quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Guiné 61/74 - P18987: Estórias do Zé Teixeira (47): Binta - a lavadeira do alfero Barbosa (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

1. Em mensagem do dia 1 de Setembro de 2018, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos mais uma das suas estórias, esta metendo parasitas difíceis de controlar.


ESTÓRIAS DO ZÉ TEIXEIRA

47 - A Binta 

Estávamos nos primórdios dos anos sessenta do século vinte. A Guiné vivia, segundo os políticos do Estado Novo, em paz. Uma paz podre, sobretudo depois do massacre do Pidjiguiti em que alguns trabalhadores portuários de Bissau se puseram na mira da Mauser da tropa colonial ao revindicar melhorias no seu salário de miséria que as empresas, protegidas pelo sistema colonial, lhes impunham. Os tiros assassinos fizeram acordar Amílcar Cabral e alguns guineenses. Havia muito a fazer para libertar um conjunto díspar de povos, unidos por uma força secular que lhes era estranha, tanto quanto a sua cor, os seus costumes, formas de ser e agir - os portugueses colonialistas, não o povo português, simples e afável que ele tão bem conhecera quando estudou em Lisboa.

Binta era uma bajudinha de nove anos, com corpo de mulher, esbelta de olhos negros e penetrantes, onde os seios teimavam em furar pela sua pele, indiciando o fruto que começava a amadurecer. Habituada desde pequenina a tratar dos dois irmãos mais novos, sentia agora a necessidade de olhar para si. Já era uma mulherzinha, disse-lhe a mãe com um sorriso preocupante, ao mesmo tempo que a apertava entre os seus braços, naquele fim de tarde em que estando as duas a tomar banho na bolanha, a mãe notou a sua mudança física.

Como ela gostava de cantar e dançar ao som do batuque que o Braima Cassamá, filho do chefe da tabanca vizinha, tão bem tocava acompanhado pelo assobiar estridente da pequena gaita que sustinha nos lábios! Era tempo de paz no Regulado. Todos os momentos eram bons para fazer festa. Quando a chuva caía e regava as lalas, ou o sol ardente persistia para amadurecer os frutos; nos tempos das semeaduras ou nos tempos das colheitas; quando alguém casava e quando alguém iniciava o ciclo da vida. Tudo era tempo para festas, até quando alguém partia para a eternidade. O ritmo que o Braima impunha através dos instrumentos que tangia ferozmente eletrificava-a e o seu corpo, todo ele gingava. Gingava como o gigante poilão que crescera no centro da tabanca, quando açoitado pelo vento da tempestade, para logo depois entrar na acalmia que permitia com que a passarada fizesse dos ramos o seu poiso e chilreasse harmoniosamente um hino ao criador. E sonhava...

O Braima, então com dezassete anos, andava de tabanca em tabanca animando as batucadas. Já tinha posto o olho na bajudinha e na sua graciosidade, quando se embrenhava no mato e ia até à sua tabanca para animar as festanças. Saltara-lhe à vista e até já tinha sonhado com ela. Ele, graças ao seu pai, era um jovem de vistas largas, tinha aprendido a ler e escrever nas freiras que abriram um externato para rapazes na sua tabanca. Dizia o pai que as horas que ele roubava ao trabalho na lala, havia de ser compensado no futuro longo e feliz que augurava para o rapaz, já de si esperto que nem um leão e ágil que nem uma gazela.

Mas tudo mudou quando chegaram os emissários do PAIGC. Falaram com o régulo e com os chefes de cada uma das tabancas. Disseram ao que vinham – libertar o povo da exploração colonial – Queriam a adesão da população ao seu projeto de luta, mas não foram entendidos, e muito menos atendidos. Aquele povo vivia em paz, a paz possível na terra, que com seu amanho ia dando o pão para matar a fome. – Para quê a guerra que ia destroçar o bem-estar? Para quê lutar, se nasceram portugueses, como tantos outros que já estão na terra da verdade? A guerra traz morte, traz fome, traz dor, insegurança e destruição. Rouba-nos a juventude e a alegria. destrói as nossas lalas. De que vamos viver? – assim falou o régulo, amante do seu povo, que leu o perigo que se avizinhava.

Os emissários violentaram alguns dos chefes de tabanca e ameaçaram com a morte os cobardes que se recusassem a aderir ao movimento pela libertação e independência da Guiné. Prometeram voltar e o povo ficou com medo.

