sábado, 9 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18066: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 13 (Não quero morrer( e 14 (As praxes dos 'Capicuas', CART 2772)


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) >  O autor, ao volante de um Unimog 411 (o famoso "burrinho"), à entrada da vila de Fulacunda




Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) >  O autor, no seu  quarto, n acama, a ler "O Século Ilustrado"...

Fotos (e legendas): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva:

Nascido em Penafiel, em 1950, criado pela avó materna, reside hoje em Amarante. Está reformado como bate-chapas. Tem o 12º ano de escolaridade. Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor, com dois livros publicados (um de poesia e outro de ficção). Tem página no Facebook. É membro nº 756 da nossa Tabanca Grande .


Sinopse:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau,

(vi) fica mais uns tempos em Bissau para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vii) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos', os 'Capicuas", da CART 2772.

2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 13 (Não quero morrer)  e 14 (Os  'capicuas')

[O autor faz questão de não corrigir as transcrições das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, que o criou. ]



13º Capítulo > NÃO QUERO MORRER


Pouco a pouco, estava a adaptar-me ao clima tropical, mas também ao clima emocional. Exactamente um mês após aterrar em Bissau, parti para Bolama, onde fui juntar-me aos meus camaradas da 3ª Companhia. Como calculara, tinha imensa correspondência. Passei algumas horas a ler e responder a todos os que me tinham escrito.

Quero desde já dizer-vos o seguinte: A distância, por incrível que possa parecer, tem o condão de aproximar as pessoas que se amam, e afastar aquelas cujos sentimentos não são tão genuínos. Todos os que, como eu, estiveram, ou estão ausentes, se o amor ou a amizade não tem raízes profundas, num curto espaço de tempo acabam por ser engolidos pelo esquecimento. No que eu escrevia era notório que a minha sensibilidade estava a mudar. Talvez eu estivesse a transformar-me.

No dia 29 de Julho escrevia:

“Estou neste momento a bordo duma lancha LDM, com destino a Fulacunda, local aonde vou cumprir a comissão, estivemos a ouvir o discurso do filho da puta do comandante e em seguida recebemos o armamento que é o seguinte. Uma espingarda G3, uma faca de mato, 100 munições (5 carregadores), um cinto, um cantil, um bornal, uma marmita. Depois tive de vestir a farda camuflada, foi a primeira vez que o fiz. Vou tirar fotografias com ela.”


Já sei em que me estava a transformar, numa Máquina de Guerra... mas também ainda tinha um pouco a sensação de estar num filme. Uma coisa afirmava na mesma carta. “Não quero morrer!”

Perdi algo de mim, em cada dia que passei naquele pedaço do continente africano. Não foram precisos muitos dias para começar a perceber que alguma coisa estava errada, mas ainda não sabia o que era.

Viajámos durante quatro horas pelo canal ou rio Fulacunda, fortemente armados, em duas lanchas com cerca de 70 soldados em cada e ainda hoje sinto um aperto enorme no peito ao lembrar a minha chegada ao local onde iria permanecer dois anos. Nós fôramos condenados a viver num campo de concentração.

Não sei se para impedir a entrada ou a saída, a vila de Fulacunda estava rodeada de arame farpado.

Neste capítulo, quero dizer-lhes que só relatarei o que na época escrevi. Não vou consultar absolutamente nada sobre Fulacunda ou a Guiné-Bissau, na internet, ou outro dispositivo de informação actual. Sensações ou emoções serão as que senti. Não me preocupa a geografia ou até se errar em discrições que faço de locais. Nos meus escritos, acredito ter alguns erros objectivos, mas, no fundo, o que pretendo é que sintam o que eu senti, se para tal tiver capacidade de o traduzir em palavras. A minha guerra, com certeza absoluta, é diferente de todos no íntimo e igual no tempo. A descrição que fiz sobre a vila de Fulacunda perdeu-se algures, apenas possuo as fotos.



14º Capítulo > OS CAPICUAS


A alegria estampada em cada rosto dos soldados que fomos render era tal que creio nunca mais na minha vida vi semblantes tão felizes.

Na sua recepção aos novos, cada elemento, de cada especialidade, transmitiu ao seu substituto todos os pequenos bens que foi usando durante a sua própria comissão e que não podiam, ou não queriam trazer consigo. De mecânico para mecânico, condutor para condutor, enfermeiro para enfermeiro, atirador para atirador, e por aí adiante, desde pequenas hortas, a ventoinhas ou rádios, livros ou discos. Informando-nos quais as mulheres locais que melhor lavavam a roupa e até às funções que desempenhavam dentro do quartel, dando-nos inclusive alguns conselhos, de como devíamos proceder em caso de ataques do inimigo.

Aqueles homens tostados pelo calor dos trópicos e endurecidos pelo sofrimento de estarem numa guerra longe de quem mais amavam,  fizeram-nos a melhor praxe que alguma vez algum caloiro teve, ou terá. Com a solidariedade de quem sobreviveu, fomos praxados para melhor enfrentar a morte.

