortura, morte, exílio, etc. Não vale a pena exemplificar....

Há vezes os exemplos (de irreverência, contestação, resistência...) vêm de dentro, da própria elite dirigente, dos seus filhos ou enteados...

Enfim, era interessante saber o resto da tua história: o alegado filho do dono da Tabaqueira cumpriu o resto da tropa, foi ou não mobilizado para o Ultramar, e, se sim, para onde, para que serviço, etc. ?

Permito-me, no entanto, fazer uma chamada de atenção: quem era o dono da Tabaqueira em 1971? A CUF... E a CUF,  de quem era ? Dos ricos e poderosos Mello... Não sei se tinham filhos e sobrinhos em idade militar na época (1961/74)...Mas não estou a ver um dos filhos (ou sobrinhos) dos Mello no CISMI, em Tavira, em 1971... 

A CUF era só... o maior grupo económico português!... Além disso, o mundo era vasto e largo, para as nossas elites. Con certeza que entre os 200 mil refractários da época havia ricos e pobres... É um número impressionante, num milhão de mancebos em idade militar, 20% foram refractários... 800 mil foram parar a Angola, Guiné e Moçambique.

Tens aqui o "historial da Tabaqueira", de acordo com os seus donos atuais, a poderosíssima multinacional Philip Morris International (, passe a publicidade).

A Tabaqueira, criada em 1927 por Alfredo da Silva, era a empresa líder do mercado nacional, produzia e vendia marcas de cigarros, nossas conhecidas, como Provisórios, Definitivos, Águia, Kentucky, 20 20 20, High-life, Porto, Ritz, Sintra, Monserrate ou Kayak. A sua concorrentes era a INTAR (sucessora da Companhia Portuguesa de Tabacos), responsável por marcas como Estoril, Kart ou Marialvas. 

Em 13 de maio de 1975, a Tabaqueira e a INTAR foram nacionalizadas. A empresa pública Tabaqueira - Empresa Industrial de Tabacos, E.P., criada a 30 de Junho de 1976, resultou da fusão,   numa única empresa,  de  A Tabaqueira, SARL e da INTAR - Empresa Industrial de Tabacos, SARL. (Estas duas empresas tabaqueiras detinham praticamente a totalidade do mercado nacional de cigarros).

Henrique, será que o teu camarada de 1971, no CISMI, Tavira, estaria ligado, por laços familiares, a esta INTAR?

3. Resposta do Henrique Cerqueira:

Bom quanto ao facto do meu camarada ser ou não ser filho do dono da Tabaqueira, eu não sei confirmar. O que na verdade era o que corria no meio da malta.  É um facto que esse meu camarada "ostentava" meios e comportamentos de pessoa abastada, embora isso não impedia que ele fosse um camarada de tropa e que provavelmente nem tivesse necessidade de se impor perante os camaradas menos "abonados" em dinheiro,  entenda-se...

Eu não fazia parte dos seus amigos que privavam com ele, mas a impressão que tinha dele era de admiração pelo seu comportamento, visto que ele tinha a "chancela" de menino rico e filho do tal empresário.

Havia por lá uns "pardais",  armados em ricos,  e alguns futebolistas mais ao menos (re)conhecidos e que, esses, sim,  davam o seu ar de importantes e,  como diz o António Rosinha,  uma de novos ricos. Lá se iam safando,  isso sim.

Um abraço antes que me espalhe ao comprido,  que este espaço é de fraternidade e não de más línguas. 
____________

5 comentários:

Abílio Duarte disse...

Quando vejo estes relatos, sobre a nossa vivência, na tropa, e falam dos Turnos de 68,69,70,71 etc. E esta malta foi bater com os costados nas matas da Guiné, até me arrepio. Que puta de vida, era aquela. E que futuro nos esperava!