Uns dias depois, um capitão do exército português rodeado por um grupo de soldados bem armados apareceu na região. Chamou o régulo e os chefes de tabanca. Imponente na sua farda, de pistola à cintura e pingalim na mão, começou por censurar asperamente os presentes, por terem dado ouvidos aos inimigos da Pátria – um bando de cobardes comunistas que querem destabilizar a província, mandatados e armados pela União Soviética e pela China que se querem apoderar da Guiné para a explorar os seus povos, agora, que está pacificada, graças a Deus. Ai daquele ou daquela que ousar dar-lhe ouvidos e cobertura! Nós não teremos dó nem piedade. Como Teixeira Pinto cortaremos a direito até à morte, se for necessário. – Assim falou o capitão a quem ninguém conseguiu ver a cor dos olhos, porque os óculos escuros o impediam. Respondeu-lhe o Régulo com a sua calma e conhecimento de causa. - Nós não queremos a guerra que só traz morte e desolação, queremos a paz, mas também não queremos imposições. Deixem-nos viver em paz, apenas pedimos isso. Muito pouco afinal -. O capitão partiu e o povo ficou em silêncio. Acabaram-se as festas, as batucadas. Fecharam-se nas moranças e choraram o futuro que se avizinhava.

E o PAIGC voltou. Juntou todos os homens grandes do Regulado. Alguns foram arrastados à força para ouvirem as “ordens” do chefe. A censura ao Régulo por ter acolhido e ouvido os militares colonialistas foi brutal. Se o voltassem a fazer seriam severamente castigados e como prova de que não estavam a brincar, ali mesmo deram violentas chibatadas em alguns dos presentes que ousaram defender timidamente a ligação aos portugueses. Depois, o chefe ditou as leis do Partido:
- As tabancas deviam, a partir daquele momento, obedecerem apenas ao PAIGC.
- Deviam recusar a pagar o imposto ao colonizador.
- Os colonialistas deviam ser expulsos à catanada, porque aquela terra não era dos portugueses.
- Os chefes de tabanca deviam tomar providências para enviarem os mancebos para servirem a pátria livre nas forças que se estavam a organizar para combater o opressor.
- A partir daquele momento deviam partilhar os seus produtos agrícolas, nomeadamente arroz, com as forças de libertação.

Como vieram, assim partiram, levando com eles alguns mancebos sob prisão para enfileirarem nas suas forças e os sacos de arroz que conseguiram localizar, deixando aquela gente apoderada pelo medo, e os chefes divididos entre aceitar as regras que o PAIGC impunha ou continuarem fiéis a Portugal e ao homem grande de Bissau.

Braima foi obrigado a partir integrado no grupo de mancebos raptados e ao despedir-se do pai, disse-lhe, ao ouvido, que queria casar com a Binta, a bajudinha filha do Iero Embaló. Mamadu, seu pai apertou-o contra o peito e jurou por Alah que ela seria a mulher do seu filho.

Reunido à volta do poilão com os chefes de tabanca e homens grandes, o régulo procurava as soluções possíveis, perante as ameaças do Partido e dos militares portugueses. As mães choravam os filhos que partiram para o desconhecido, exigiam soluções para que as suas crianças voltassem - Não queriam vê-los envolvidos numa terrível guerra que já adivinhavam. O régulo manteve-se fiel a Portugal e incentivou os presentes a manterem-se firmes enquanto ele ia à cidade falar com o Administrador e pedir apoio para defesa do seu povo.

Não teve tempo, pois logo apareceu o capitão com os seus homens, incluindo um civil. Berrou, berrou, distribuiu algumas coronhadas e por fim levou, presos para averiguações, o Régulo e dois chefes de tabanca. Quando regressaram uns dias depois ilibados de qualquer acusação, foram recebidos em festa que logo se desvaneceu. O “branco”, como eram conhecidos os portugueses, exigia fidelidade, ameaçava com violência e a destruição das tabancas se o Partido voltasse a ser recebido. Apenas promessas vagas de que estariam atentos e a tropa andaria por perto para defender as tabancas que lhe fossem fiéis. As outras seriam destruídas implacavelmente.

A Binta transformou-se numa linda bajuda. Seu corpo queimava e o seu espírito voava para o Braima, o seu amado que tinha desaparecido. Entretanto, o pai do Braima foi ter com o seu pai e contratualizou o casamento por duas vacas e três carneiros, logo que a Binta assumisse a sua condição de mulher, ou seja, tivesse as primeiras regras e o Braima voltasse...