A companhia que substituímos também foi um número, o 2772. Ficaram conhecidos como “Os Capicuas” [, CART 2772]. Em meu nome e em nome de todos os elementos da 3ª Companhia do BART 6520, a eterna gratidão. Após 45 anos, ainda me lembro de vocês. Se o cabo condutor que substituí ler este texto, a foto que junto é da sua cama. Peço desculpa por colocar a imagem da santa debaixo da mezinha de cabeceira. Embora, naquela altura, ainda possuísse alguma fé no divino, penso que era mais importante ter a G3 mais à mão do que os santos.

E comecei a deixar crescer o bigode. Estava a ficar um homenzinho. Penso que, na realidade e até hoje, nunca consegui. Também nunca fui verdadeiramente uma criança.

Quando foram distribuídas as tarefas, fiquei com a missão de zelar pelo depósito da cantina do bar de sargentos e bar de oficiais. A partir de agora, tudo que os meus camaradas precisassem, desde tabaco a bebidas, eu era o responsável para que nada lhes faltasse. Comecei a beber cerveja. Em breve, seria vinho, whisky, gin e por aí adiante. O menino da avó tinha ficado na Metrópole. O Claudino desaparecera mesmo, e ali, para simplificar, passei a ser o 118.



Guião do BART 2924 (Tite, 19670/72) a que pertencia a CART 2773, que foi substituída pela 3ª CART / BART 6220/72. Por este batalhãio também o nosso grã-tabanqueiro, o médico Amaral Bernardo, entre janeiro e julho de 1972.


Foto  (e legenda): © Amaral Bernardo (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]inua)

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3 comentários:

Cherno disse...

"(...) Estivemos a ouvir o discurso do filho da puta do Comandante (...).

Em 1998, mes de Agosto, quando vi e convivi com os militares do Senegal que tinham vindo em apoio as tropas do Governo (de Nino Vieira), disse logo aos meus vizinhos: Estes vao perder esta guerra. Porque? Era simples, eram jovens e com um bom nivel academico. Do outro lado estavam antigos combatentes, habituados a matar e com elevado grau de frustracao. O desfecho eh conhecido. A minha intuicao ou escala de comparacao tinha sido a guerra colonial. Com academicos dificilmente se pode ganhar uma guerra, seja ela a mais justa do mundo.
Obrigado Jose Claudino pela honestidade das suas memorias.

Com um abraco amigo,

Cherno AB

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Cherno:

És um grande observador da realidade da tua terra (e do mundo)... E concluis, da tua experiência da guerra colonial e da guerra civil de 1998/88: "Com academicos dificilmente se pode ganhar uma guerra, seja ela a mais justa do mundo"...

Não sei exatamente o que entendes por "académicos", mas presumo que te queiras referir a pessoas (homens e mulheres) com formação superior universitária ou equivalente.

E começas por citar uma frase do nosso amigo Claudino, retirada de um aerograma que eu escreveu à sua futura mulher, relatando a sua ida, em LDM - Lancha de Desembraque Média, de Bolama para Fulacunda.

Quando menino e moço em Fajonquito deves ter ouvido muitas vezes essa expressão: "filho da puta", filho da puta do comandante, filho da puta do Spínola, filha da puta so sragento... É (era) muito frequente no "linguajar" dos militares do Norte do país, em particular do Porto...

Para os teus ouvidos mais "sensíveis", pode parecer uma expressão grosseira, até mesmo ofensiva, senão mesmo "contestatária"... Mas, não, é uma expressão "coloquial", corrente, que não tem o significado que tu lhe atribuís...

De resto, o Claudino, já aqui o disse, foi para a Guiné como muitos outros camaradas, sem grande entusiasmo, mas também grande nível de consciência política... Os jovens mais informados e politizados eram, de facto, os jovens com mais habilitações literárias, em geral, de estrato urbano, sobretudo milicianos, mas também alguns soldados e cabos, oriundos da cintura industrial do país (Lisboa, Setúbal, Porto)... Ora não era o caso do Claudino, a avaliar pelo que ele nos conta...

Não direi que a expressão "o filho da puta do comandante" é afetuosa, mas no Norte um pai ou até uma mãe podia usá-la na época (e ainda hoje...) em relação aum filho, sobretudo mais pequeno:
-O filho da puta do meu filho...

Não vejas nisto nenhuma intenção de ofender a "honra da mãe" e, muito menos, contestação política... Mas o Claudino pode explicar-se melhor do que eu...


Tabanca Grande Luís Graça disse...

Cherno:

A tua observação é interessante, mas parece-me historicamente ultrapassada, tendo em conta a nova sociodemografia dos exércitos modernos...

O serviço militar deixou de ser "obrigatório" em Portugal e na maior parte dos países da Europa... Os exércitos são cada vez mais profissionalziados. Os oficiais de carreira vêm justamente das "academias militares" e têm que ter uma bom "background" nas áreas cada vez mais sofisticadas das "ciências militares"... Os sargentos também formação superior tal como os especialistas... Não se pense que basta ter "músculo" para se ser um bom combatente... Hoje, mais do que ontem, é preciso ter "cérebro"... Esquece os militares que tu conheceste em Fajonquito, representavam um exército completamente ultrapassado...

Por outro lado, deixa-me esclarecer que o nosso amigo e camarada José Claudino da Silva, 1º cabo condutor auto, tinha apenas a escolaridade que era então obrigatória: 4 anos... Hoje as crianças e jovens em Portugal estão sujeitas ao ensino obrigatório, gratuito, dos 5 aos 18 anos...