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mafra ainda deve ter melhores histórias do que Tavira, porque era a linha de montagem dos contingentes de oficiais milicianos que iam para África...È pena que os nossos camaradas que por lá passaram não tenham nada a acrescentar a esta questão, digamos, sociológica...Claro que a classe social não vinha registada na caderneta militar ou estampada na testa... Ab. LG

Anónimo disse...

Excerto deuma mensagem de Mário Gaspar, hoje, 5/10/2016, 1h44, e que iremos publicar em poste (LG)


(...) Discute-se um facto, e é a verdade que flui da minha boca, e os filhos dos ricos e poderosos e então – do nosso tempo de guerra, que não é nunca foi uma brincadeira de criança – falo por mim como Miliciano, esses filhos de ricos e poderosos que andaram na Escola da Câmara e mais tarde num Colégio Sousa Martins, em Vila Franca de Xira estiveram na Recruta na “minha tropa”, mas na Especialidade de Atirador não vi nenhum.

Dei os meus primeiros passos no Serviço Militar no dia 3 de Maio de 1965 no Curso de Sargentos Milicianos (CSM), no RI 5, Em Caldas da Rainha.

No mesmo Curso estiveram Rui Rodrigues, Gervásio entre outros, jogadores da Académica de Coimbra. E Peres, este julgo também ser já jogador do Sporting Clube de Portugal e o “famoso”, “poderoso” de facto Simões do Benfica, Campeão Europeu e que fez parte dos heróis do Futebol na Seleção Portuguesa, terceira classificada no Campeonato do Mundo de Futebol, em 1966. (...)

Manuel batista Traquina disse...

O DGMG (Deposito Geral de Material de Guerra) localizado em Beirolas era como que um "covil" de filhos de gente de bem. Recordo que em 67 havia um"menino" que quado almoçava na messe escolhia a ementa e pagava para todos... bem era de "rancho melhorado. Chegou a ser mobilizado no entanto pagou a alguém que foi por ele. O seu comportamento não era exemplar pelo que mais tarde apareceu na Guiné, porque em Lisboa havia quem o ameaçou de morte. Em Bissau era dos poucos senão o unico que se passeava de automóvel novo.
Mas em beirolas havia muitos que à porta do aquartelamento estacionavam o seu Jaquar ou outros do genero e nunca faziam serviços... pagavam.

jpscandeias disse...

Camarada Henrique.

Conheci esse nosso camarada que fez a recruta nas Caldas da Rainha no RI 5. Durante a recruta não tenho ideia dele. Só no percurso entre as Caldas da Rainha e Tavira, feito em autocarros particulares, o conheci pessoalmente, viajamos no mesmo. Quando, no meio do fim do mundo, o autocarro parava e isso aconteceu 2 ou 3 vezes, para podermos ir ao WC no "mato" e, vinda à boleia, lá estava a mulher dele vestida à hippie e com um bebé de meses ao colo. Em Tavira fomos colocados em companhias diferentes pelo que o nosso contacto não era muito frequente. Mas recordo esse dia em que apresentou na formatura do pelotão hirto e tapado de lama nojenta que libertava um cheiro pestilento. Deu alarido pela ousadia, mas a verdade é que alguém cortou a água nas casernas pelo que não nos foi possível tomar banho e acabamos por nos limpar como podemos e vestir a outra farda. Ele foi a exceção, foi o único que teve "tomates" para o fazer.
De facto toda a gente dizia que ele era filho de um dos donos da Tabaqueira, mas pela boca dele nunca o ouvi dizer.
Acrescento que numa das saídas ele deu o "salto" para Espanha, com destino a França. Não passou de Espanha e foi recambiado para o CIMI. Nesse dia estava eu de serviço à porta de armas e o local onde descansa estava a cela do quartel, foi nesse dia que ele entrou na cela. Passados uns tempos desapareceu. Este facto aconteceu em outubro / Novembro de 1971.

João Silva, Cabuca Ccav 3404, Bambadinca Ccaç 12, Xime Ccaç 12 e Bolama CIM