Nem sonhava que ele estava destinado a ser o seu marido. Quando a mãe lhe disse, só se lembra de ter chorado de alegria, mas as regras da comunidade exigiam recato e cuidados dobrados, agora que estava quase pronta para assumir o noivado. Não podia comunicar com o Braima, muito menos encontrar-se com ele. Que calvário! - pensou e as lágrimas começaram a deslizar pela face bronzeada sempre que conseguia isolar-se. Era o homem da vida dela. Que sorte a sua, tão diferente da da sua irmã que fora obrigada a casar com o Aliu. A segunda mulher de um homem velho que trabalhava para os portugueses e ganhava muito dinheiro, mas era um velho.

O tempo foi passando. O Braima fora levado para Conakry onde fez o treino militar e passados uns meses seguiu para a China para o curso de minas e armadilhas, enquanto o seu cérebro era bombardeado por toda uma doutrinação contra o branco português, que colonizava violentamente o seu país, massacrando o seu povo. Muitas promessas de liberdade pelo meio. Promessas que ele, nos primeirs tempos, não entendia, pois sempre se sentira um homem livre. Também não via violência no seu pequeno mundo, onde o branco só parecia para cobrar o imposto, e os comerciantes para levarem os produtos agrícolas que produziam na lala, deixando algum patacão como pagamento. Nesses dias havia sempre festa ao cair a noite.

Assim se perdia no tempo ao pensar no passado feliz que tivera junto dos seus. O coração traía-o continuamente. Lembrava-lhe os pais, os amigos, as batucadas que tanto gostava de animar, as chuvas que davam vida à terra, o sol que amadurecia os frutos do seu trabalho e... a Binta. Pois, a Binta?! Teria o seu pai cumprido a promessa? Como fazer para voltar à sua tabanca?

Mas se o Partido afirmava que o “tuga” era um colonialista explorador, então vamos expulsá-lo. Mesmo sem saber o sentido pleno destas palavras o Braima transformou-se num combatente da liberdade e ganhou a confiança dos seus superiores.

O Partido ganhou punjança, alimentado pela URSS e pela China com o apoio velado do mundo ocidental que há alguns anos, contrariamente ao que Portugal defendia, tinha optado por dar a “independência” aos povos africanos, que dominaram durante séculos. A guerra tornara-se uma realidade sangrenta. O PAIGC desenvolvia ataques sistemáticos contra as populações que não aderiram ao seu projeto. Duas tabancas foram queimadas e os habitantes foram raptados para engrossar as forças combatentes. Ficaram os velhos e algumas crianças que se refugiaram junto da tabanca do régulo. As F.A. de Portugal colocaram no local uma companhia de atiradores que se distribuíram por três tabancas, mantendo-se em movimento contínuo de vigilância, quer junto das populações que se afirmavam fiéis, quer na mata que as circundava para evitar, o mais possível, as surpresas dos “turras”. Os ataques iam-se sucedendo provocando sofrimento e dor. O número de feridos e mortos, bem como moranças queimadas ia crescendo, apesar dos “roncos” que a tropa e a milícia local faziam junto dos inimigos da pátria, como afrirmava o comandante militar. Não se vislumbrava o fim da terrível castástrofe que se abatera sobre aquele pacífico povo.

 - Binta! Binta!

O coração deu um pulo. Já se tinham passado uns anos, mas aquela voz estava-lhe gravada no coração. Era ele, o Braima que a chamava do meio da floresta, ou estaria a sonhar?! Tinha de se manter calma e avisá-lo do perigo. Olhou na direção do som. Fez um sorriso e mexeu os lábios pedindo silêncio. Não viu o Braima, mas sentiu-o a seu lado e o seu corpo vibrou de emoção. O coração quase a traiu, mas o Alferes Barbosa, que a cotejava, estava ali por perto a vê-la lavar a sua roupa, no pequeno riacho que passava ao lado da tabanca.

O Barbosa adorava a bajuda. Tentara todas as formas possíveis para a conquistar. A Binta defendia-se afirmando que estava comprometida com o filho do Mamadu Camará, o chefe da tabanca vizinha que era atualmente o sargento comandante da milícia na sua tabanca, sob o comando e orientação do Barbosa. Afirmava – mentido – que o seu noivo era soldado do exército português e cumpria tropa em Bolama. Mantinha-se assim intocável e respeitada pelos soldados de quem era lavadeira para ganhar algum patacão. Iria precisar de dinheiro para contituir família quando o Braima regressasse, pensava ela. Sofria em silêncio e acreditava que a guerra acabaria um dia, ou fugiria para o mato ao encontro do seu amado e prometido marido.

