Do Blogue Jardim das Delícias, do nosso camarada Adão Cruz, médico, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos dois textos e duas imagens da sua autoria.
O MEU POEMA AZUL
ADÃO CRUZ
© Adão Cruz
Não sei fazer uma rosa nem me interessa, não sei descer à cidade cantando nem é grande a pena minha.
Não sei comer do prato dos outros nem quero, não sei parar o fluir dos dias e das noites e nem isso me apoquenta.
Não sei recriar o brilho do poema azul... e isso dá-me vontade de morrer.
Procuro para além das sílabas e dos versos a voz poderosa mais vizinha do silêncio, o meu poema azul… o suspiro de Outono onde a brisa se aninha no breve silêncio do perfume do alecrim, lugar das palavras e dos versos no caminho do teu rosto junto ao rio dos teus olhos onde a vida se faz poema e o mar se deita nos lençóis de luz do fim do dia.
Procuro para lá das sílabas e dos versos encontrar meu barco à entrada do mar, onde repousa teu corpo entre algas e maresia, meu amor perdido num campo de violetas.
O meu poema é tudo isto que me vive que me ilude que me prende ao lugar azul que procuro dia e noite por entre os versos do meu ser.
O poema mais lindo da minha vida ainda não nasceu, não tem asas nem olhos nem sentimento, que o traga um dia o vento se vento houver, que a saudade o encontre onde ele estiver.
Dizem que no cimo dos pinheiros ainda é primavera mas tão alto não chego, mais à mão molho a minha camisa primaveril no regato cristalino que vai correndo por entre os dedos num solo de cores e violino.
Não sei colher uma rosa nem sei descer à cidade cantando, sou apenas aquele que ontem dormia sobre um poema azul e das asas da ilusão se desprendia.
Sou aquele que ontem se despia nos braços do poema que vivia, sou aquele que ontem habitava em silêncio o poema azul que acontecia, sou aquele que ontem sonhou em vão… com o poema azul de mais um dia.
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PRESO À CIDADE
ADÃO CRUZ
© Adão Cruz
Preso à cidade nesta inquietante angústia das sombras ao redor de um tudo-nada que nos prende e constrange, cai dos telhados o pó cinzento de uma neblina estranha que definha as ruas e arrasta as horas na lentidão dos passos.
Lá atrás, uma réstia de luz presa ao vidro de um candeeiro partido sob as janelas podres lembra que se alma houvesse, seria presa fácil de um qualquer rígido corpo enjoado de farsas e falácias amontoadas no lixo ao longo das ruas.
A noite caiu de forma estranha sobre a cidade sem corpo, definhada de luz e consciência, deixando atrás de si os últimos passos de uma existência presa a todas as obscurantistas ordens estabelecidas.
Até o vento se foi, para não arrastar a neblina estranha e para não incomodar o pesado silêncio que se prende ao corpo e às paredes, como mortalha do tempo e pegajoso crude que desfaz essa réstia de luz, presa ao vidro de um qualquer candeeiro partido.
Ainda ontem era dia, nos braços repartidos do trabalho e nas carnes que não conheciam o exílio, recusando morrer fora dos sonhos e da vida no meio da tempestade, e o vento varria o silêncio para libertar o corpo e a mente da neblina estranha das noites pegajosas.
Havia certezas por entre os tremores da indecisão, havia sorrisos, verdades e ilusões, e havia brisas sonâmbulas calando os medos, e no fundo do silêncio corriam rios arrastando as paredes negras e todas as sombras dos candeeiros partidos.
Preso à cidade, na tristeza que nos envolve e nos liberta por momentos o pensamento, cai dos telhados a poeira do tempo que cala as ruas e prende as horas na lentidão dos passos, e abre no chão quadriculado um espelho negro com um menino tocando o céu azul, rodeado de pássaros e flores e rios cristalinos, e nos estende a mão num gesto de paz que nos acalma e nos perdoa, e carinhosamente e sigilosamente nos devolve ao nada por um caminho celular, oculto, irrepetível.
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Nota do editor
Último poste da série de 26 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18016: Blogues da nossa blogosfera (81): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
1 comentário:
Olá Camaradas
As minhas felicitações ao autor.
Não disfarçou em versos(?) amontoados e desirmanados o texto de prosa que escreveu.
Se a prosa pode ser uma forma de expressão bela e plena de mensagem, então porquê optar por aquela forma esquesitoedricaa e rombitóde de verso de pé-quebrado?
Se há mensagem,mas não se tem verbo rimado e bem silabado, então venha a prosa.
Mais uma vez: parabéns ao autor!
Um ab.
António J. P. Costa
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