Tentou manter a calma. Acabou de lavar a roupa do alferes, enviou-lhe um sorriso matreiro e correu para casa. Pôs a roupa a secar, voltou ao rio para tomar banho e esperou pelo lusco-fusco. Então cobriu-se com o mais lindo pano, pôs o lenço mais garrido na cabeça e perfurmou o corpo. Aproveitando a hora do rancho dos militares, abandonou a tabanca. Embrenhou-se na mata e desapareceu para sempre dos olhos do Barbosa.

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Passados quarenta e dois anos, o Barbosa ganhou coragem e partiu com um grupo de antigos combatentes para a Guiné-Bissau numa romagem de saudade. Aquele povo ficara-lhe gravado na alma e com o correr dos tempos ganhou novas formas no seu coração, já cansado. Os locais onde sofrerera os horrores da guerra perseguiam-no. O olhar daquelas crianças assustadas, os gritos e as fugas para os abrigos bailavam na sua mente. Precisava de lá voltar, ver as pessoas, dizer-lhe que nunca as esquecera, que as amava. E a Binta! Ai a Binta, a mulher mais bonita que conhecera em toda a sua vida.
Onde estará?

Chegados a Bissau, logo alugaram uma viatura e partiram para o interior. Fixaram-se no Saltinho e partiram de novo em peregrinação pelas picadas de outrora, na Mata do Cantanhez, ao encontro das pessoas que ansiavam rever, numa ânsia de respostas a muitas perguntas que teimavam em lhe queimar os neurónios.

- Alfero Barbosa! Lembras-te do Mamadu Cassamá?

O Barbosa, procurou a voz que surgira atrás de si e deparou com uma senhora que lhe sorria. Bem constiuida, vestia um longo e colorido vestido, onde o verde alface predominava como fundo e as flores vermelhas parece que se projetavam no espaço ao encontro dos olhos espantados do Barbosa. O lenço colocado com todo o esmero dava-lhe um aspeto solene, de mulher dominante.

Quem será esta mulher que passados quarenta e dois anos me reconheceu? - foi a primeira pergunta que lhe surgiu. Enquanto a mirava, sentiu o coração estremecer de emoção.

- Sim lembro-me, respondeu com a voz trémula, era sargento da milícia, ainda é vivo? Gostava de lhe dar um abraço.
- Pois... E não te lembras de mim?
- Confesso que... O coração gritava-lhe qualquer coisa, mas não conseguiu decifrar a mensagem. Ficou confuso
- Não te lembras da Binta, a tua lavadeira?
- És tu?! Ó mulher da minha vida! Correu para ela e abraçaram-se longamente. As lágrimas, essas, não deram tréguas e deslizaram suavemente pelas faces de ambos. Seguiram de mão dada até à casa dela, onde o Braima, deitado na rede, fumava o seu cachimbo.
- Este é o filho do Mamadu, o meu marido. Braima Cassamá.
- O tal que estava na tropa em Bolama?
- Nunca estive em Bolama. Eu era bandido, estava ali na mata. Respondeu o Braima com um sorriso, estendendo-lhe a mão para um cumprimento efusivo.
- Ah! agora entendo porque desapareceste minha marota!

E juntaram-se os três num fraternal abraço.

José Teixeira
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE MARÇO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18383: Estórias do Zé Teixeira (46): Uma chapelada de piolhos (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Zé, só tu, com a tua sensibilidade, íntimo conhecimento da Guiné e talento literário, podias escrever esta história. Uma (ou afinal duas...) grande história de amor em tempo de guerra. Tempo cruel para todos nós, portugueses e guineenses, homens e mulheres.

A história de cada um dos nossos povos também passa pela "pequena história" dos indivíduos, famílias e comunidades, divididos por um conflito político-militar como foi a guerra colonial / guerra de libertação... Binta, Braima, Barbosa... um trio que dava um grande filme. Mesmo tendo tu o cuidado de salvaguardar a identidade real de cada personagem, é uma daquelas histórias em que a ficção e a realidade se misturam perfeitamente. De tal modo que, no final, eu comentei logo: "Pois eu também conheci a Binta, o Braima, o Barbosa"...

Até mais logo, na Tabanca de Matosinhos, na "tua" tabanca...

Teu "ermon", Luís

antonio graça de abreu disse...

Excelente, excelente, excelente! Nós todos,com a lavadeira a lavar-nos a alma, na simplicidade brilhante, complexa de há meio século atrás.

Grande abraço,

António Graça de Abreu

Juvenal Amado disse...

Grande história Zé. Muito bem escrita com a sensibilidade que te reconheço.

Tiveram sorte os três principais intervenientes pois a pesar das curvas da vida, acabaram por se encontrar em circunstâncias felizes.

Um abraço e venham mais